O cubano exilado nos EUA Raoul Sentenat, recém falecido (janeiro de 2014), talvez seja o último grande pintor da história. A frase parecerá necessariamente despropositada face à irredutível incógnita do futuro. Mas parecerá ainda mais despropositada pelo fato de Sentenat, apesar de viver em Nova York, não ser uma “celebridade” do circuito internacional de arte. A mesma frase, porém, parecerá talvez um pouco menos descabida se considerada em relação ao passado e ao presente: Sentenat será o último grande pintor da história até que surja outro grande pintor (e não artista plástico no sentido lato) capaz de fazer frente, como ele, à história da pintura.
A distinção entre pintor e artista plástico, outra consideração inusual, é então aqui necessária.
Necessária, mas não simples: o próprio Sentenat era, além de pintor, um fotógrafo de grande talento. Porque, naturalmente, artistas plásticos lidam com as linguagens visuais, que são plurais. Porém unificadas por uma linguagem fundamental, o desenho. Portanto, apesar da linguagem específica que pratique, todo artista plástico é, ao mesmo tempo, um desenhista. O problema é que, se isto foi verdadeiro por quase toda a história da arte, foi verdadeiro por quase toda a história da arte: ou seja, não o foi em sua totalidade. Deixou de sê-lo a partir dos modernismos do século XX − e, mais particularmente, de Marcel Duchamp.
Ninguém, fora da esfera política, em que se impõe a coesão de ideias e ideários, tem de responder por seus seguidores, diluidores, imitadores, acólitos e cia. Portanto, Duchamp, autor ele próprio de uma grande obra experimental, não é o responsável, apesar de ter sido seu iniciador involuntário, pelo “duchampismo” – que cresceu, se espalhou e ganhou fama e fortuna sob o nome de “arte conceitual”.
A “arte conceitual” é um prato que não pode ser servido sem um aparato de explicações e justificativas, ou seja, sem uma bula, tornado-se uma espécie de criação que se propõe a fazer a propaganda de si mesma. A “arte conceitual” existe para materializar ou traduzir um conceito, que por sua vez traduz uma proposta, que por sua vez traduz uma ideia, um desejo, uma “sacada”, uma vontade de “intervenção” ou, por fim, o acionamento da mídia como trampolim para o dinheiro fácil através da fama idem. Trata-se, em suma, antes ou mais do que uma criação estética, de uma “proposta”. Portanto, assim começa o mantra do artista conceitual: “Minha proposta é…”. Em termos técnicos, a arte conceitual é a primeira, na história da arte, a não ter em sua base o desenho (mas a “proposta”), e, portanto, a prescindir do desenho.
Drummond, numa declaração pouco conhecida, afirmou: “O modernismo permitiu que quem não sabe escrever escreva”. Da mesma forma, também permitiu a quem não sabe desenhar ser artista plástico. O alemão Joseph Beuys (que, obviamente, sabia desenhar) daria o próximo passo, ao transformar uma constatação numa defesa e numa ideologia: “Todo homem é um artista”. Talvez seja. Mas, com certeza, nem todo mundo é um pintor. Muito menos um grande pintor.
Não será por acaso, no contexto dessa grande confusão mercadológico-ideológica (populismo democratista alimentado pelo multiculturalismo [todas as culturas são grandemente artísticas] e pela “política de gêneros” e das minorias [todo gay, toda lésbica, todo louco etc. é um artista]) que os dois maiores artistas plásticos do final do século XX e do início do XXI tenham sido pintores: Lucian Freud e Francis Bacon. Pois, como se sabe, pode-se enganar a muitos por muito tempo; pode-se mesmo enganar a todos por algum tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo. Neste sentido e neste contexto, o propalado “retorno à pintura” não foi um retorno, proposição somente aceitável de um certo parti pris, mas a continuidade de uma arte, de uma linguagem. Não-tão-mal-comparando, é como o caso do verso na história recente da poesia. Assim como o desenho é o fundamento da linguagem plástica, a reiteração de unidades discretas (em contraposição à linearidade contínua da prosa) é o fundamento estrutural e estruturante da linguagem poética: verso, do latim vertu, significa retorno (de elementos discretos). A poesia não é feita de “frases curtas” por capricho, mas por fundamento. As artes plásticas não se apoiam no desenho por outro motivo. Portanto, a “poesia em prosa” (uma contradição de termos) assim como a “arte conceitual” (outra: pois quem lida com conceitos é a filosofia; a arte lida com artefatos, porque não tem a ver com a ética, e sim com a estética), talvez devam ser e venham afinal a ser vistas, na história da arte, como avanços em direção ao vácuo, ao ultrapassarem os limites em que a atmosfera, a ambiência, o âmbito de uma dada linguagem ainda possui uma densidade minimamente respirável. Nem todo mundo é poeta, nem todo mundo é pintor, nem tudo é arte. Algumas coisas são comida, outras, necessidades, outras, chapéus, outras, bobagem.
Podemos e devemos, agora, voltar afinal a Raoul Sentenat, pois só agora se pode e se deve compreender a afirmação inicial de que ele talvez seja o último grande pintor da história. Não apenas porque se trata de pintura estrito senso; não somente porque gigantes (da pintura) como Freud e Bacon estão mortos; mas principalmente porque obras com a grandeza, a densidade e a dura beleza da sua não surgem todo dia. Como disse Décio Pignatari, não se faz uma obra-prima toda segunda-feira. Regra cuja exceção, por definição, são os grandes criadores.
Há algo de grandioso na capacidade de síntese das “máscaras” (termo do artista) de Sentenat. O mais evidente é a síntese da história da arte. Da arte recente, aí estão o “anticromatismo” que vai de Malevitch a Beuys, passando por Morandi, entre outros; o “espessamento” da pintura que começa com Van Gogh e culmina na “pintura matérica” do abstracionismo europeu pós-Segunda Guerra (com destaque para Antoni Tàpies); o “apagamento das fronteiras” entre pintura e escultura (na área do queixo de Fellaheen VII, a soma do desenho do arco, da profundidade da sombra e da espessura da tinta fazem a imagem quase se tridimensionalizar); o fim da definição e do contraste entre forma e fundo etc. Da arte antiga (ou seja, pré-modernista), o domínio do desenho, e, particularmente, do desenho no retrato, cujos elementos fundamentais foram definidos pelos gregos clássicos e redefinidos pelos renascentistas. Da arte não ocidental, a incorporação da máscara ao retrato, um paradoxo que não pode ser resolvido pela lógica, mas apenas pela estética, dado que o retrato é a tentativa mais profunda de captar, ao mesmo tempo, a humanidade e a “pessoalidade” do retratado, ou seja, como a comum condição humana se manifesta de modo único e particular naquele indivíduo, enquanto a máscara é uma estilização que foge a todo particularismo, a qualquer individualidade, invertendo a natureza do retrato ao traduzir o geral pela generalização.
Raoul Sentenat foi, como já referido, também um grande fotógrafo, além de escritor. Mas não há dúvida de que o ápice de sua arte são as suas “máscaras”, a última fase de sua pintura:
For the past three years, I’ve been painting masks and faces. I’m very attracted to ceremonial, magico-religious objects, such as idols, effigies, and fetishes. […] In my paintings, I explore the relationship between the face and the mask. I am obsessed with the human face, which − along with the hands − is the most responsive and eloquent part of the human body.1
[Nos últimos três anos, tenho pintado máscaras e faces. Estou interessado em objetos cerimoniais, mágico-religiosos, como ídolos, efígies e fetiches. […] Nas minhas pinturas, exploro a relação entre a face e a máscara. Sou obcecado pela face humana , que, junto com as mãos, é a parte mais sensível e eloquente do corpo humano.]
As “máscaras” de Sentenat são também, portanto, rostos, faces, e, assim, retratos, na síntese paradoxal acima descrita. Mas que, apesar de paradoxal, ou, na verdade, por não se deter ante tal paradoxo, amplia seu campo de síntese, de sintetização de uma arte, a do registro da face humana.
Outra grande síntese então se acrescenta, desta vez não mais relativa à história da estética, mas à da busca do autoconhecimento humano. O retrato tem um lugar particular na história da arte, porque se alimenta diretamente da e alimenta diretamente a psicologia, a antropologia e a história (“I paint people not because of what they are like, not exactly in spite of what they are like, but how they happen to be” [“Eu pinto pessoas não pelo que elas parecem, nem a despeito do que elas parecem, mas como elas acontecem de ser”] [Lucian Freud]). É o que distingue o retrato do ícone. O ícone, nisto semelhante à máscara, é a representação estilizada de um personagem (e aqui se distingue da máscara, representação estilizada de uma função mágica), enquanto o retrato é a tentativa pictórica de reproduzir um indivíduo real. As figuras humanas dos relevos egípcios, por exemplo, são ícones, não retratos, como os assim mesmo chamados ícones da arte bizantina. Mas os próprios antigos não desconheciam nem podiam desconhecer essa distinção. Quando uma cultura, como a africana, não produz retratos, apenas máscaras ou ícones, não é porque confunde ícones e máscaras com retratos, mas porque não tem interesse em criar retratos. Prova disso são os espetaculares retratos escultóricos criados pelos mesmos egípcios antigos das estilizações icônicas dos relevos.
O busto do príncipe Ankhhaf (Museum of Fine Arts, Boston) é outro exemplo da alta qualidade da antiga retratística egípicia:
Isso fica ainda mais evidente na sua comparação direta com figuras estilizadas:
O busto da esquerda é um ícone; o da direita (nosso príncipe Ankhhaf numa foto a cores) é um retrato. Grande parte da história da arte é a história da iconografia, de um lado, e da retratística, de outro. Por exemplo, o Moisés de Michelangelo (assim como o Davi e o Adão do teto da Capela Sistina) é um dos ápices da iconografia, enquanto os retratos de Lucian Freud são uma das culminações da retratística.
Falar em “ápice” e “culminação” de uma arte não implica na ideia tão acalentada por velhas vanguardas de uma “linha evolutiva”, pela qual a arte se aprimora, se “desenvolve”, como a ciência, por exemplo, que de fato é acumulativa. Porque a ciência é necessariamente acumulativa: descobrir o já descoberto não é fazer ciência. Mas a arte só é acumulativa se quiser: os renascentistas, como o próprio Michelangelo, adotaram os gregos clássicos como modelo a imitar e, portanto, a atingir. Já os modernistas repudiaram a técnica pictórica da perspectiva (nascida no mesmo Renascimento) em nome da autonomia da arte. Essa autonomia explica desde o impressionismo, com suas pinceladas “trêmulas” que parecem pinceladas, até o abstracionismo, passando pelo cubismo e outros ismos. Ismos cuja pluralidade e cujas conquistas estéticas demonstram que o abandono deliberado de conquistas técnicas, na arte, não é necessariamente empobrecedor como seria na tecnologia e na ciência.
Raoul Sentenat é um modernista, tanto porque o “pós-modernismo” não existe quanto porque sua arte não tenta eliminar a autonomia modernista, ou seja, sua não subserviência a uma imitação tão servil quanto fiel do referente. Ao contrário: daí sua opção radicalmente modernista de fundir iconografia e retrato, máscara e face. Daí, mais uma vez, a grandeza de sua síntese. Daí, por fim, o lugar que sua criação deveria ocupar na história da arte.
Há aqui algo de picassiano (e também do próprio Picasso, talvez) na grande força expressiva dos olhos e na sutil expressividade da boca em meio ao primitivismo geral do tratamento e ao pobre delineamento dos detalhes, tudo amalgamado pelo exímio domínio do desenho, do traço.
Difícil dizer se se trata de uma máscara que perdeu sua generalidade facial estilizada para ganhar os elementos de expressividade individual de um retrato ou de um retrato tratado como (quase) máscara. Provavelmente, ambos, ou seu título não seria Ambia (ainda que Ambia represente, talvez, além do prefixo ambi– de ambivalente [igual em português e em espanhol] também e ambivalentemente o nome de uma pessoa).
Como em Ambia, é difícil dizer se se trata aqui de uma máscara que perdeu sua generalidade estilizada ou de um retrato tratado como (quase) máscara. Mas é fácil perceber elementos comuns também com Initiation II, ou seja, a grande força expressiva dos olhos e a sutil expressividade da boca em meio ao primitivismo geral do tratamento e ao parco delineamento dos detalhes.
Não é uma máscara porque é um retrato, não é um retrato porque é uma máscara, e um retrato-máscara ou uma máscara-retrato em que nada está estanque, mas em que tudo transborda: a tinta “sangra” na materialidade da tela; o nariz sangra na semanticidade da figura; a forma “sangra” nas margens do suporte pelo enquadramento. O resultado é outra retomada de um elemento recente da história da arte, o questionamento do suporte (exemplificado “dramaticamente”, por exemplo, pelos cortes na tela de Lucio Fontana). Aqui, o suporte é na verdade eliminado enquanto tal, pois o enquadramento faz com que tudo, ou seja, toda a peça, tanto o suporte quanto a figura nele pintada, torne-se um todo que é não é mais a representação de uma máscara sobre um suporte pictórico, mas a própria máscara.
Aqui o retratista se impõe ou sobrepõe ao “mascarista”, apenas para ser por sua vez sobrepujado pelo modernista, que opera por subtração: subtração dos elementos da perspectiva (mas não dos de volume), do cromatismo, do fundo naturalista ou realista e, por fim, da diferenciação entre figura e fundo. A figura mal emerge da matéria da tinta de que é feita, lembrando os “escravos de pedra” de Michelangelo. Ao mesmo tempo, tudo resulta numa grande emergência compensatória da expressividade patética e fugaz da figura.
O mesmo pode ser dito de Mask For Urban Jungle I, com a diferença de que aqui tudo é ainda mais acentuado pelo menor realismo do desenho:
Mas talvez a criação mais impactante de Sentenat seja Grey Clown:
Não se trata de uma máscara, pois máscaras não têm ombros. Nem reproduzem emoções simultâneas, como espanto e medo num olho, tristeza no outro, e algo que seria uma mistura do pasmo e do asco mais profundos na boca, se a própria boca, devorada talvez pela intensidade de tais sentimentos, não tivesse se tornado um buraco inorgânico, um vórtice de lama, uma bolha estourada de lodo. E é em torno dela que uma máscara afinal se evidencia sobre a face da figura (não sendo a figura em si). Uma máscara de maquiagem, a maquiagem branca do clown, do palhaço, aqui feita de tinta espessa. A tinta que materializa a figura, portanto, ao mesmo tempo faz as vezes de um elemento semântico, aquele que não teria sido manipulada pelo pintor, mas pelo próprio retratado. Mas ele é tão espesso e tão grosseiramente aplicado que o resultado parece uma camisa de força facial, ou essa máscara de tinta atrás da qual ele tenta se esconder ou se proteger.
Embora a maior parte das “máscaras” de Sentenat não busque nem realize um equilíbrio equidistante ou uma síntese equilibrada entre máscara e face, entre ícone e retrato, mas manifeste um claro predomínio dos primeiros elementos, nunca suas máscaras são puras máscaras, como fica evidente em The Scream:
O Grito de Sentenat remete diretamente ao famoso Grito (1893) do expressionista norueguês Edward Munch.
A face distorcida que, aliás, parece uma máscara, e cujo desespero é o centro semântico e formal da cena (pois está no centro do quadro), é reforçada e amplificada, concentricamente, pelas mãos impotentes espalmadas no rosto, pelo frágil corpo longilíneo, pela água escura e pelo céu sanguíneo convulsivos do fundo, pela agressiva diagonal da ponte (com sua dura retilineidade cortando de trás para frente todos os demais elementos “moles” da cena) e, por fim, pela ambiguidade ameaçadora das pequenas figuras que por ela avançam. Essa pintura “narrativa’, apesar do tratamento cromático e formal característicos do expressionismo, guarda ainda muito da tradição pré-modernista, que remonta ao Renascimento.
Note-se a figura central, a diagonal do caminho, o mar e o céu ao fundo, todos elementos comuns com o quadro de Munch, e, mais ainda, sua composição a serviço da “narrativa” estruturalmente verossímil da cena retratada. Tudo isso foi eliminado do Grito de Sentenat, cujo radical modernismo se manifesta por essa eliminação da “narrativa”, do “literário” da composição, e, com ela, de todos os elementos semânticos e formais da tradição, como o fundo, substituídos pela materialidade anti-ilusionista da tinta em si. No canto inferior direito do quadro de Sentenat, a máscara-face deixa de fato de existir, fundida e confundida com o fundo, e ambos afinal eliminados pela presença autorreferente da tinta (incorporando, portanto, as lições do abstracionismo). Enquanto na “narrativa” de Munch o desespero é fruto de uma situação de ameaça externa, real ou paranoicamente concebida, no vazio narrativo e circunstancial de Sentenat (negando a famosa afirmação do humanista espanhol Ortega y Gasset, “O homem é o homem e sua circunstância”), o desespero é consequência de uma condição existencial, ou antiexistencial, ou seja, a inexistência de uma definição, de uma separação, entre o ser e o não-ser, entre matéria orgânica e inorgânica, entre vida e morte.
A síntese paradoxal de Sentenat, ao fundir máscara e face, em termos semânticos, e, ao mesmo tempo, ícone e retrato, em termos formais, elimina afinal o paradoxo para ser, tão somente, síntese (e assim realizar um projeto criativo: “Nas minhas pinturas, exploro a relação entre a face e a máscara” – e de tudo que isso mobiliza).
Segundo o “retrato” que se pode depreender dos relatos de seus conhecidos, e também de sua própria figura em fotografias, Raoul Sentenat era o avesso de uma personalidade midiática, de uma “celebridade”. Celibatário, professor do ensino médio, “rato de biblioteca”, musicólogo amador, vivia no centro do mundo, e particularmente do mundo da arte que é Nova York, esperando a aposentadoria como professor para “poder viver realmente”. Como disse Drummond sobre Vinicius, “esse viveu como um poeta” – enquanto o próprio Drummond teria vivido uma vida comum. Assim como Sentenat. Isto explica em grande parte a recepção de sua obra até aqui. Pois se o pintor cubano está longe de ser desconhecido, está igualmente longe de ter o reconhecimento a que faz jus, e que já teria provavelmente alcançado se fosse outra, não a sua arte, mas a sua personalidade. Resta saber se, como acontece na “arte conceitual”, também na pintura a personalidade do artista deve ser “exuberante” para sua arte ser devidamente recebida; ou, o que dá no mesmo, se o modelo do artista-celebridade, ainda que anterior à “arte conceitual” e seus Damien Hirsch, depois de tão hipertrofiado por eles, hoje não enfraquece a recepção de artistas mais discretos, a despeito da nada sutil força de sua arte.