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Crônicas da Era Bush, de Eliot Weinberger

Crônicas da Era Bush, de Eliot Weinberger, tem mais méritos que deméritos ao revelar, por meio da voz de um cidadão norte-americano – no caso, da elite –, as chagas dos dois mandatos de George W. Bush, o primeiro deles obtido graças a juízes conservadores da Suprema Corte dos Estados Unidos, nomeados por Bill Clinton, que decidiram contra a recontagem de votos na Flórida, impedindo a vitória de Al Gore. Weinberger é, sobretudo, um tradutor de poesia e, especialmente, da de Octavio Paz (traduziu suas poesias completas), além de ensaísta.

Movido por uma indignação genuína (e tipicamente nova-yorkina), começou a escrever manifestos, sob o calor dos fatos, desde a “eleição” de Bush até o ano de 2005, disseminando-os pela internet e, finalmente, recolhendo-os em volume. O livro versa, basicamente, sobre a adoção do unilateralismo na tomada de decisões por parte dos Estados Unidos durante o governo Bush e sobre a utilização dos ataques ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, como pretexto para disparar a guerra expansionista, anteriormente já planejada pelos ideólogos republicanos, que o mundo inteiro ora testemunha, atônito. Um dos pontos positivos desse trabalho é o de desvelar, em detalhes, como a administração republicana não só não procurou contornar os interesses financeiros e econômicos internos por meio de exigências de Estado como também se entregou inteiramente a eles, numa simbiose nunca vista antes.

Torna-se paradigmática, nesse sentido, quando os Estados Unidos vivem um momento econômico ruim, com enorme déficit fiscal e social, a frase do diretor da Câmara de Comércio dos EUA, Thomas Donahue, transcrita por Eliot para exemplificar as políticas republicanas: “Ele disse que as pessoas que ficaram desempregadas recentemente deveriam ‘parar de se queixar’”. Ou ao apontar a política meramente colonialista de Bush: “Saddam Hussein foi monstruoso. No entanto, a maior parte de suas ações monstruosas ocorreu nos anos 1980, quando ele era um aliado dos EUA – um baluarte contra o fundamentalismo iraniano”. Outro dos méritos desse trabalho é o de descrever em minúcias a revogação da democracia formal nos Estados Unidos sob a desculpa de “guerra ao terror”. Eliot põe o dedo nas feridas da supressão dos direitos civis, de Guantánamo e de Abu Ghraib, com a implantação da tortura oficial de Estado, bushiana: “… O detento número 8 teve sua comida jogada na privada e recebeu ordens para comê-la. O detento número 7 teve que latir como cachorro, enquanto policiais do exército cuspiam e urinavam nele; foi violentado com um cassetete, enquanto duas policiais do Exército assistiam…”.

Em todos os artigos de Weinberger, Bush é descrito como “fraudador”, “déspota”, “venal”, “perverso”, “bobo” (na acepção de manipulado) etc.; leia-se o seguinte trecho: “Ou, então, o meu momento Bush favorito: um discurso que fez para um grupo que presta serviços comunitários, dizendo que são exemplos daquilo que torna os EUA fortes e livres. No dia seguinte, seu governo eliminou totalmente os fundos governamentais destinados a eles”. No entanto, aí começam a vir à tona alguns dos problemas do livro, George W. Bush nunca é nomeado como um ditador porque é “um bobo manipulado”, quando, de fato, é um ditador, como um Augusto Pinochet atenuado (atenuado apenas porque não dissolveu formalmente o Congresso, embora tenha aprovado todas as leis contra os direitos civis), deixando escapar um velado nacionalismo do autor dessas crônicas, que acerta, entretanto, quando vislumbra a correção do governo espanhol ao tratar os atentados de Madrid como caso de polícia, e não de guerra.

Outro dos problemas do texto aparece no tratamento preconceituoso que dá à América Latina e ao Terceiro Mundo, quando Eliot afirma: “Atualmente, as nações pós-coloniais da Ásia podem estar no Oriente, mas aquelas na América Latina ou África não estão no Ocidente”. Estariam onde então, no quintal do Village? Ou ainda quando assevera que os Estados Unidos se transformaram num “país de Terceiro Mundo”. Eliot promove igualmente comparações açodadas, como aquela entre Washington e Brasília, “cidades artificiais”, nas quais os governantes permaneceriam distantes do povo em virtude dessa artificialidade. Ressalve-se que Brasília foi projetada por Lucio Costa e Oscar Niemayer, num momento democrático, e não tem tantos afro-miseráveis quanto o Distrito de Colúmbia. Todavia, não é porque as capitais são ou deixam de ser artificiais que os povos estão distantes delas. Washington foi palco, no final dos anos 1960, da maior manifestação contra a guerra do Vietnã, ao som da canção Give peace a chance, de John Lennon. E não importa que suas marchas de protesto sejam organizadas por pessoas de outros estados norte-americanos.

Todavia, a principal contradição de Crônicas da Era Bush – que não invalida sua leitura, rica em informações – é intuída pelo autor, quando reconhece que falar sobre Bush e seus assessores “é reviver o antigo pesadelo de gritar sem fazer nenhum barulho”. Faltou a Weinberger dizer, com mais profundidade, que o autoritarismo norte-americano não é exclusivo da Era Bush, quando então apenas irrompeu de maneira unilateral, bárbara e mais danosa ao mundo do que nos governos que adotaram a estratégia do soft power, como o de  Clinton, que preferiu “manipular” a ONU e, desse jeito, não abalar as auto-images/stories norte-americanas de “liberdade”. O autoritarismo daquele país é, há muito, cultural. Além disso, faltou-lhe dizer que, antes de Bush, os norte-americanos viviam inebriados por uma riqueza fabulosa (Consenso de Washington), que cooptou artistas e militantes da democracia, deixando para trás – como se tivesse ocorrido há séculos – os dialógicos anos 1960 da contracultura e qualquer idéia interna de “contrariedade”.

Outra das distorções de Eliot é atribuir à revolta islâmica um caráter adolescente (a qual, mesmo se o tivesse, ainda assim não justificaria os atos de Bush, como ele mesmo acentua), como se a jihad fosse equiparável ao “maio de 1968”, como ele compara. E como se o maio de 1968 tivesse sido juvenil e inócuo quando, para teóricos como o italiano Nanni Balestrini, constituiu-se (e os anos 1960 como um todo) num momento comparável à Renascença. Celso Lafer, em recente artigo publicado em O Estado de S. Paulo (18 de fevereiro de 2007), refere-se deste modo ao antiamericanismo islâmico: “ele provém de inequívocas diferenças de vida e de mundo. É o caso do antiocidentalismo do islã radical, que identifica nos EUA o inimigo”. E não se acuse o ex-chanceler de ser adepto do clash of civilizations. Como observa Weinberger, agora com pertinência, Bush utilizou-se do antiamericanismo islâmico de 11 de setembro, em certo sentido frágil, para desencadear uma guerra de expansão territorial e econômica, ignorando as instâncias multilaterais do mundo, o que o coloca em risco de extinção. Causa-me angústia a leitura do livro, porque verifico que vivemos, na verdade, numa “era” sem possibilidade de oposição ou na qual, a cada dia, a oposição, quando mais necessária, torna-se menos potente.

Crônicas da Era Bush
Eliot Weinberger
Editora Record, 2006, 317 páginas
Tradução de Alexandre Kappaun


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.