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Quem se preocupa com raiz é agricultor

Entrevista de Vladimir Safatle ao Coletivo Zagaia*

CZ: Dá impressão de que a estética pode dar respostas que já não estão no campo da política, ou pode levar pra outro campo…

VS: Mas, de fato, eu acredito nisso. E acredito com muita clareza, em duas coisas: primeiro, há uma desconsideração da estética por certas correntes da filosofia. Isso é um equívoco brutal, porque esquecem que as manifestações artísticas são setores da história da razão. Problemas ligados à constituição da forma estética são ligados de maneira direta às estruturas da racionalidade. Devemos nos livrar de certo preconceito filosófico que vê a arte como um campo da intuição, da expressão, da autenticidade, ou seja, de tudo aquilo que não alcança o estatuto da prosa do conceito – o que é totalmente falso, porque a arte produz conceito e toda a questão da filosofia é compreender como essa produção de conceito pode servir de campo indutor para problemáticas em outras esferas da ação humana.

Por exemplo, uma das coisas que sempre me incomodaram em relação a certos comentadores de um autor como Adorno era não compreender isso. Parte-se da ideia de que Adorno representa um momento da história do pensamento do marxismo ocidental em que, devido à descrença em relação ao potencial emancipador do proletariado, a descrença de que haveria algum agente social capaz de realizar as modificações profundas nas formas de vida, dá-se um passo pra trás em direção à estética. Essa leitura é totalmente equivocada, porque ela se esquece de perguntar até que ponto a estética, na verdade, é um setor fundamental de reforma social, é um setor fundamental de reconstituição dos nossos modos de ordenamento e de nossas formas de vida. Pois tal esforço de pensar a estética, no fundo, é o esforço de pensar como modos de ordenamento presentes nas obras de arte podem ter forte capacidade indutora em outras áreas da ação humana. Então, quando, em meus livros, os últimos capítulos sempre acabam tratando da estética, na verdade, é uma forma de dizer que esses problemas todos podem se resolver, se nós tivermos um cuidado maior sobre a verdadeira força de emancipação do campo da estética. É um pouco fazer a seguinte pergunta: por que os nazistas não ouviam Schöenberg? Porque se trata de uma música que fornece a imagem de uma nova ordem, de um novo modo de ordenamento, é um novo modo de estabelecer o que é uma diferença, identidade, unidade, síntese – é uma outra forma de pensar. E se há algo que a filosofia nos ensina é que o mais profundo nos processos de transformação social ocorre quando uma nova forma de pensar entra em cena. O que a arte faz é simplesmente nos ensinar a pensar de outra forma.

CZ: Daí a importância da música diante de todas as artes. Porque na maior parte de seus textos, você apresenta não apenas a estética, mas também a música.

VS: Há três razões para isto. A primeira é que, de todas as artes, é a de que particularmente eu sou mais próximo. Tive formação em um conservatório sendo, pois, o que eu consigo discutir melhor. Em segundo, existe na filosofia brasileira um desconhecimento muito grande sobre as reflexões filosóficas feitas em torno da música, o que é algo estranho para um país que se diz tão musical. Trata-se então de lembrar como a música foi um setor fundamental na estética filosófica. Por fim, (acredito que aí é algo interno da história da música no século XX), eu tenderia a afirmar que, de fato, de todas as artes, a música foi a que mais conseguiu problematizar a sua forma, por uma série de razões, dentre elas o fato de a autonomia ter encontrado na música seu vetor de desenvolvimento.

Eis um ponto pacífico, não só para musicólogos, mas também para críticos de arte, como Clement Greenberg. A ideia estética de autonomia nasceu a partir da ideia de autonomia da forma musical. Não é por outra razão que, quando Weber fala da autonomização das esferas sociais de valores e desenvolve o caso da arte, ele fala da música. No entanto, essa experiência interna ao campo musical fez com que a música se transformasse, dentre as artes contemporâneas, na mais problemática. Não é por outra razão que é a arte que tem mais problemas em relação à constituição de público. Isso não é um dado externo de sociologia da arte, isso é um dado interno de constituição da estrutura da forma musical. E isso acontece porque é como se ela tivesse ido longe demais. Então, nesse sentido, eu tenderia a dizer que a música fornece para nós a imagem mais avançada do que pode ser a arte no futuro. Por isso, eu acabo sempre discutindo a música.

CZ: Eu gostaria de te perguntar uma coisa, no capítulo do livro Cinismo: a falência da crítica, você coloca uma epígrafe que é muito interessante: “o carteiro nunca assobiará Schöenberg”. Do que se trata? Essa é quase uma provocação. Qual a localização desse carteiro? Por que ele não assobiará Schöenberg?

VS: Essa é uma frase, que Steve Reich pronunciou, pensando na seguinte questão: a música contemporânea se equivoca ao acreditar poder haver música sem pulsação regular e centro tonal. Para Reich, tais elementos musicais são quase um dado da natureza. É por isso que o carteiro nunca conseguirá assobiar Schöenberg – porque, em última instância, a forma crítica se voltou contra aquilo que não deveria ser criticado, que é certo enraizamento da nossa maneira de pensar em algum dado da natureza, como se a natureza fornecesse uma espécie de polo positivo de doação de sentido. Acho interessante levantar isso porque existe uma maneira de inverter essa preposição, que é mais ou menos a seguinte: existe toda uma discussão no interior da história da música sobre qual é a relação entre natureza e cultura. Por exemplo, quando se constitui a ideia moderna de harmonia através de uma teoria fisicalista do som, aparece toda uma teoria sobre a relação de dependência da cultura em relação à natureza, na medida em que a natureza produz sistemas de ressonância (você toca um dó, a próxima frequência vai ser uma oitava acima, depois uma quinta acima, uma terceira); ou seja, esses dados são fornecidos pela natureza e não tem muito que discutir. Isso nos permite construir um sistema que é calcado como um fato natural. Quer dizer, o que é interessante no interior no debate musical do século XX, é como a crítica se volta não só contra uma realidade social reificada, mas também contra uma visão reificada do que é a natureza. Ninguém vai negar que exista um sistema de ressonância, ninguém vai negar que o primeiro intervalo consonante é uma oitava, ninguém delira a ponto de fazer esse tipo de negação. Mas trata-se um pouco de dizer que esses elementos não produzem um sistema. Transformar esses fenômenos em sistema, isso é outro processo muito distinto. Então, o que é interessante no interior desse debate é um pouco dizer que nós podemos ter uma visão da natureza que nos fornece regras insuficientes. Não é que a natureza inexista, mas suas regras são insuficientes, elas precisam de certa suplementaridade fornecida pela cultura. Nesse sentido, a arte fornece o suplemento para uma normatividade insuficiente da natureza. Por isso, a primeira coisa a fazer é ensinar ao carteiro que a maneira como ele assobia está longe de ser natural, que seus gestos estão longe de ser naturais. Enfim, retirar um pouco de suas certezas imanentes. Certamente, ele não será mais um bom carteiro, mas ele assobiará melhor.

CZ: Eu tive uma impressão, talvez equivocada, de que, em alguns de seus textos, de certa forma, você não trabalha com um conceito de arte enquanto construção social, como representação de uma classe. Parece que esse conceito pra você não funciona pra arte, está em outro lugar. A minha dúvida é: você não tenderia a um certo idealismo na arte?

VS: Não, porque eu acho essa leitura equivocada. Se nós devemos nos perguntar sobre como a sociedade intervém na arte, acho que devemos partir de uma questão formal. A forma estética é uma maneira de responder a uma série de questões – como: o que é a unidade? O que é a diferença? O que é identidade? O que é a ordem? Como eu me relaciono com o não idêntico? – ou seja, todas essas questões têm forte cunho político; no fundo são questões políticas que a arte responde através da sua forma.

Várias pessoas pensam a relação entre arte e sociedade através de uma leitura semântica das obras de arte, ou seja, querem saber qual seria o conteúdo que se discute ali. Eles acham que se você faz uma canção de protesto pedindo a reforma agrária, então você faria algum tipo de obra de arte fiel a certa visão política. Eu diria o contrário: que neste caso você faz o que há de mais reacionário, porque você esquece que a questão fundamental de todos aqueles que de fato se comprometeram com transformações políticas efetivas era a capacidade de permitir aos sujeitos pensarem de outra forma, terem outra estrutura do pensamento. Se você não conseguir pensar de outra forma, as questões políticas desaparecem completamente, porque elas viram meras questões de redistribuição: se você tem problemas de redistribuição na vida social, então o campo da arte pode servir como um panfleto de manifestação, para ver se as pessoas ganham consciência de que esses problemas de distribuição são problemas muito importantes. Mas isto a propaganda faz melhor. Tudo bem, pode ser importante, mas isso não tem nada a ver com arte. Assim, é muito interessante como alguns setores da esquerda são, do ponto de vista artístico, os mais conservadores – desde a querela de Maiakóvski com os escritores do partido comunista, que já faz aí algum tempo, esta é a questão: vocês não estão entendendo o que simplesmente a arte é, o que significa obra de arte, qual tipo de questão uma sociedade procura resolver quando ela produz uma obra de arte; vocês estão reduzindo a noção de estética a sua dimensão mais propagandística. Para evitar esse tipo de equívoco, acho que devemos entender que, através do caráter radical da sua forma, a arte é capaz de produzir um impacto político. Só há a arte de forte teor político quando é autônoma. E aí tem uma segunda questão interessante: normalmente quando se fala sobre a autonomia da arte isso parece um pouco retomar um discurso da arte pela arte, onde a relação entre arte e sociedade desaparece. Eu insistiria no contrário: só quando é radicalmente autônoma, quando a arte fala dela mesma, ela é política; só quando ela deixa de falar da sociedade e fala dela mesma que ela é política. Por quê? Jacques Rancière tem uma ideia boa a esse respeito, que é mais ou menos a seguinte: aqueles que criticaram a importância da discussão sobre a autonomia no modernismo estético, esqueceram que a autonomia é uma maneira que a arte tinha de fazer apelo a uma comunidade por vir; ou seja, uma maneira de dizer que a obra de arte não reconhece mais a ordem reificada na realidade social. Ela não conhece mais o modo de visibilidade naturalizado na realidade social, não conhece mais o modo de narrativa reificado na realidade social. A arte procura constituir uma comunidade possível a partir de uma outra visibilidade, ou de uma outra narrativa, de um outro modo de ordenamento; e isso só ocorre quando ela é radicalmente autônoma. Neste sentido, não há escritor mais político do que Mallarmé, não há músico mais político do que Schöenberg, não há pintor mais político do que Kandinsky. Acho que é por aí que essa discussão entre arte, política e sociedade deve ser organizada.

CZ: Mas, com a ideia de que existem formas privilegiadas dessa arte, formas que são mais autônomas, você, falando do Brasil, por exemplo, poderia dizer que o samba poderia alcançar esse modelo de autonomia? Como você vê essa critica? Porque parece que você acaba privilegiando Schöenberg em detrimento de outros modelos mais próximos de nossa realidade.

VS: Bem, quem se preocupa com raiz é agricultor. Os agricultores da cultura creem na existência da autenticidade natural de camadas da população que ainda não foram colonizadas pela indústria cultural, ou não foram colonizadas pelo fetichismo da mercadoria. Essa expressividade natural deveria, pois, ser resgatada como você resgataria arqueologicamente um objeto: você vai e escava, procura recuperá-lo… Acho esse tipo de leitura equivocado por duas razões.

Primeiro, porque não há uma esfera da vida cultural que seja livre do fetichismo da mercadoria. Não existe o registro de uma reserva natural de cultura em algum canto perdido no meio da floresta Amazônica, ou no meio da comunidade dos caiçaras. Essa discussão me parece equivocada no seguinte sentido: você hipostasia o tradicional, esquecendo muitas vezes que o tradicional é o espaço dos comportamentos mais reacionários possíveis, os mais refratários ao movimento, à temporalidade, à ruptura. Por outro lado, trata-se de lembrar que a verdadeira pergunta é: qual a função social desta música para nós, que tipo de fantasia ela alimenta para nós.

De toda forma, eu lembraria que várias produções estéticas relevantes que se basearam na tentativa de recuperação desses materiais – vejam Béla Bartók e todo o trabalho cuidadoso que ele fazia de levantar todos os materiais típicos dos países do Leste Europeu, (como Romênia, Bulgária, Hungria) – era um trabalho que tinha em vista revelar estruturas formais avançadas em relação àquilo que a estrutura musical de então era capaz de suportar. Assim, a ideia era procurar, por exemplo, na complexidade rítmica das músicas búlgaras e romenas uma maneira de complexificar a regularidade do tempo. Por isto, tais elementos folclóricos apareciam no interior da obra de arte como princípios de desestabilização da forma e das maneiras tradicionais de escuta. Algo muito diferente, por exemplo, daquilo que nós vemos em Villa-Lobos. O elemento da tradição folclórica, quando ele entra em Villa-Lobos, entra como instrumento pacificador; ou seja, ele perde o estranhamento, ele traz a familiaridade do que garante uma escuta pacificada. Mas, para a arte, não há nada mais terrorista do que a ideia de familiar. Isto é justamente aquilo contra o qual se bate.

CZ :Eu consegui acompanhar a ideia da relação entre a arte e a razão. Mas me lembrei que li, em algum lugar, um comentário seu sobre David Lynch. E fiquei pensando: trata-se ali do mesmo problema ou ali existe certa maneira de se fazer a imagem, de fazer cinema, que não é pensada somente através dos preceitos racionais, quer dizer o campo do sonho, o campo de outra ordem?

VS: O que me interessava em Lynch eram duas coisas. Primeiro, o fato de ele conseguir colocar de uma maneira muito peculiar a tendência contemporânea de trabalhar com uma linguagem arruinada. A linguagem cinematográfica de Lynch é uma linguagem arruinada, pois composta por antigos clichês cinematográficos. Clichês de filmes noir, de filmes de terror, mesmo os efeitos especiais de terror são os mais simplórios que se podem imaginar. Toda essa gramática arruinada do cinema está lá. Mas está presente de uma maneira tal, que todos os elementos estão deslocados, todos estão fora do lugar. O resultado é extremamente rico. Este deslocamento faz com que, de certa forma, a sua obra se transforme numa obra de forte teor descritivo de alguns impasses da subjetividade contemporânea: é uma obra onde você não consegue abrir mão, recusar nada que do ponto de vista do estado atual da linguagem está gasto. Veja como do ponto de vista de estética é interessante: nós conhecemos a ideia modernista da grande ruptura, da autonomia enquanto ruptura. Lynch faz o inverso, não rompe com nada, todos os elementos da realidade social reificada estão lá presentes, como se eu não conseguisse me dessolidarizar, de não deixar de investir libidinalmente meu interesse em algo que eu sei que está na situação de ruínas. No entanto, esse tipo de vínculo, ao ser colocado numa espécie de quadro narrativo totalmente remodelado, ganha um novo sentido. Então, aquilo que parece muito gasto e muito visto consegue desvelar uma experiência de estranhamento.

CZ: Uma coisa em que eu fico pensando nesse sentido: eu acho que uma das coisas mais decepcionantes é a autobiografia de Lynch:A meditação transcendental. Mas, de certa forma, não é sintomático que talvez o autor mais inquietante na contemporaneidade seja pessoalmente conservador. E, digo, sendo politicamente uma nulidade no que ele tem a propor. Enfim, isso não é sintomático? E até essas ruínas não seriam muito mais talvez um sentimento de conservação do que um apontamento para outra coisa?

VS: Eu diria o seguinte: primeiro, que suas entrevistas são melhores que o livro. Por outro lado, existe uma questão interessante que você coloca que é a seguinte: em que condições alguém pode expor as contradições do seu tempo? Parece-me que, muitas vezes, só aqueles que vivenciam na sua vida tais contradições, conseguem expô-las de maneira fiel. Isso faz com que boa parte dos artistas traga na sua vida as contradições do seu tempo. Isso dá a impressão, por exemplo, de que quando ele fala do que faz, parece não ter consciência do que faz, porque de certa maneira está imerso nas contradições que expressa. Muitas vezes você precisa fazer parte do problema para conseguir atravessar o problema. Assim, se alguém como David Lynch não fosse um sujeito que mora em Los Angeles, perto do universo de Hollywood – se não estivesse lá, muito próximo, participando das festas, das bobagens de meditação transcendental em que todo ator de Hollywood acredita – talvez ele fosse incapaz de expressar o nível da contradição que é próprio da maneira com que nossa época se relaciona com esse universo da fantasia que é o cinema. Por isto, ele está perdoado.

CZ: Isso explica um pouco sua relação com a mídia: o fato de você se colocar como interlocutor nos jornais, na mídia impressa. Você quer vivenciar a contradição de perto?

VS: Não. Acho que nesse caso, eu me justificaria pela seguinte forma: existe uma tendência – que não é só brasileira, mas mundial – de transformar a universidade num gueto. Veja a área de ciências humanas, eles querem empurrar a gente para o gueto, porque depois vai ser mais fácil se livrar de nós.

Veja o que aconteceu no caso da França. Ela sempre teve uma tradição de intelectuais públicos como Sartre, Foucault, mesmo Deleuze. Você pega a quantidade de textos para jornal que Foucault escreveu. É uma coisa enorme. No caso de Deleuze também, não é muito diferente. Isto significava que você estava discutindo com a opinião pública (porque a opinião pública existe, não é uma abstração) questões que dizem respeito não apenas ao seu universo de intelectual, ou de seu universo profissional, o universo acadêmico. Isto é importante porque quando o Estado procurar cortar suas verbas, fechar seu departamento você fala e a opinião pública te ouve. Afinal, ela já te conhece, sabe que você não está simplesmente falando em interesse próprio (porque alguém mal intencionado poderia dizer: a universidade é o lugar onde você trabalha, vão cortar dinheiro da sua verba, você não vai mais poder viajar pra fazer seu colóquio e todo esse tipo de coisa). Então, o que aconteceu na França? Houve um momento em que essa figura do intelectual público saiu um pouco de cena, e aí tivemos essas figuras da universidade que transformaram a área de ciências humanas como espaço de especialistas. Durante 20 anos foi um pouco assim: salvo raras exceções, a universidade saiu do debate, desapareceu da imprensa, da televisão, de tudo. Quando chega um governo direitista e diz que vai cortar a verba de todas as áreas de ciências humanas, param a universidade, meses de greve, publicam-se defesas em jornais. Sabe o que a opinião pública fez? Nada! Absolutamente nada! Porque eles falaram: “Bem, eu nunca te vi, nem sei quem você é! Minha vida passou muito bem sem você e vai continuar passando muito bem sem você!”. Ou seja: eles se deixaram, vamos dizer assim, levar por este discurso contra a figura pública do intelectual, se deixaram colocar dentro do gueto, entraram no gueto. E aí suas cabeças foram cortadas de uma maneira muito mais fácil. Acabou.

Na Itália aconteceu uma coisa muito parecida. Durante anos, o Partido Comunista nunca conseguiu formar um governo. Aí se forma um governo com Massimo D’Alema e eles dão uma ajuda para a universidade. Em que sentido? Não é que a universidade vai aproveitar o momento e entrar no debate público. Fala-se então: “Vamos lá! Vou dar um dinheiro pra vocês, vocês querem fazer seu colóquio sobre Trotsky?” – e a universidade chama todos os especialistas e faz uma publicação e depois faz circular entre o pessoal deles. E foi isso que eles fizeram. Mas, quando chega um governo direitista deteriorando as condições de trabalho e pesquisa, a população sequer se mobilizou, porque os acadêmicos não estavam mais presentes, porque eles decidiram cortar os vínculos com a opinião pública.

No Brasil dos últimos anos, chegou-se a um ponto em que todos os intelectuais presentes na imprensa eram arautos do pensamento conservador. Então eu pensei: eles controlam uma revista pra trezentas mil pessoas; na minha sala tem no máximo 150 alunos, e algo me diz que esses trezentos mil são maiores do que os meus cento e cinquenta. Veja, eles vão constituindo uma pauta, uma agenda de debates, uma agenda de discussões que não é só política, é estética. Eu me lembro de um maluco desses que chamava Edward Said de farsante. Então, o sujeito que está se formando pelo jornal vai ler isso e vai começar a pensar assim. E se você não consegue responder, estas coisas vão sendo internalizadas. O outro chamava os modernistas de terroristas, de gente que só conseguia fazer música porque recebia o dinheiro do Estado. Ou seja, esse discurso começa a circular… e o nosso não circula! A gente fica conversando com convertido. Eu fico discutindo com quem pensa exatamente igual a mim, quem tem os mesmos interesses. Então, se não tivermos consciência de que uma das funções do intelectual das ciências humanas é fornecer uma pauta de debate, o próximo estágio será simplesmente fechar o nosso departamento. É o que está acontecendo na Europa: os departamentos de filosofia estão fechando. Simplesmente fecharam o departamento de filosofia de Middlesex (Universidade britânica) e eles vão fazer isso em todos os lugares onde puderem fazer, a não ser que você seja capaz de demonstrar que a reflexão que é feita na universidade te possibilita, te dá as condições necessárias para poder intervir na pauta do debate nacional ou internacional. Não é que ela tenha uma função social, no sentido dela só ser justificada a partir de uma função social prática. Mas ela permite que a pauta do debate sociopolítico se abra para o que a universidade produz.

Por isso, acho um equivoco brutal voltarmos as costas para a imprensa. Ninguém tem ilusões a respeito dos conflitos de interesse na grande imprensa. Mas a capacidade de negociação com grandes estruturas é um dado presente no pensamento desde o seu início. Bach tinha que compor a encomenda do príncipe – você tinha que ter em conta o gosto estúpido da realeza pra conseguir fazer alguma coisa. Ele sempre negociou e soube negociar. Mas também, de uma maneira ou outra, sempre conseguiu mostrar a que veio. Se perdermos isso, será nosso fim.

Posso dar um exemplo sobre o que acontecerá se perdermos isto: tem um grande amigo que é professor de Paris I, um grande especialista em estética hegeliana. É um desses alemães que fez um calhamaço de mil páginas sobre a história do sistema de cores (depois de Goethe, ele ainda se interessa por isso). E eu lembro que ainda morava na França quando houve a eleição presidencial de 2002. Foi o início do processo de guinada da agenda política em direção aos temas da extrema direita. Lembro-me de quando cheguei pra ele transtornado com isso: “Como uma coisa dessas acontece? As consequências vão ser dramáticas! Independente do sujeito ganhar ou não, ele conseguiu o que queria: agora a pauta vai ser ditada por ele!” – o que de fato aconteceu. Mas num belo momento, ele olha pra mim e fala: “Vladimir, afinal de contas, isso realmente importa?” Eu parei e pensei: “Com certeza o seu estudo do sistema de cores é mais importante…”. Ou seja, era uma pessoa tão ligada ao seu universo de pesquisa, tão formada na ideia de que você tem de ser o melhor dos especialistas, que não percebia que o futuro dele seria decidido lá! Porque, digamos que o Front Nacional ganhasse, o dinheiro do governo para a abertura de novos postos da universidade, para o financiamento de pesquisa na área ia desaparecer assim [Safatle dá um estalo]. Ou seja, mesmo pelos interesses mais egoístas, ele devia estar preocupado com isso.

Como se não bastasse, há a verdadeira questão: “você não está percebendo que a vida social vai ser completamente modificada?!”. Então, são pessoas que não enxergam mais os tipos de riscos que a vida social nos coloca em situações cotidianas. Isso é o resultado de uma visão totalmente equivocada do que deve ser um professor universitário. Ninguém vai começar a discutir problemas do cotidiano dentro da sala de aula, eu não vou usar a sala de aula pra discutir problemas políticos. Agora, é inegável que a sociedade espera que intelectuais ligados às ciências humanas sejam capazes de complexificar a pauta do debate das questões que circulam na nossa vida e, se você não consegue fazer isso, o preço vai ser muito alto.

CZ: Você poderia falar do que o pessoal tem chamado de “nova esquerda”? Algo que, de certa forma, você acaba sendo visto, por estar circulando, como uma referência do que seria essa nova esquerda. O que você vê dessa nova esquerda? Se ela existe, o que ela representa de fato?

VS: Levantaria três pontos. Primeiro, a respeito do legado histórico do século XX. Para uma ideia dar certo, muitas vezes ela precisa fracassar. Se você estivesse no século XIV e falasse que era republicano, as pessoas olhariam pra você e diriam: “Isso é impossível! Você quer colocar um sistema que já mostrou que não funciona? Como você pode insistir nisso hoje?”. Mas, hoje, todo mundo é republicano. A ideia precisou tropeçar para conseguir através dos seus erros se realizar. Eu diria que a esquerda está aprendendo isso; eu diria que as ideias das esquerdas precisaram fracassar para se realizarem num segundo momento, de uma maneira mais condizente com seus próprios conceitos.

Agora, quando entramos nos fracassos da esquerda do século XX, temos duas tendências: uma que vai contar a história das revoluções como a história dos massacres, história contada a partir de montanhas de cadáveres. Isso demonstraria que não é possível sair dos esquemas da democracia liberal, pois, quando se tentou sair, só deu em catástrofe. Agora, tem outra vertente, e acho que é uma nova tarefa da nova esquerda seguir por aí, que consiste em dizer mais ou menos o seguinte: “reconheço os equívocos que foram produzidos pelas revoluções, mas não admito em hipótese alguma a criminalização das revoluções. Entendo que uma coisa é o processo revolucionário, outra coisa é a gestão da revolução”. Foi um dos grandes equívocos do pensamento de esquerda não ter compreendido que, realizada uma revolução, existe outra coisa muito mais complexa e muito mais perigosa, que é a gestão do processo revolucionário. E foi aí que as coisas deram todas erradas. Foi aí que a revolução russa deu no que deu, que a revolução cubana deu no que deu, que a revolução chinesa deu no que deu. Uma revolução, a abertura de novas sequências, é uma Estrada muito perto de um abismo. Vai da astúcia de cada um saber não olhar para baixo.

Mas também não significa imaginar – e este é o segundo ponto da questão – que o único acontecimento político relevante é uma revolução. Tem também outro erro de outra vertente da esquerda que é não compreender, ou ainda, operar até hoje com uma dicotomia entre reforma e revolução. Quando você aceita esta dicotomia, você tem dois equívocos complementares: o primeiro é eliminar toda revolução, o segundo é só compreender o acontecimento como uma revolução. Destes dois equívocos temos que saber escapar. Primeiro, porque uma revolução não pode ser objeto de uma ação política. A revolução é o imprevisível na política, é a abertura da política para o imponderável. Você só compreende suas causas a posteriori. Quantas situações revolucionárias pareciam estar no limiar e não ocorreram? E quantas situações que pareciam improváveis se transformaram em revoluções? Isto porque ela coloca em circulação uma dimensão da contingência dos acontecimentos que não é organizada por nenhuma necessidade histórica. A necessidade histórica, nesse caso, só funciona a posteriori. Então, você não pode valorizar um tipo de intervenção política baseado em alguma coisa que é da ordem da própria contingência. Daí porque continuar operando nesta dicotomia é um equívoco.

Um segundo ponto: uma esquerda que não tenha vergonha do seu nome deve estar disposta a estabelecer também uma crítica dos limites da democracia liberal e da democracia parlamentar. A Nova Esquerda faz isso porque acredita na possibilidade de uma democracia realmente efetiva. Quer dizer, não se trata de defender experiências como o centralismo democrático, o partido único ou o populismo bonapartista – o qual, insistiria muito, não é um conceito vazio; ele é um conceito existente, e contra ele a esquerda tem que também saber fazer alguma coisa. De fato, na tentativa de ultrapassar a democracia liberal parlamentar, outros erros apareceram. Mas sabemos agora quais são os problemas. Isso não significa que a criatividade política se esgotou. Existe toda uma constituição de uma democracia de forte densidade popular, de forte densidade plebiscitária que ainda é uma tarefa por vir. Ela não foi realizada, algo que só a esquerda pode propor.

O terceiro ponto consiste em mostrar que a esquerda tem como uma das suas tarefas fundamentais realizar uma verdadeira política universalista; primeiro, porque para a esquerda, o problema da desigualdade é um problema político central. Só que essa desigualdade não é só a desigualdade da redistribuição, embora ela seja um elemento decisivo. Mas ela é também uma desigualdade de reconhecimento social, desigualdade que, muitas vezes, aparece como tendência da vida social contemporânea em se atomizar em núcleos comunitários cada vez mais isolados uns dos outros. Neste ponto, a esquerda deve insistir no seu radical igualitarismo. Toda essa presença dos temas de choque cultural, de choque de civilização, no interior político, demonstra simplesmente que as nossas sociedades ocidentais não conseguem realizar ideais igualitários. São sociedades de alta exclusão. O que acontece com os imigrantes na Europa, demonstra que o universalismo nesse território é marcado pela exclusão; é um universalismo daqueles que pensam como eu penso, daqueles que conjugam os valores como eu conjugo; ou seja, é um falso universalismo.

Neste sentido, o fundamentalismo tem, ao menos, um conteúdo de verdade. Pois ele é uma maneira equivocada de dizer, entre outras coisas é: a integração nunca ocorreu, porque quando você fala em integração, você fala em partilha de poder político, em partilha de poder econômico, em partilha de responsabilidade social. Um exemplo: quantos filhos de imigrantes árabes existem na Assembleia Nacional francesa? Dois de quinhentos e dezessete, embora eles sejam uma faixa de 15% da população. Isto simplesmente demonstra que a esquerda deve insistir muito no seguinte aspecto: existe uma tendência de colonização do campo político por afetos como medo e segurança, e cabe a nós rompermos com essa lógica da cultura do medo e da insegurança. Não simplesmente absorver o discurso, como a social democracia fez. Eles querem fazer uma espécie de cultura do medo com um rosto humano. Tudo o que eles conseguem falar é: “Não. Vamos fazer tudo com mais calma!” Quer dizer: “Vocês não vão acorrentar os imigrantes num voo charter! Vamos fazer outra coisa: vamos conversar com os caras, se possível colocar um animador dentro do avião, uma coisa mais humana, com brindes na saída!” Ou seja, não há diferença alguma a não ser de tom, porque eles absorveram uma pauta que é a pauta da direita, a qual consiste em afirmar que vivemos em uma sociedade da perpétua insegurança. Assim, o medo, o afeto continuam centrais. Daí, qual seria a função do Estado? É fazer a gestão do medo. Uma das maneiras de escapar é exatamente insistir no seguinte aspecto: nós não fomos ainda totalmente igualitários por nos deixarmos fascinar por conceitos que hoje não têm nenhuma realidade, como identidade e nação. Nós não conseguimos ser totalmente igualitários… Essa é outra pauta importante do pensamento da Nova Esquerda.

CZ: Pensando sobre a questão da imagem – seja no audiovisual, seja nas artes plásticas – o que seria uma perspectiva emancipatória no cinema e nas artes plásticas?

VS: Acho que uma das tarefas da reflexão filosófica sobre as artes é partir das obras, analisar as obras como quem procura modelos de reflexão. A melhor maneira de responder a sua pergunta seria ditando quais obras nos fornecem um modelo pra algum tipo de reflexão. Falamos do cinema de David Lynch. Eu falaria da fotografia de Hilla e Bernd Bescher. Acho que são obras extremamente relevantes para um tipo de reflexão sobre a natureza da imagem.

CZ: Você acha que a arte vive hoje, não diria um retrocesso, mas um momento de indeterminação?

VS: Eu acho que é fácil dizer: “Nesse momento, nossa produção estética não oferece nenhuma experiência de alta voltagem”. Nunca acreditei nesta atitude. Não acreditei porque normalmente as pessoas que falam esse tipo de coisas, conhecem muito pouco do que é produzido na contemporaneidade. Ao invés de falar coisas desta natureza, ganhariam mais se tivessem mais paciência e mais desejo de procura. É claro que personalidades como Duchamp, Kandinsky e Maiakóvski só aparecem uma vez a cada cinquenta anos. Não é toda hora que você vai encontrar obras com essa força. No entanto, a desqualificação do presente é feita muitas vezes como uma espécie de discurso genérico. Seria mais interessante insistir nas potencialidades abertas para o presente. Eu poderia citar aqui dez ou quinze artistas que são artistas da mais alta relevância e que mostram como a produção contemporânea da arte é uma produção rica. A música de Gyorg Kurtag, apenas para ficar em um. Parece-me que um pouco mais de humildade seria ótimo. A arte sempre surpreendeu e ela vai continuar sempre nos surpreendendo. Nos momentos em que acreditarmos que a porta estava fechava, a arte abrirá outra porta. Cabe a nós identificarmos estas portas que estão sendo abertas, ao invés de repetir o discurso de que não há mais portas a serem abertas.

*Republicada, em parte, em Sibila com autorização expressa de Vladimir Safatle. Publicada em 2011 originalmente em Coletivo Zagaia.