Skip to main content

Reverter a inversão: topsy-turvy, o novo livro de Charles Bernstein

Reverter a inversão

O de pernas para o ar de ponta-cabeça

Por Runa Bandyopadhyay

 

Mundo de cabeça para baixo:

Charles Bernstein se apresenta de ponta-cabeça com seu De pernas para o ar, para representar um mundo de cabeça para baixo onde estamos condenados a viver, e, para desequilibrar o leitor, curioso sobre sua postura invertida, que não era assim originalmente! Deixe só reverter a inversão de um mundo de cabeça para baixo para entrar no mundo pataquérico de Bernstein com a concepção wittgensteiniana da afirmação- “a dupla negativa é uma afirmativa” como um eco do mantra upanixade- a negação da negação– onde “o sinal de negação provocou o nosso fazer algo” (Wittgenstein 1958: 147). Portanto, comece seu exercício mental: reverta a inversão do mundo que está de cabeça para baixo. Essa “reversão táctica” pode “criar um espaço de maior liberdade” porque “as negativas têm uma maneira estranha de se tornarem afirmativas” (Bernstein 2016: 316). Portanto, comece sua ação: reverta a inversão do mundo que está de cabeça para baixo do “jeito de Zeno”:

Três passos
à frente, derrubado
no chão;
levanta,
empurrado dois
passos para trás,
nocauteado
de novo; de
pé.                   (Bernstein 2021: 5).

O ato de empurrar cria resistência, uma das palavras favoritas de Bernstein. Portanto resista: não permita que ninguém o controle. Ser, ou não ser de cabeça para baixo, eis a questão. Estou simplesmente efundindo (ou infundindo? Eu sempre soletro errado as palavras para perder o elo perdido. Esse elo ainda está perdido como é suposto estar, ou não haveria criação.) a palavra “de cabeça para baixo” numa caixa-preta e chocalhando bem para jogar os dados, não para abolir mas para arriscar a ação Alemã mais irregular (você chama isso de verbo, eu chamo de ação, porque o verbo pode ser reduzido estritamente ao verbal, mas eu acredito em ação) seinser─  para chegar de cabeça para baixo = UWP sein estranho.  Isso significa a Plataforma Universal do Windows (UWP) ser estranha. A plataforma do Windows representa nossos óculos pelos quais olhamos.  Sem dúvida, os óculos são únicos para cada indivíduo, mas a plataforma é universal, onde a opacidade do indivíduo importa. Se o individualismo não florescer, como o universalismo poderá assegurar sua própria resolução? Se o limitado não está completo em si mesmo, como o ilimitado poderá tocar sua própria melodia?─ para ecoar Tagore no Gitanjali [Bengali: Ofertas de canção]: ilimitado vós dentro dos limites/ você toca suas próprias melodias.

Para manter os óculos impecáveis, o “Whipmaster Valorizer™” frequentemente o higieniza com álcool em seu “processo de desrealização” (Bernstein 1987: 146) da presente situação Covídica do mundo, porque a poética de Bernstein é “situacional ao invés de fixa e limitado por regras” (Bernstein 2016: 3). É por isso que seu “Horóscopo Universal de Doze-Anos” diz “Álcool preferido” (Bernstein 2021: 143) para “Estar bêbado”: “Mas de que? De vinho, de poesia, ou de virtude, a seu gosto” (Bernstein 2013: 181)[1]. Sim, eis a questão. Se você estiver bêbado de poesia, isso pode prodigá-lo com “soluções imperceptíveis para problemas opacos” pela “ciência indutora-de-desvios” [Bernstein 2016: 171] da patafísica de Jarryan. É o processo Bernsteiniano de “Anti-Metafisica” para olhar num mundo imaginário alternativo, para tornar accessível uma região inaccessível da mente até então desconhecida, porque “A verdade imbricada em camadas de escravidão/(Fantasias da imaginação e nada mais” (Bernstein 2021: 112).

 Ser ou não ser, não é de forma alguma a questão, porque a palavra sein já está inclinada ante estranho. Bernstein e estranho são duas palavras intercambiáveis com os mesmos atributos─ onde Bern ser urso─ Bern Urso─ o brasão de uma “escola ambarina de sofistica” (Bernstein 2021: 116) onde bernstein [Alemão: âmbar] é a pedra-de-toque da poesia, forte como pedra, mais preciosa que ouro. Quando a linguagem está no limiar de seu sentido e som, atributos ambarinos acendem o fogo para desdobrar a chama da poética com o estranho. Isso é para desiludir o “delirante Shakespeare” (61), não para “perder o nome de ação” somente sofrendo “as fundas e flechas da sorte ultrajante” mas “para pegar em armas contra o mar de problemas e, em se opondo, terminá-los.”[2] Uma vez que Bernstein é o nome do terrorismo literário do mundo poético americano, não há dúvidas sobre as armas, porque elas criam a possibilidade de resistência, como a vida na luta armada contra a escravidão de “Shields Green”[3], onde:

A vida vive depois da vida
Como uma semente é um vácuo no mundo-como-é
Abrindo caminhos para mundos-que-podem-ser. (Bernstein 2021: 88).

Bernstein citou “O serafim / É sátiro em Saturno, de acordo com seus pensamentos” (Bernstein 2021: 144) de Notas para uma Ficção Suprema, por Wallace Stevens, que diz “Isso deve mudar”─ mudança é a essência da realidade. E para a mudança, a explosão deve ser criada pelas armas, não para ferir fisicamente mas psicologicamente, com os paroxismos das “in(ter)venções literárias” (Bernstein 2016: 295) na esfera íntima dos pensamentos.  A explosão dos pensamentos é deflagrada pelas próprias experiências do poeta contra todas as turbulências e desesperos sombrios do mundo de cabeça para baixo, para levantar sua voz contra a corrente, em uma sequência de músicas matizadas com um impulso doloroso intenso.  Essas armas já estão em ação desde 2010 com a balada de Bernstein, chamada “Imaginação pataquérica: Uma fantasia em 140 ataques”[4]. Depois de dez anos, ainda está brilhando com os fragmentos filosóficos ambarinos no mundo de pernas para o ar com o nome “Amberianum”, para o qual o satírico Bernstein prodiga algumas notas hilarias:

O Amberianum foi reconstruído a partir de fragmentos e estilhaços no Sid Caesar Center para Estudos Disráficos.  Palavras faltantes e a costura das partes desconexas provavelmente comprometem a obra. O manuscrito em latim foi descoberto em 4 de Outubro de 1895, enterrado sob uma antiga loja de produtos secos de Minsk. A história do achado miraculoso do Amberianum foi contada no livro premiado O Ei!: Como o mundo se tornou pataquérico.  2021). 116).

Você pode procurar por esse livro premiado acima na internet, mas esse é um endereço patalegítimo para você. Eu também gostaria de informá-lo que meu jogo de dados aleatório é originalmente (é algum?─ “original é o traço corrigido do incognoscível.” (Bernstein 2016: 31) introduzido pela “Texton”, uma “empresa alquímica”, mais conhecida pelo seu “Whipmaster Valorizer ™”, introduzido em 2004 para a revolução na “indústria da psicopoética” (Bernstein 1987: 130), com a tecnologia da Texton [par pataquérico: Text on] para manter o text on em sua ação sobre “a materialidade da linguagem” contra a mercantilização da poesia.  Isso significa que a poesia é “sem idéias apenas superfícies, sem superfícies apenas palavras, sem palavras apenas texturas, sem texturas apenas conexões contingentes” porque “as palavras se referem a si mesmas, marcam seu lugar no poema, dizendo nada mais nada menos que sua mera enunciação” (Bernstein 2016:  122, 300).

Como o Valorizer, meu jogo de dados aleatório “usa uma ação dúplice única”. Primeiro, elimina a prescrição preconcebida da gramática misturando aleatoriamente as letras na caixa-preta; depois, lança os dados para acrescentar novas possibilidades com sua textualidade “para maximizar o ping e pong de palavra contra palavra, frase contra frase, para identificar a sensação verbal visceral, para achar o sentido, mesmo para fazer sentido, com o que se tem à mão”( Bernstein 2016:  217).

Mundo Covídico:

Se eu morrer—se eu morrer—
Na—guerra Alemã—
Eu—quero que você mande meu corpo—
Mande-o—para minha mãe, Senhor.            (Bernstein 2021: v)

Essa é a parte do epigrafo de pernas para o ar, transcrito por Bernstein da gravação vocal de 1930 por Geeshie Wiley[5]. “As ultimas palavras gentis” podem fazer referência à “guerra Alemã” do último século mas hoje “A guerra é aqui. / A guerra é isso. / A guerra é agora. / A guerra somos nós” (Bernstein 2006: 154) como o visionário Homem efeminado imaginado quinze anos atrás. É um interminável “Histórias de Guerra” no mundo poético onde “A guerra é a resposta”. Se “o trem não vem”, deixem-me andar só para “cruzar o profundo mar azul” até atingir o mundo da “Covididade” poética:

A covid vai me pegar
Realmente me pegar
Meus pulmões estão fracos
E eu sou muito incompreendido. (Bernstein 2021: 137).

‘Entender’ é uma palavra bizarra, não “submeter-se” mas “estar por dentro”─  a reação de Bernstein durante minha primeira interação com ele para o projeto da antologia Bridgeable Lines[6] em 2018. Hoje, quando estamos submetidos à guerra geopolítica da Covididade poética em todo o globo e tentando estar por dentro, a palavra “incompreendido” ainda mantém o controle firme da inovação da linguagem poética, buscando por ar fresco no estado atual de sufocamento da linguagem, sob a pressão da moral bem-intencionada e os princípios didáticos da cultura oficial do verso. Isso, na verdade, faz eco a política atual da Covid no mundo, murados eles mesmos pelos “malditos muros de 15 pés” (Bernstein 2021: 137) de imaginação, que não pode nem sequer imaginar que eles não podem prover fogo suficiente para queimar o rastro de mortes, mesmo quando estão em possessão do ID virtual de toda a população. Eu acho que eles acreditam que isto é só virtual, nem de longe real!

A política dominante da linguagem nos força a ser auto-quarentenados sob a lei marcial do confinamento, porque esses “muito humanos” (Bernstein 2016: 305) atores fracassam a nos fornecer oxigênio para um processo lento de simbiose, mas combustível ao parasitismo que danifica nossos pulmões pelo “vírus da palavra” (no sentido de Burroughs) aparentemente obsoleto / abandonado / não oficial. Bernstein quer estar por dentro da Covididade poética para oxigenar nossos frágeis pulmões, infectados pelo vírus da linguagem, para explorar as possibilidades da linguagem a responder aos curvados, mudos, marginalizados, silenciados.  Os atributos mutantes da poética Bernsteiniana, estando no presente, encontram as variantes futuras da linguagem para abordar diretamente a Covid como “A covid vai me pegar/ Se não agora um dia qualquer” (Bernstein 2021: 138). Como a nova cepa do coronavírus, cujas muitas regiões da epidemiologia ainda são desconhecidas, além da compreensão humana, a linguagem sempre continua a evoluir. Desconhecidas são as novas, novas palavras, novas formas de possuir múltiplas possibilidades de novos padrões. Os paroxismos da imaginação pataquérica de Bernstein são antiparasitários, para abrir uma nova trilha em um terreno desconhecido, para imaginar um imaginário emergente por meio da linguagem. Terrenos desconhecidos sempre levam as rodas da dinamicidade a ecoar Bernstein:

A dinâmica do meu trabalho está em tentar superar o pouco que eu fui capaz de entender num determinado momento. Se eu entendo como fazer algo, então esse algo deixa de ser interessante—Estou à procura de trabalho que esteja além de minha compreensão (2016: 237).

Todas as épocas sonham de superação, não no sentido do anti, mas como uma tendência positiva, de superar os limites superiores do conhecido para ir buscar o desconhecido, porque a mudança é a chave do progresso.  O poeta visionário prevê o futuro da linguagem a partir das reflexões contrafactuais sobre o passado com “agoramento temporal ao invés do conhecimento atemporal” (Bernstein 2016: 300) para testemunhar o tempo com os sentimentos dolorosos reais do momento, o “inesquecível/ agora” que era “inimaginável/ horas atrás” (Bernstein 2021: 114). É a história da linguagem, sempre posta num palco móvel, “mesmo se agora não é agora, e então não era então, o tempo imóvel avança”(109).

É assim que o mundo avança, assim que a dimensão do tempo e a linguagem avançam, assim que as ciências avançam, da física clássica para a moderna, das cordas às supercordas à teoria-M, em direção à TGU, para modelizar o universo através da aumentação contínua da dimensão espacial.   Entretanto, não existe teoria de tudo para a poesia, para ecoar o poema de Bernstein “Uma teoria unificada da poesia”─ “Não acredito” (Bernstein 2021: 72). Assim a voz astrológica do horóscopo aconselha a “procurar escoramento” (143) de forma que você possa se apoiar vigorosamente em suas raízes com sua estrela polar escolhida, e depois saia em modo aberto, para cantar a música favorita de Bernstein─ “rejeição do encerramento”─ para recusar um “começo, meio e fim preconcebidos” (Bernstein 2016: 259).

 A linguagem se move com um movimento rigvédico, no sentido da raiz verbal rik (similar ao inglês ṛ́c)─ não somente repetição mas renovação, recolhendo algo novo para o progresso de sua existência.  Ou seja, o conhecimento alcançado para o progresso do Ego, recomeça de novo/outra vez, ele mesmo, ao longo do tempo, para alimentar o progresso da humanidade. Isso, na verdade, faz eco a Bernstein: “Orientar para o leste para repouso, para o oeste para reflexão” (2021: 145) para abordar a imaginação intelectual.  O intelecto se refere à filosofia racional ocidental do quantumismo, e a imaginação se refere à filosofia intuitiva oriental da conquista do bodhi (Sânscrito: “Sabedoria verdadeira”), o mais elevado estado de alerta mental como no hinduísmo, o despertar de um sentido íntimo através do Satori (Japonês: “Iluminação repentina”), a iluminação pela aquisição de um novo ponto de vista, como no Zen Budismo.  Não é no sentido da uniformidade mas da harmonia interior, com a hismonia Bernsteiniana, que sibila de seu foro interior para professar o disrafismo como em O sofista. Ele encadeia as músicas com sua ““ disprosódia ”—a prosódia dos sons angustiados” (Bernstein 2016: 213) de sua paixão pelo sincopação em loop contínuo.  Significa ir além do invólucro da ordem, porque “sem desordem não pode haver harmonia”, como dito em O Homem Afeminado (Bernstein 2006: 11) e sem harmonia entre conhecimento e imaginação não pode haver pataquericalismo, conforme cunhado por Bernstein.

Nossas crenças convencionais sobre a poética são ainda uma espécie de “xibolete” de claridade, coerência e expressão, como disse Bernstein em sua entrevista[7] comigo. Ele propõe a pluridiversidade contra a ordem racionalizada da claridade; uma narrativa transformativa, sem enredo, orientada a processos, contra a coerência, não para fazer conexões lógicas mas um tipo de transformação dinâmica, “uma consecutividade contingente que registra a transição, mas não a descontinuidade…Conexões implausíveis, mas não arbitrárias: uma série de possibilidades contingentes.  Não sendo adequado, mas se adequando” (Bernstein 2016: 148, 55) que concatena linhas musicais, como o poema “Covididade”, com uma melodia de rap, não rapsódica para costurar junto, mas descosturar para ser disráfica.  E para a expressividade, ele explora diferentes possibilidades de expressão através da “radical descentralização da expressão” (Bernstein 2021:  74), para se contrapor à expressividade rompendo o monopólio do sentido da emoção na cultura poética convencional.  É uma revolução na democracia “Procurar o endereço”:

O tipo de democracia à qual eu faço referência, não é a maioria ditando e restringindo as liberdades da minoria, mas, ao contrário, uma democracia na qual os direitos das minorias e a individuação particular de suas perspectivas não é apenas protegida, mas fomentada. (Bernstein 2021: 74).

Não podemos escapar da “Covididade”:

A covid está próxima
Vai me destruir até eu ficar roxo
Mas essa não é minha preocupação
Estou aterrorizado por você   (Bernstein 2021: 138).

Ser liberado do sofrimento é alcançável não pela fuga, mas transformando-se seu valor no âmbito da verdade, a verdade do amor imensurável, porque “A menor distância/ entre dois pontos/ é o amor”. Isso é “A abstração humana” [Bernstein 2001: 35] reconfigurada por Bernstein, sendo contaminada por Blake. Mas essa menor distância está em perigo agora, por causa de uma saga baseada no fraseado errado do distanciamento social das lideranças políticas, na época da pandemia mundial.  Bernstein teme a distância─ “se estou distante de você/ me afoguei antes de nadar”, porque, “nossos pulmões estão fragilizados” (2021: 138)─ frágeis no sentido de delicados. Além disso, “Tudo sempre arrebenta em seu ponto mais fraco, inclusive o amor”, porque “A fragilidade é a raiz do amor” (116)─ frágil no sentido de suave, em oposição a duro ou rígido. O amor é a menor distância entre você e eu, a menor distância entre um poeta e um leitor.

Bernstein procura a intimidade porque a distância social é um “pé-na-alma” (Bernstein 2021: 137). Uma vez que agora o ar está contagioso com o vírus, o organismo parasita, chamado palavra, a estranheza da poética Bernsteiniana quer aplicar sua própria lei marsial, no sentido Spiceriano[8], na sociedade “psicopoética”, em oposição à lei marcial do confinamento, aplicada pelas autoridades.  Ar é um sinônimo antigo de música; o ar é um veículo para o som, a origem das palavras; o ar também é um veículo para a Covid contagiosa.  Bernstein usa esse ar com um toque de seu poder de consciência mágico, para criar um ritmo de contra-corrente empurrando as fronteiras de nossa visão finita. É buscar a liberdade através das possibilidades infinitas, para tornar a realidade palpável com a lógica da música que toca como uma melodia de balada, chamada “Covididade”, contra a doença da Covid em nosso mundo de cabeça para baixo. Bernstein identifica o organismo parasita que invade nosso cérebro, mas quer explodir a distância social da época covídica, baseada num fraseado errado, para refraseá-la como distância física com intimidade mental, quer dizer, seu processo explode a distância/diferença entre o significante e o significado, para se liberar do lowghost Spiceriano do logos da linguagem. Ele acende a chama estética da alma do leitor, manchada com dor, para queimar a barreira até as cinzas, para entorpecer a resistência com um tilintar repetitivo, fazendo pular não importa para onde, fora do mundo.  

Mundo Pataeconômico:

Bernstein: “A Escuridão que Ele Chamava de Noite”:
A espada da virtude
na verdade,
apaixonada por
si mesma, em desacordo
com os outros.
Celebrando os padrões que
cria, a virtude
esmaga os heréticos, ilude    
os descontentes, e ao lhes
iludir, abstém-se do aperfeiçoamento. ((2021). 120).

“A espada da virtude é a verdade”, mas o que é a virtude? Virtude  [Latim: virtus] derivada da raiz latina─ vir [um homem]. Não a palavra virtude, mas essa raiz latina vir, é similar ao Sânscrito vira [herói] com a raiz verbal─ vir─ significando a ação portando energia, poder ou força ativos. O homem é chamado de herói quando ele usa seu poder/energia física ou mental em prol dos outros em sua ação virtuosa.  E qualquer ação é chamada virtuosa quando ela é aceita/aprovada por uma sociedade particular, numa época particular. 

Agora, a palavra equivalente do Sânscrito para virtude é punya, com raiz verbal─ pu─ significando o ato de dar/oferecer algo, mas ao mesmo tempo o ato devendo submeter-se à santificação/purificação.  O conceito das palavras punya [Sânscrito: virtude] e paap [Sânscrito: vício, pecado] se originou na época védica para a prática de escambo do pawnya [Sânscrito: bens, mercadorias], a qual também inclui o escambo mental de conhecimento, com a raiz verbal─ pawn [Sânscrito: promessa/acordo de intercâmbio, o mais próximo do inglês pawn (penhor)].

Mas não foi fácil iniciar essa prática de escambo na sociedade socialista védica, resistente ao individualismo e avessa ao intercâmbio. A sociedade védica estigmatizava a prática de escambo como iníqua, e, em consequência, as pessoas envolvidas no escambo costumavam experimentar um sofrimento mental─ correspondendo ao sentimento de pecado que o escambista costumava sentir. Entretanto, para continuar uma sociedade, se tornou necessário suprir a necessidade de uns com o excesso de outros.  Quando a coisa produzida por um homem abastece direta ou indiretamente o produtor, a coisa não é nem um pecado nem um vício, mas quando a coisa produzida é acumulada e espera pela venda/escambo, então o produto se torna pecaminoso.  Em outras palavras, a coisa, produzida somente como o intuito de venda, a qual é chamada mercadoria na linguagem moderna, torna-se pecaminosa, equiparando-se ao pecado bíblico de Adão com a maçã, ecoando Marx “A acumulação primitiva assume um papel na economia política praticamente equivalente ao do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã, e em consequência disso, o pecado se abateu sobre a raça humana.”[9]

Assim o conceito de santificação/purificação entra em cena.  A prática de escambo de mercadorias começou tendo em mente que deveria entrar-se em um acordo sobre o escambo, o qual é sancionado/registrado/licenciado por uma sociedade/instituto/governo numa época dada. Se o processo de santificação ou purificação é observado no escambo, somente então o lucro do produtor será chamado de virtude, senão ele será chamado de vício.  Por assim dizer, podem existir dois tipos de virtude─ a virtude externa é o dinheiro recebido na forma de valor de troca; i.e. a virtude capital e mental é um sentimento de equidade, a felicidade ou o alívio/jubilo emocional religiosos, ganho no escambo.  Um homem─ vir─ será chamado herói quando ele ganha virtude na observância das normas de escambo de mercadorias. 

Com essa norma de escambo, a época upanixade começou se opondo ao posicionamento védico no final da época védica. Upanixade─ upa+nishad: upa [Sânscrito: um associado, rishi, o qual é o nome védico do filósofo, provedor de serviço na terminologia de marketing moderna]; nishad [Sânscrito: uma loja onde se produz o escambo de algo, ashram, o qual é o nome védico do lugar usado para o escambo de conhecimento, complexo industrial na terminologia do marketing moderna]. Nesse contexto upanixade, o conhecimento filosófico ou ontológico é provido pelo escambo. Em outras palavras, o upanixade é a nossa filosofia do individualismo original mais fundamental que leva ao capitalismo.

O capitalismo é um sistema econômico no qual os indivíduos privados possuem seu capital, a virtude externa, e a economia de mercado é uma na qual a produção de bens e serviços é baseada na oferta e na demanda no mercado geral.  A poética upanixade de Bernstein não renega essa economia da poesia, mas somente com a virtude mental, rejeitando a virtude externa. Quer dizer, é Economia Negativa negar o conceito convencional/existente do capitalismo.  Eu digo upanixade, não para sugerir que a poética de Bernstein valoriza o capitalismo, mas para sugerir que seu processo é upanixade, que fez Uttara-Mīmāṃsā (Sânscrito: “indagação superior”) nos hinos védicos por meio do diálogo, levantando uma série de objeções metafísicas ao conhecimento alcançado por meio de Pūrva-Mīmāṃsā (Sânscrito: “Indagações primordiais”), feitas pelos filósofos védicos. Estando na época pós-pós-moderna, onde ‘pós’ não significa um mero ‘depois’, mas ascensão, atravessando como a madeira (similar à raiz verbal utt [Sânscrito: indo para cima], que dá origem à palavra uttor-adhunik [Bengali: Pós-moderno]), é razoavelmente inevitável para um poeta inovador como Bernstein ser avesso a uma abordagem convencional. Esse é um processo não estático mas ativo, que necessita ser renovado/revigorado através do tempo com introspecção no eu interior dos indivíduos em uma sociedade, porque nós não somos o que nós realmente somos, antes, nós estamos em permanência nos tornando realidade.  É a eterna questão entre ser e tornar-se, a qual alimenta nossa travessia criativa─ um processo de transformação, Bernstein se declarando um “cara muito adequado” porque “o processo de se tornar real é um olhar num tanque de espelhos côncavos [concatenados]. Não ângulos, apenas emaranhados. De onde emerge uma direção, purgas”(1994:  16).

O processo upanixade de indagação da realidade de Bernstein, o poeta pataquérico, conduz sua ação através de conflitos, lutando contra a norma estabelecida, a padronização da linguagem, continuamente procurando pelo outro─ outras abordagens, outras expressões, outros valores, contra a exploração, a opressão, e a privação da sociedade capitalista.  Sua ação leva ao socialismo científico marxista, tendo em mente a última conclusão de Marx antes de sua morte, sobre a condição primitiva do homem:

Não foi a família que originalmente evoluiu em tribos, mas foram, ao contrário, as tribos que primitiva e espontaneamente evoluíram para formar associações humanas baseadas em relações de sangue, das quais, a partir dos primeiros afrouxamentos incipientes dos laços tribais, as muitas e várias formas de família se desenvolveram subsequentemente.[10] 

A atual sociedade capitalista não pode ver essa história do processo natural espontâneo de desenvolvimento, e, em consequência, conserva sua identidade estritamente nas cotações do dólar, ignorando os outros.  Mas a poesia não está à venda, ela é destinada ao escambo. Seu valor não deve ser julgado pela habitual cotação do dólar.  Apesar da poesia ter um preço negativo no mercado, ela cria uma valia negativa, calculada por Bernstein com a dialética negativa de Adorno, onde o valor dolarizado da poesia é “a raiz quadrada do sublime, multiplicada pela soma negativa da utopia, e dividida pela derivada do excesso de anoriginalidade” (2021: 100). 

A província bernsteiniana da poesia denominou a economia como─ “economia de escambo”. O poder dessa economia de escambo é uma moeda obtida a partir da musa da poesia, obtida pelo discurso crítico e o contra-discurso, a qual “não é uma “explicação” do trabalho, a qual frequentemente contradiz o espírito do trabalho, sendo antes uma extensão do trabalho” (Bernstein 2016: 55). A economia de escambo de Bernstein cria um modelo de “espaço social democrático” (206), que tem por objetivo uma prática social onde a realidade constituída do poeta é reconstituída pelo leitor através do escambo e da leitura crítica.  Nesse mercado poético, a experiência do leitor consumidor não pode ser mercantilizada. Se o consumidor não é passivo mas ativo para responder, para “interencenar” (68) para significar, não somente interagir mas inter-encenar, para fazer acontecer com a poesia sem nenhum pensamento predefinido ou formas limitadas ou normas fixas de poesia, então é criada uma “diferença interna” com um “viés de luz” (327) no sentido Dickinsoniano.   

Mundo hiper-real:

Assim que Bernstein vem à mente, palavras como estranho, dificuldade, diálogo, indagação, verdade, realidade brilham no escuro, com cada passo nesse mundo careta jogando um xadrez infinito com o movimento de seu peão, a promessa─ “A promessa de um poema, o tipo de poesia que quero, é que ela refute a realidade” (Bernstein 2021: 102). Sua refutação não é contra a realidade, mas antes busca a transformação de nossa visão fragmentada da realidade.  Seu poema transforma a realidade visual num todo orgânico, o qual é o movimento de um todo em direção à uma totalidade. 

Bernstein escreve, “A espada da virtude é a verdade, apaixonada por si mesma, em contradição com os outros”, mas o que é a verdade? “A beleza é a verdade, verdadeira beleza”[11] moeda antiga mas de ouro, onde a verdade do mundo material transcende para a verdade do mundo imaginário, onde a esmeralda pode ser vista como verde pela reflexão da luz em nossa consciência.  Isso porque “só o imaginário é real” (Bernstein 1991: 5) em Negociações duras de Bernstein, investir no portfólio poético da resistência, não embolsar mas colapsar o conceito convencional de realidade, porque “Não existe fantasia como a realidade/ (Apesar da realidade não ser nem um pouco extravagante)” (Bernstein 2021: 112). Nós vivemos com essa realidade imaginal pela duração do poema, onde o poema é o som inerente da alma interior, carregado pela misteriosa energia escura invisível da mente, a fonte de possibilidades infinitas em torno do centro vazio. É por isso que Bernstein não movimenta navegações suaves que não sejam para “socorrer” o barco aberto[12] da verdade e falsidade no comércio da poesia, porque “Os negócios estão difíceis/ & a maré está baixa” que “recua suas/orlas—nas quais/deliramos” (Bernstein 1991: 4, 44), e nessas difíceis negociações da poesia, Bernstein oferece o “Testamento” da verdade:

Falar a verdade é uma forma de mentir uma vez que
Toda verdade oculta tanto outras verdades quanto
Uma profusão de falsidades.  Mas mentir está tão
Distante da verdade quanto os mortos dos vivos.
Nunca foi minha intenção fazer
Ambos—Apenas se manter resgatando esse barco
aberto derivando em direção de um mar infinito.  ((2021). 15).

Bernstein nega a existência de uma verdade única, antes explorando suas possibilidades para ativar uma matriz criativa passiva que cria outras verdades, abrindo repentinamente um novo ponto de vista.   A existência radical de cada homem faz um ângulo-relacional com a verdade e a falsidade. Nós expomos nossa dor com o cosseno do ângulo; nós compartilhamos nossa alegria com o seno do ângulo.  Apesar de Bernstein dizer “A realidade não mente” mas nossa verdade paradoxal gera conflitos que vacilam entre a verdade e a falsidade. Cada verdade pode “consagrar e inspirar” (Bernstein 2021: 18) pela canonização social e cultural para nos encarcerar em crenças dogmáticas religiosas, morais ou virtuosas, ou por manipulação política, para moldar nossa mente com factóides politicamente convenientes.  Bernstein diz, “O dever do poeta é falar a verdade para a verdade” (2016: 24). Para aceder a essa verdade Bernstein diz “Minha preocupação é mais O que é falso? Do que O que é verdade?”[13]─ para professar o mantra fundamental da investigação filosófica do Brihadaranyaka upanixade— neti, neti (Sânscrito: isso não, isso não): diz que para achar a validade de qualquer cognição, nós não requeremos a exploração de sua verdade, mas de sua falsidade com o processo de negação de todos os adjuvantes limitantes. 

Tagore: “Verdade e falsidade se misturam na vida—e ao que Deus constrói, o homem adiciona sua própria decoração.  Somente aquelas foram verdades puras, as que foram cantadas pelo poeta” (1922: 759). A incerteza e contradição contínuas da realidade do mundo de cabeça para baixo apelam ao persuasor escondido no poeta a revelar o infinito dentro de si mesmo, a mais alta realidade, a alma, o universo da personalidade, a essência íntima do ser.  Bernstein não só vocifera sua balada “Covididade”, mas também nos encoraja a encarar nosso desespero irreparável com seu horóscopo psicoanalítico─ “Os anéis de saturno envolvem seu desespero: seja corajoso!  Cante uma canção de sua infância quando se sentir o mais distanciado dela” (2021: 145) para dizer que esperança e desespero são só Maia, a ilusão do conceito─ um par de forças opostas que interagem em seu mundo dinâmico com a realidade multidimensional: tenha coragem para aceitar o fato e seguir em frente.

Ecoando o Taittiriya upanixade: “Brama é a verdade, o conhecimento, e o infinito”[14], Tagore identificava três formas do humano─ Eu sou, eu sei, eu expresso. A percepção do “eu sou” é a verdade de Brama; “eu sei” é a forma de conhecimento e “eu expresso” é sua forma infinita. Cada manifestação nesse mundo é uma forma de jubilo de Brama, a verdade da verdade, o todo, a alma. Quando a jubilação vem à tona em suas formas, a expressão final de nossa matriz criativa revela o infinito em nós, porque a poesia é o produto de um poeta desperto que destrói toda avidya [Sânscrito: ignorância] para explorar todas as possibilidades de expressão.  Nosso Puran [Sânscrito: “antigo”, usado para fazer referência ao gênero literário indiano antigo, diz Satchitanandam Brahma─ onde Satchitananda é um epíteto atribuído a Brama.  Três números de atributos indivisíveis─ sat [Sânscrito: existência], chit [Sânscrito: busca/investigação/exploração para entender a existência], ananda [Sânscrito: jubilação extrema ganha pelo sucesso na busca]. Receber essa jubilação extrema é chamado receber Brama. Um poeta iluminado aceita a realidade como ela é com seu bom e seu mal, com seu certo e seu errado, para explorar dentro da realidade, para entender sua existência, para receber Brama, a jubilação extrema.

Bernstein aborda a verdade da poesia: “Poemas não são nem verdadeiros nem falsos, mas eles podem refletir a diferença entre verdade e veracidade, dito e significado, escuta e audiência” (2016: 249). Um poema age como um órgão do sentido para revelar um mundo novo para nós, para ecoar Tagore:  “A beleza é o sorriso da verdade/ quando ela contempla seu próprio rosto num espelho perfeito.”[15] Se a beleza é a verdade ou o sorriso da verdade, certamente ela é omnipresente. O poeta ouve o ritmo da beleza, sibilando por toda a parte. O poeta descobre a ilusão, tecida na urdidura e trama de luz e sombras, a oscilação rítmica entre esperança e desespero, para reconhecer o paradoxo da realidade, para personalizar sua beleza impessoal.  Bernstein sabe que a realidade não pode ser imitada.  Então ele vai além da visão mecânica dos olhos, além da roda do tempo da realidade, para criar a hiper-realidade.

Mundo Patanormativo:

Bernstein:
Nada
É mais bonito
para a virtude
do que a irrefutável justiça
e a destruidora
dissidência: mutilações num
rosto
que nunca irão
absolver a estética. ((2021). 121).

A origem da palavra estética é o grego aisthetikos [perspicaz], mas houve muito debate sobre a definição do termo.  Se é “a ciência que trata das condições da percepção sensual” (OED) ou “a filosofia ou a teoria do gosto, ou da percepção do belo na natureza e na arte” (OED), como o dicionário moderno tenta definir, o Sânscrito, a mais velha língua, proporciona a raiz verbal única nand─ a atividade mental que inclui duas ações mutuamente opostas.  Isso significa se referir à ação como no jogo de esconde-esconde das crianças, como a dança tandava de Xiva, a metáfora para os ciclos cósmicos da criação e da destruição, ou do ritmo eterno do ciclo interminável da vida e da morte em nosso mundo material.  Quando a pessoa recebe esse nand, ela sente ananda [Sânscrito: jubilação, prazer da mente]. Isso significa se referir à jubilação a partir do conflito ou paradoxo entre a autoexpansão e autocontenção, que é a essência mesmo de nossa filosofia da natureza.  É o prazer supremo de experimentar a beleza sobrenatural acima da materialidade ordinária.  É a jubilação da criança que ele sente nesse jogo de esconde-esconde, jubilação de um poeta/artista para escrever/criar a nova poesia/arte com a liberação total das sombras e da influência dos signos ou atributos da velha poesia/arte.  É a jubilação de um vira ao aplicar sua ação heróica com seu próprio estilo de heroísmo.  É a jubilação do cientista com sua inovação, jubilação do filósofo ao lançar uma nova luz no discernimento das verdades, infinita jubilação de Brama, o ser interior, a realidade suprema, que habita no espaço vazio de nosso coração, que se manifesta em formas múltiplas em nosso mundo.  Ainda assim para uma tal coisa chamada estética, a fonte de jubilação infinita, o poeta deve lançar um alerta em nosso mundo de pernas para o ar:

Desative seu bloqueador de poesia
Esse é um alerta inicial. Uma ação estética
Será tomada se não houver resposta.   (Bernstein 2021: 123).

É um alerta contra um ataque pelo bloqueador de poesia. O que é um bloqueador de poesia? Isso também é uma ação, chamada ização─ “o processo de fazer ou o fato de pôr alguém/algo ou ser colocado em um lugar” (OED), não lugar mas sistema, não todo sistema mas o sistema controlado pelas autoridades.  Isso é uma ação contra a estética─ normalização, universalização, imunização (para imunizar contra a resistência Bernsteiniana há, no entanto, escassez de vacina!), formalização, homogeneização, hospitalização (para mostrar hospitalidade pela absorção contra o Artifício de Absorção Bernsteiniano, não há, no entanto, camas de hospital disponíveis no momento!). Mas a raiz verbal do Sânscrito (uma das línguas mais antigas do mundo) de toda ação é ─cre─ similar ao cre(ate) em inglês, que dá origem à creation, a Poé-tica que define a poesia como “A criação rítmica da beleza”[16]. Nossos ancestrais linguísticos somente pensavam para o humano do mundo, mas não podiam imaginar que o mundo de cabeça para baixo onde o humanismo vai se tornar o nepohumanismo, o qual “universaliza as preferências imediatas do indivíduo ao estigmatizar como bárbaros aqueles que não são inteligíveis imediatamente” (Bernstein 2016: 295).  Aqui vem a ização, em nome da ação, da cultura oficial do verso para estigmatizar a estética em prol da normalização, segundo a norma formal de seus princípios oficiais. 

Apesar do dicionário inglês dizer que normal é─ “de acordo com, constituindo, ou não desviando da norma estabelecida, da regra, ou princípio”, minha visão ambíope [Francês: double vision]. visão contra a ambliopia oficial, induz a uma aversão do normal deles.  Uma pessoa carente sempre quer ir além de suas fronteiras para suprir suas necessidades. Ao invés de ir ele mesmo, seus olhos vão lá.  Mas nossos olhos captam a imagem das coisas necessárias somente peneirando o desnecessário.  Dessa forma noyon [Sânscrito: olho] faz a ação on pela ação de noy [Sânscrito: não] onde o não nega o desnecessário por um lado, e por outro, o on acende o necessário.  Mas a ambliopia oficial, a visão de um olho único, não consegue fazer essa ação dupla dos olhos, devido à sua deficiente percepção de profundidade.  Isso quer dizer que o normal oficial é nor(ma) + mal, significando a malversação da norma poética, que limita sua capacidade de interpretação e de julgar o valor do trabalho dos outros.  E o formal oficial é for(ma) + mal, significando o efeito da malnutrição de sua forma poética que não consegue apreciar outras formas, que medem a dinamicidade do mundo em contínua mudança.  Quando a informação sobre o objeto externo chega no nosso espaço-mente, a faculdade da percepção ou sensação da mente humana percebe/sente o objeto em questão, a fim de alcançar um conceito trabalhável para alterá-los/condicioná-los de acordo com seus sentidos externos da visão, audição, olfato, paladar e tato.  Mas existe um sentido interno no cérebro humano que conecta nossa faculdade de percepção através da mente e do intelecto.  Mas uma visão muito dualista do mundo de cabeça para baixo atual divide esse sentido interno para conectar a mente ao coração/alma e o intelecto ao coração/corpo.  Assim que nossa visão separa a alma do corpo, a mente da matéria, nossa faculdade de percepção não consegue sentir a totalidade integral a partir da visão fragmentada de nosso mundo. A ambiopia poética de Bernstein acompanha o processo de investigação através da pesquisa não-acadêmica, por causa do forte desejo que mantém o caminho alternativo aberto em face da ambliopia oficial, que só faz pesquisa acadêmica com um plano preconcebido específico, tendendo a uma certeza definida/fixa. 

Há um jogo de palavras entre a pesquisa acadêmica e a não-acadêmica.  Devido à ambliopia, os acadêmicos poderiam ver o “não” no sentido oposto, somente para relacionar o não-acadêmico com o não-informado! Eles não conseguem ver a ação dupla do “não” como na raiz verbal do “não” em Sânscrito, que dá uma idéia de uma ação dupla misteriosa, mais do que exclusivamente o sentido oposto.  Ela faz uma “ação na inação, e uma inação na ação” (hino: 4.18)[17] para realizar “A yoga do conhecimento” de acordo com nosso Bhagavad Gita. O homem, executando uma ação com non, possui o conhecimento de Brama, o todo, a alma, pela introspecção contínua sobre a verdade sobre si mesmo com uma verdadeira liberdade, a qual não é a liberdade de ação, mas a liberdade na ação, em nosso espaço-tempo em contínua mutação.  Em consequência, esse homem é dito sábio, porque é nessa verdadeira sabedoria onde a verdade se revela em sua própria criação infinita.  Entretanto, essa “sabedoria é estranha e indisciplinada” (Bernstein 2021: 111) sempre, não segue as normas da academia institucional. Essa é a forma como a pesquisa não-acadêmica de Bernstein avança, em um modo aberto face ao modo unidirecional acadêmico.  A visão iluminada de Bernstein está, na verdade, em ressonância com a filosofia oriental do Advaitism [Sânscrito: não-dualismo], que usa o terceiro olho para olhar nas esferas e espaços interiores de sua consciência suprema, para evocar uma imagem mental a partir da imagem mecânica formada pelos olhos.   Ao invés da visão de um olho único da cultura oficial do verso, a visão do terceiro olho desloca nossa atenção do modo racional para o modo intuitivo da consciência, originado na interação dinâmica entre a faculdade da mente e a faculdade do intelecto, a “imaginação intelectual”, no sentido de Paul Bové[18].  Não é irracional também, mas avessa à ortodoxia rígida do sistema fixo/autorizado/aceito da cultura oficial do verso no processo de derivação dos valores estéticos, os quais estão evoluindo continuamente através de nosso espaço-tempo, muito mais do que meramente intelectual.  Isso, na verdade, está em ressonância com o zen budismo, ecoando Suzuki, cuja visão geral da vida, adotada pela maioria das pessoas, “imagina que suas vidas são reguladas lógica ou matematicamente. O zen quer invadir essa citadela de pernas para o ar e mostrar que nós vivemos psicológica ou biologicamente, e não logicamente” (Suzuki 1934, 64).

A gíria bengali mal tem um duplo sentido─ maldade tanto quanto mercadoria.  A raiz verbal de mal em Sânscrito é mol─ alguma entidade que é nutrida dentro de fronteiras limitadas, que podem ser formas, normas ou visão limitadas. A normalização oficial é a malversação para mercantilizar a poesia no mercado de arte, para dar continuidade à história da arte unidirecional pré-concebida pela percepção de sua visão de olho único.  Mas a poesia de Bernstein está sempre carregada com a força interior das palavras para perceber a verdade interior, a alma das palavras, para fazer o iogurte de poesia no sentido multidirecional à moda do jogo de palavras visual de Duchamp em “caixa verde” ou Warhol em “caixas Brillo”, para “o fim da arte”, no sentido de Arthur─ arte + hur─ onde hur [árabe: livre, não escravo][19].  Isso significa acabar com a arte para liberá-la da convenção da história, para reunir/reconfigurar as discrepâncias aparentes, para inaugurar um novo período da história.  A cultura oficial do verso assume a moralidade como o alicerce de seu processo de normalização, porque as letras da palavra normal rearranjam-se para formar moral, com um extra n para significar não. A palavra equivalente nyaya [Sânscrito: moral] significa uma ação, matéria, ou sujeito que é certo ou verdadeiro, somente se ele tiver uma história prévia.  Por assim dizer, a moralidade resiste às inovações.  Assim, o poeta inovador rejeita a moralidade com a ética científica da ‘patafísica’, porque sua concepção do mundo compromete toda moralidade fixa, apesar de manter a promessa de uma ética não-moralista: “A ética é irônica, a moralidade sincera. Ética secular, moralidade religiosa. A poética é a refutação ética da moralidade em nome da estética” (Bernstein 2011: 78). Sua ética poética não conhece sentimento religioso formal ou normal, e rejeita a norma oficial do “sentimento virtuoso” com o comprometimento às patanormas da “veracidade poética”, nomeadas Pataqueronormatividades por Bernstein.  A verdade da realidade multidimensional de Bernstein vacila entre a verdade e a falsidade─ a contradição, não apesar de, mas por causa de sua virtude.  A voz horoscópica de Bernstein sugere a estética da maldade: “desafiar os escritos a rasgar” (2021: 144), para desafiar o código de condutas feito pelas autoridades que lhe dizem o que é certo ou errado, bom ou mal, e assim fazendo, “selam o acordo” com a resistência, porque “a resistência é uma forma de divinação” (146).

Então, simplesmente reverta a inversão do mundo de cabeça para baixo para entrar no mundo pataquérico de Bernstein.

Tradução: Isadora Olivé
———————-
Trabalhos citados:
Bernstein, Charles. 1987. O Sofista. Los Angeles: Sun & Moon Press.
———. 1991. Negociações duras. Los Angeles: Sun & Moon Press.
———. 1994. Cidade escura. Los Angeles: Sun & Moon Press.
———. 2001. Em sequência. Chicago: University of Chicago Press.
———. 2006. Homem afeminado. Chicago: University of Chicago Press.
———. 2011. O ataque dos poemas difíceis: Ensaios e invenções.  Chicago, University of Chicago Press.
———. 2013. Recalculando. Chicago: University of Chicago Press.
———. 2016. Um tom de poesia. Chicago: University of Chicago Press.
———. 2018. Quase/Acidente. Chicago: University of Chicago Press.
———. 2021. De pernas para o ar. Chicago: University of Chicago Press.
Suzuki, D.T. 1964 [1934]. Uma introdução ao zen budismo. Nova Iorque: Grove.
Tagore, Rabindranath. 2017[ 1922]. As obras completas de Rabindranath Tagore. Nova Déli, Índia: General Press.
Wittgenstein, Ludwig. 1958. Investigações filosóficas.  Traduzido por G. E. M. Anscombe, editado por G. E. M. Anscombe, R. Rhees, G. H. Von Wright. Oxford: Basil Blackwell Ltd.

[1] Original Francês Charles Baudelaire, Enivrez-vous (1864).

[2]          Fala: “Ser, ou não ser, eis a questão” por William Shakespeare, fonte: https://www.poetryfoundation.org/poems/56965

[3]               Shields Green (1836-1859), antigo escravo norte-americano, ativista pela abolição da escravatura nos Estados Unidos.

[4]            Bernstein conta a história desse ensaio como, “Um esboço preliminar deste ensaio, “Desestabilizando a palavra,” apresentado em “Tendências: Poéticas e Práticas,” Centro de Pós-Graduação da City University of New York, 24 de Fevereiro de 2010, por convite de Trace Peterson, e “Repensando a Poética,” Columbia University, 11 de Junho de 2010. Versões da obra foram subsequentemente apresentadas como Palestra Lahey, Concordia University (Montreal), 25 de Outubro de 2012; Palestras do Departamento de Inglês de Yale, 27 de Fevereiro de 2014; Conferência do vigésimo aniversário da EPC, 12 de Setembro de 2014; e “A vida social da linguagem poética,” da fronteira 2, Dartmouth, 22 de Maio de 2015. O ensaio foi finalizado em Janeiro de 2015. Um tom de poesia “tira seu título de  Um tom de filosofia de Stanley Cavell, dedicando-se assim às diferenças entre os tons de poesia e filosofia.”

[5]                Geeshie Wiley (1908-1950), guitarrista de country blues norte-americana.

[6]          Bridgeable Lines: Uma antologia de poesia mundial sem fronteiras em Bengali – Uma antologia com entrevistas & transcriações de poemas de 12 poetas americanos, co-editado & transcriado por Runa Bandyopadhyay e Aritra Sanyal, publicado por Aihik (Terrestre) na 43ª Feira Internacional do Livro de Calcutá em 2019. https://boighar.in/product/bridgeable-lines/

[7] Runa Bandyopadhyay entrevista Charles Bernstein, https://www.poetryfoundation.org/harriet-books/2019/03/runa-bandyopadhyay-interviews-charles-bernstein, acessado em Maio de 2021.

[8]                 Jack Spicer (1925-1965), poeta norte-americano, figura central da Renascença de São Francisco.

[9]            Karl Marx. O Capital, volume um, parte VIII: A acumulação primitiva, capítulo vinte e seis: O segredo da acumulação primitiva. Publicado originalmente em 1867. Website da organização marxista:  https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch26.htm, acessado em fevereiro de 2021.

[10]         O capital, por Karl Marx. Vol. 1. Isso apareceu como uma nota de rodapé, inserida por Engels, na terceira edição de O capital. Website da organização marxista: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch14.htm, acessado em fevereiro de 2021.

[11]         Poema “Ode sobre uma urna grega” em Lâmia, Isabella, a véspera de Santa Inês e outros poemas por John Keats, 1820. https://www.poetryfoundation.org/poems/44477/ode-on-a-grecian-urn, acessado em fevereiro de 2021.

[12]           The Open Boat, conto pelo escritor norte-americano Stephen Crane (1897).

[13]         O comentário de Bernstein em “Porque eu não sou budista” em Bernstein, 2018: 89).

[14]         Hino Taittiriya upanixade: 2.1.1, traduzido por Swami Gambhirananda, Kharagpur IIT, Índia (website), acessado em fevereiro de 2021, https://www.gitasupersite.iitk.ac.in/.

[15]         O Poema dos Vagalumes, por Rabindranath Tagore. Publicado originalmente em 1928. https://tagoreweb.in/Verses/fireflies-200/beauty-is-7741, acessado em fevereiro de 2021. 

[16]         O Principio Poético por Edgar Allan Poe. A Sociedade Edgar Allan Poe
de Baltimore website. https://www.eapoe.org/works/essays/poetprnb.htm, acessado em fevereiro de 2021. 

[17]           O hino do capitulo “A ioga do conhecimento” em Srimad Bhagavad Gita, hino 4.18, traduzido por Swami Gambhirananda, Kharagpur IIT, Índia (website), acessado em fevereiro de 2021, https://www.gitasupersite.iitk.ac.in/. 

[18]        Paul Bové (1949-), Professor de Inglês na Universidade de Pittsburgh, especialista da pós-modernidade, literatura e cultura.

[19]           https://en.wikipedia.org/wiki/Hurs


 Sobre Runa Bandyopadhyay

Poeta bilíngue bengali/inglês, ensaísta, tradutora e crítica em Bengala, Índia. É cientista de profissão. Como crítica, ela inventou um novo gênero em "poesia recorrente" e foi autora de Nocturnal Whistle (2019) em inglês, Traveller to BookYard (2020), Between the Lines (2012) e Light-Travel of the Dark (2017) dois livros de histórias e duas coleções de ensaios híbridos em bengali. Ela co-editou a antologia Hardcore Kaurab-2 com Barin Ghosal em 2013 e Bridgeable Lines: An Anthology of Borderless World Poetry em 2019. É colaboradora regular em várias revistas literárias.