1. Rap e política
A audição recente de um não-tão-recente rap de Mano Brown, “Diário de um detento” (Racionais MC’s, Sobrevivendo no inferno, Cosa Nostra, 1998), levou-me a várias reflexões sobre poesia brasileira e política idem, que tentarei articular aqui (este texto, portanto, trata de poesia e de política, e não, frise-se, de poesia política, ainda que esta emerja eventualmente como um subtema). Porque dois grandes fracassos brasileiros se entrelaçam nas entrelinhas de “Diário de um detento”: o primeiro, do Estado, da política e da cidadania; o segundo, da poesia letrada contemporânea.
Rap significa rhythm and poetry. Rap não é, de fato, música popular, mas, muito mais propriamente, poesia popular. E como poesia, ou seja, texto, tem em seus temas um elemento determinante (isto pode parecer igualmente verdadeiro para a música, mas não é, ou não o é na mesma medida: além de existir a música puramente instrumental, na música cantada a letra é subsidiária à melodia, o que explica, entre outras coisas, que se possa gostar de canções em línguas desconhecidas). Nos EUA, seu país de origem, tais temas convergiram para duas vertentes principais: o sexo em versão de gangue, em que a mulher é um objeto degradado do prazer e do poder masculinos, e a política também em visão de gangue, resumida ao seu aspecto policial. No Brasil as duas vertentes principais do rap norte-americano têm incontáveis seguidores, imitadores e diluidores. Não é o caso dos Racionais, cujos poemas cantofalados são crônicas que funcionam de modo semelhante aos melhores contos da fase “brutalista” de Rubem Fonseca: ao descrever e reproduzir (pelo discurso direto, incluindo a fala e o falar) de modo bastante eficiente a superfície imediata de certa realidade social, dão a entrever seus substratos, tanto políticos quanto históricos. Ou seja, trazem à tona, em metonímia, a persistente e imutável barbárie brasileira – que os dois mandatos de Lula foram impotentes para sequer arranhar, para além de certa estabilidade econômica mais frágil do que se pretende e de um muito relativo aumento de consumo dos mais pobres. E é isso justamente o que mantém a atualidade de “Diário de um detento”, depois de mais de uma década. É também o que denota o fracasso político do governo Lula: porque a sua razão de ser era transformar o Brasil num país que não pudesse mais ser representado por poemas como “Diário de um detento”.
O fracasso de Lula não teria, porém, tanta importância, nem teria, então, tanto destaque neste texto, se não significasse o fracasso histórico do reformismo brasileiro. Como o PT concentrou durante toda uma geração o projeto de reforma inclusora brasileira, seu fracasso levou de roldão a possibilidade a curto e médio prazos de realização desse projeto. Simplesmente não se fala mais de uma ampla e profunda reforma do país de modo a fazer emergir uma realidade menos brutal. Ocorre que a responsabilidade de Lula por esse resultado é diretamente proporcional à sua condição particular de líder histórico do PT.
Uma rápida comparação com Nelson Mandela é esclarecedora. Se este ficou 27 anos na prisão, ao mesmo tempo em que solidificava sua posição e sua imagem de grande líder da luta antiapartheid, Lula ficou 22 anos na oposição, ao mesmo tempo em que construía e consolidava sua posição e sua imagem de grande líder da luta contra o apartheid social brasileiro, caracterizado pelos piores índices de distribuição de renda do planeta e pela proliferação metastática das favelas por todas as grandes cidades do país. A diferença entre um estadista e um político banal, sabe-se, é que o estadista coloca os interesses do país acima de seus interesses políticos pessoais, enquanto o político banal faz o contrário. Mandela foi um estadista porque, depois de deixar a prisão, queimou todo seu enorme cacife político em apenas um mandato, no qual afrontou tanto a vontade de vingança das lideranças negras quanto as desconfianças das elites brancas, a fim de evitar uma guerra civil (que resultaria na saída da maior parte dos brancos e na derrocada econômica do país) e assim permitir o início da lenta e dolorosa construção de uma sociedade multirracial pós-apartheid. Lula é um político banal por não ter usado seu grande cacife político para, após sua primeira e histórica eleição como um inédito líder popular reformista, confrontar o sistema político, a burocracia estatal parasitária, as elites econômicas patrimonialistas e as elites sindicais conformistas a fim de impor ou tentar impor a reforma político-eleitoral, a reforma fiscal, a reforma jurídica e a reforma previdenciária, sem as quais o Brasil não é, não pode ser e não será um país minimamente justo.
Em seu lugar, enquanto mantinha e aprofundava os principais parâmetros da política econômica e fiscal de FHC, escalando um patético Antonio Palocci como testa-de-ferro de homens ligados ao PSDB confirmados nos principais cargos da área econômica, em termos propriamente políticos Lula não fez mais do que alimentar o rápido e profundo processo de “fisiologização” do PT, que o levaria a se aproximar e por fim se igualar à parte mais podre do PMDB, a de Sarney e Calheiros. Tudo em nome da “governabilidade”, isto é, da realpolitik eleitoral e eleitoreira da manutenção do poder como objeto central da política (o que o projeto-frankenstein Dilma Rousseff, feito sob encomenda de uma aparatchik histórica, jamais eleita sequer para síndica, e de inúmeras cirurgias plásticas, inclusive ideológicas, escancara cruamente). Nada mais normal, apesar de tudo, principalmente em países já normalizados em relação aos parâmetros mais básicos da cidadania moderna. O que não é absolutamente o caso do Brasil (os Racionais que o digam).
2. Política e complacência
Cortado por estradas criminosas, transitáveis apenas ao sabor das intempéries, sem ferrovias ou transporte marítimo e fluvial significativos, com fronteiras abandonadas à própria sorte, à exceção de alguns pontos notórios, e frequentado confortavelmente por hordas incontáveis de contrabandistas, que trazem armas e cocaína tanto quanto levam pedras, ouro, animais silvestres e escravos (sim, escravos, como as brasileiras prostituídas no Suriname e na Europa), o país é um vasto fracasso de segurança pública, em que a polícia não apenas não previne e não investiga os crimes como é responsável por grande parte deles, na forma de assassinatos diários à luz do dia e de corrupção generalizada. É, igualmente, um vasto fracasso da justiça, cujos palácios grotescos são um monumento à sua inépcia kafkiana, negando aos cidadãos um dos pressupostos mais básicos da cidadania moderna. É, por fim, um vasto fracasso da educação pública, fazendo com que, nos níveis mais baixos, os estudantes brasileiros tenham os piores índices mundiais entre as maiores economias, enquanto, nos níveis mais altos, a produção científica brasileira é das mais irrelevantes. O realismo dos Racionais, pois é afinal do que se trata, se aclara então por contraste: seus poemas seriam simplesmente inimagináveis, e portanto jamais escritos, se seus membros tivessem sido adotados em criança por cidadãos de países como a Suíça ou o Japão. Não apenas países ricos – o que o Brasil também é, levando-se em conta sua posição relativa de 10ª. economia mundial num universo de aproximadamente 200 nações –, mas países em que os males sociais intrínsecos ao capitalismo foram mitigados o máximo possível por ações políticas, no sentido mais lato, de cunho político-social inclusor. O oposto da história brasileira. Incluindo os dois mandatos de Lula.
O fato de o Brasil ser um dos países mais ricos do mundo deveria tornar ainda mais rigorosa a condenação de seus insanáveis fracassos históricos, em lugar de servir de argumento econômico compensatório. No entanto, os argumentos compensatórios ganham vez e voz. Daí o fracasso político-social do governo Lula, atualizando e reforçando o fracasso histórico do Estado brasileiro (condição sine qua non para a existência, a pertinência e a persistência de um rap como “Diário de um detento”) vir se tornando uma questão novamente premente, ao menos para mim, ao constatar que, ao lado da sua enorme aceitação popular, a intelligentsia nacional parece também ter-se rendido definitivamente ao seu charme nada discreto. Daí que, em inúmeras conversas com integrantes mais do que representativos dessa intelligentsia, de poetas renomados a professores da elite universitária paulistana, tenho me deparado com manifestações explícitas crescentes de complacência com seu governo. Complacência que é tudo o que não existe em “Diário de um detento”. Antes de me debruçar mais detidamente sobre o rap irei, portanto, me debruçar sobre sua antítese, a complacência. Cujos argumentos principais são certo “respeito internacional” conquistado para o Brasil por Lula, o aumento do consumo dos mais pobres, a enorme aprovação popular e a impossibilidade de fazer mais ou melhor.
3. Política e complacência II
Começando pelo fim, a propalada impossibilidade de fazer mais ou melhor, dadas as condições políticas brasileiras, é uma falácia. Primeiro, porque o Estado brasileiro é organizado em torno de um presidencialismo extremamente poderoso, que torna o Legislativo um balcão de ofertas; segundo, porque o caráter de político banal de Lula, em contraste com a condição de estadista, simplesmente impede a real mensuração de suas verdadeiras possibilidades de ação reformadora. O que não foi de fato tentado não pode ser analisado. O argumento da impossibilidade é, no limite, um argumento de má-fé.
O segundo argumento complacente, relativo ao aumento do consumo das classes mais pobres, não passa, na verdade, da louvação de mais uma ação de modernização conservadora, mecanismo que tem caracterizado historicamente o país desde o fim da escravidão. Foi, assim, o caso da decretação da República pelas elites urbanas, com a subsequente outorga aos “coronéis” do papel de controle do eleitorado rural; do governo Vargas com sua industrialização estatal e seu sindicalismo atrelado ao Estado; do governo Kubistchek com a nova capital do mesmo velho país; do governo militar com seus investimentos em infraestrutura econômica e seus desinvestimentos em estruturas políticas democráticas; do “coronelista” governo Collor e sua integração ao mercado mundial via abertura para importações; do governo FHC e suas grandes privatizações ao lado da “privatização” das regras estabelecidas, com a criação ad hoc da figura da reeleição. Aumento de consumo, em si, não passa de aumento de consumo: ou seja, não é por si só um sinônimo de incremento de cidadania, que depende de outras e mais relevantes variáveis, todas devidamente intocadas pelo governo Lula. Além do mais, tal aumento de consumo foi na verdade bastante medíocre, se comparado a inúmeros outros casos recentes, da Coréia do Sul dos anos 1960 à Índia e à China atuais. Mas o mais importante: trata-se na verdade da consequência, afinal sociopoliticamente conservadora, da implementação do conservadoríssimo Consenso de Washington.
Para os que ainda levam em conta a honestidade intelectual neste tema, não é difícil pesquisar sobre o Consenso e compará-lo à política econômico-financeira de Lula: o que então se descobre é se tratar de sua mais perfeita aplicação em toda a América Latina, incluindo o famoso caso do Chile (fato que me foi apontado por um economista e empresário paulistano), além do próprio governo FHC (mais heterodoxo, por exemplo, ao manter até o fim o câmbio fixo, em vez do flutuante, preconizado pelo Consenso e adotado por Lula – mas rejeitado pela China, a fim de garantir suas exportações – junto com todas suas demais diretrizes principais, como o grande superávit primário para melhorar o perfil da dívida externa – à custa da capacidade de investimento público, o que nenhum PAC de ocasião pode compensar –, a alta taxa de juros como mecanismo principal de controle da inflação – comprometendo o crescimento econômico pela queda dos investimentos privados –, as metas inflacionárias etc.). Lula não foi um governante deplorável porque direitistas irredutíveis desprezam suas belas conquistas, mas porque suas conquistas conservadoras, limitadas à macroeconomia e marcadas pelo crescimento medíocre, desprezam a profunda barbárie histórica da sociedade brasileira, apesar da cegueira voluntária da esquerda (os prováveis motivos pelos quais Lula e cia. adotaram esse caminho – e que não são a convicção de se tratar do melhor a ser feito para o país – constituem matéria para outro texto).
O terceiro argumento, o da aprovação popular de Lula, impõe uma observação e um corolário. Trata-se, de fato, de mera “aprovação”, ou seja, de um fenômeno de pesquisa, não de verdadeira popularidade. As multidões não têm por Lula amores especiais, como os argentinos tiveram por Perón, que as atraía aos seus pronunciamentos. Ninguém sai de casa para ouvir Lula ou aplaudi-lo quando deixa o aeroporto. Suas frases (irritantemente medíocres) não se tornam bordões populares. Sua recente cinebiografia, que se previu um block buster, tem deixado os cinemas às moscas. Além disso, José Serra, o candidato da oposição, flutua na faixa dos 30% aos 40% das intenções de voto. A conclusão óbvia é que tal aprovação é tão somente um reflexo do aumento de consumo, seguindo os ditames do órgão mais sensível da anatomia humana, o bolso. Esse famoso aumento de consumo, porém, se dá na verdade ao custo de um endividamento torto, ou seja, longos parcelamentos submetidos aos mais altos juros do planeta, no contexto da estabilidade macroeconômica obtida pela pura e dura adoção dos parâmetros do Consenso de Washington, na esteira do primeiro choque de estabilidade conservadora implementado pelas medidas econômico-monetárias de FHC (igualmente órfãs de quaisquer reformas não-econômicas). Em termos práticos, o aumento de consumo da “era Lula” acontece porque no Brasil se aceita pagar uma Mercedes e levar um Gol. Mas alguém imagina um europeu ou um americano pagando ouro e levando chumbo, ou melhor, comprando chumbo a preço de ouro? Trata-se, ao fim e ao cabo, do fato de os brasileiros serem consumidores ignorantes e submissos: eis a verdadeira base da famosa aprovação de Lula.
4. Política e complacência III
O quarto argumento, do incremento do “respeito internacional” que teria sido há pouco conquistado pelo país, reflete irrefletidamente o que, em grande parte, é na verdade um fenômeno de mídia. Em primeiro lugar, é preciso relativizar esse aumento em comparação com seu ponto de partida, a absoluta irrelevância brasileira no cenário internacional ao longo de sua história, marcando enormemente seu gigantismo anêmico (para citar um dado, digamos, gráfico, Argentina, Colômbia e México têm prêmios Nobel, e não somente de literatura). As tentativas diplomático-midiático-ideológicas do governo Lula não mudam esse quadro, o que só poderia ser feito pelo que se chama, em política séria, de projeção de poder, cujo exemplo real, no mundo contemporâneo, atende pelo nome de China (enquanto o Brasil segue sendo um país fundamentalmente agrário, cada vez mais um mero exportador de commodities). Na verdade, ao lado de fracassos importantes, como os das propostas para o comércio internacional, amargados na OMC e nas negociações de Doha, e das impotentes reivindicações por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a última grande cartada internacional brasileira foi também seu último grande fiasco, o caso hondurenho (o golpista via referendo à la Chávez que era o patético Manuel Zelaya foi devidamente catapultado da política hondurenha, agora de volta aos trilhos democráticos depois do rápido desvio devido à tentativa de golpe de Zelaya e o contragolpe operado pelo Estado para sua deposição; a aposta imperita da diplomacia brasileira no golpista branco de estilo chavista deixou-a ao final falando sozinha, e amarrada a uma recusa solitária de reconhecer o novo governo eleito). A questão hondurenha liga-se diretamente aos demais fracassos da diplomacia lulista na região, com destaque para as tentativas de impor sua liderança na América do Sul, o que foi, como regra, respondido com atitudes arrogantes de potências como a Bolívia e o Paraguai, sempre resultando em concessões brasileiras.
A isso se deve somar a infame, inútil e já quase esquecida iniciativa de organizar e sediar um fórum América do Sul-países árabes, que serviu somente para dar um pequeno e passageiro lustro de respeitabilidade a inúmeros ditadores árabes. Sua pretensa razão geopolítica, criar para o Brasil uma trilha própria no cenário mundial, deixando ou a inércia ou o estar a reboque da potência da hora que o caracterizaram historicamente, seria parcialmente aceitável, tendo em vista a razão de Estado (porém uma razão de Estado ultrapassada, maquiaveliana, que não incorpora valores contemporâneos como o respeito aos direitos humanos, inexistente nos países árabes), se esse caminho tivesse resultado em algo. Em algo de positivo, frise-se. Pois trouxe ao menos duas consequências nefastas e uma consequência patética. Primeiro, a abstenção do Brasil na condenação internacional do genocida ditador do Sudão, Hassan al-Bashir, responsável pelos massacres de Darfur. Segundo, uma maior aproximação com o Irã, resultando afinal no apoio ao golpista Mahmud Ahmadinejad, que além de haver vencido eleições fraudadas (para o que recebeu, no Ocidente democrático, o aplauso solitário de Lula), hoje executa prisioneiros políticos a mancheias, enquanto lança mísseis cada vez mais potentes e avança com seu programa nuclear sem controle da AIEA (em vista das compreensíveis pressões por sanções, a diplomacia de Lula faz pose de dura defensora de negociações, esquecendo do detalhe de que o Irã jamais demonstrou disposição sincera de negociar). Terceiro, o show inconsequente de Lula e seu ministro do Exterior no Oriente Médio, pretendendo participar da solução do problema israelense-palestino “por causa da boa índole do povo brasileiro”; não bastassem tais platitudes patéticas, também houve críticas à ONU por não ter criado um Estado palestino, o que ela fez em 1947… (mas foi recusado pelos próprios palestinos).
Porém ainda pode ser pior, como o demonstram a visita de congratulações a Fidel Castro no dia em que um prisioneiro político cubano morria de greve de fome, e a subsequente comparação, por Lula, de presos políticos a presos comuns, o que só fascistas e primitivos políticos de botequim costumam fazer. Daí não ser surpreendente que o editor da respeitada Foreign Policy descreva Lula como “um gigante político, mas um pigmeu moral” (pois ao menos a segunda parte da afirmação parece inquestionável à luz dos fatos). É mais fácil a Turquia entrar para a União Européia do que o Brasil de Lula ser levado realmente a sério.
Mesmo porque, fatos recorrentes como a recente devastação do Rio de Janeiro necessariamente marcam a imagem internacional do país. Pois não se tratou de uma pura catástrofe natural, como uma tsunami, e sim de chuvas espessas somadas à lama política mais densa: o ministro de Lula da Integração Nacional entre 2004 e 2009, responsável pelas verbas de prevenção de catástrofes, destinou menos de 1% delas (ou exatos 0,65%) para todo o estado do Rio de Janeiro, enquanto destinava outros 37% para a Bahia, seu estado natal (o ministro, denunciado pelo Tribunal de Contas da União e pela OAB, foi enfaticamente defendido por Lula enquanto ainda havia cadáveres soterrados de dezenas de cariocas enterrados vivos).
Em outro tipo de incidente tipicamente nacional, casos como o assassinato da norte-americana Dorothy Stang em função de conflitos de terra em pleno século XXI também não ajudam muito para compor a boa imagem internacional do Brasil. O que o sistemático fracasso em estancar a sangria da Amazônia tampouco faz. Deve-se ainda considerar que, aqui, não se trata somente de questões econômicas, políticas e sociais, mas também culturais. A queimada para limpar terrenos para a lavoura é um método pré-histórico, usado desde tempos imemoriais. O fato de ainda ser o principal método utilizado no Brasil (ou seja, de não ser proibido), apesar de suas nefandas consequências ambientais, fala bem da modernidade conservadora do país. Cuja construção começa, como referido acima, com a libertação dos escravos. A modernidade do acontecimento não precisa de explicação. Seu conservadorismo está no fato de que, além de tardia (fomos o último país a extinguir a escravidão no Ocidente), a libertação se deu sem qualquer incremento da cidadania. Os ex-escravos, como é sabido, não deixaram de sê-lo para começar a se tornar cidadãos, mas para iniciar o longo e profundo processo de marginalização da população negra e mulata que se estenderia até os dias atuais. Qualquer relação com os Racionais não é mera coincidência. O que explica uma grande e grandemente positiva diferença dos raps do grupo em relação aos da matriz norte-americana e seu individualismo mercadológico dominante. Essa diferença reside num realismo mais profundo, amplo ou consistente. Realismo que os torna políticos, e não o contrário, como pode parecer à primeira vista: não são, portanto, mais “realistas” por serem mais engajados.
Antes porém de me deter, ainda que sucintamente, sobre o possível realismo dos Racionais, sou obrigado a me estender, mesmo se também sucintamente, sobre a possibilidade de qualquer realismo.
5. Realidade e realismo
O realismo já foi uma escola, o que não interessa aqui, e, em termos diretamente políticos, esteve posteriormente ligado à querela arte engajada-arte alienada. A questão como atualmente se coloca, porém, parte do pressuposto da filosofia analítica de que o objeto da filosofia é a linguagem, e o seu método, a análise lógica dos enunciados. A realidade extralinguística, então, não é um objeto da filosofia – mas sim da ciência, por exemplo. Outra consequência afeta a natureza da verdade: ela não se aplica aos fatos. Pois fatos não são verdadeiros ou falsos, sequer reais ou irreais: os fatos existem ou não existem (fato irreal é uma contradição de termos). Falsos ou verdadeiros são somente os enunciados, as afirmações feitas sobre os fatos. Para além da filosofia analítica, isso se tornou uma negação de qualquer possibilidade maior de aproximação aos fatos por qualquer linguagem, hoje um dogma das ciências humanas. Pois, no limite, a atribuição de verdade ou falsidade só pode então ser feita sobre enunciados simples acerca de coisas singulares. “Está chovendo” é um enunciado verdadeiro se onde e quando ele é feito estiver chovendo. Do mesmo modo, “Esta bola é de couro” é um enunciado verdadeiro se a bola em questão for de couro. Fora isso, tudo é duvidoso. Pois mesmo a afirmação de que toda bola é redonda só poderia ter sua veracidade confirmada se acaso se tivesse acesso a todas as bolas que existem, que existiram e que existirão. Trata-se então, ou de uma tautologia (considerando que bola seja sinônimo de redondo), ou de um enunciado geral e, portanto, inverificável. Como as leis das ciências naturais são enunciados gerais, nega-se a possibilidade de sua verificabilidade. Sequer a ciência é verdadeira – ou realista.
Se dos fatos nada pode ser dito (ao menos, nada de relevante), a melhor opção, além do famoso calar de Wittgenstein, é então considerar todos os enunciados não singulares nem circunstanciais nem verdadeiros nem falsos: a linguagem é um jogo, e a realidade, inabordável. Não por acaso, ela muda conforme muda o modo de descrevê-la. As consequências são principalmente duas: além da inexistência de uma realidade em si, também inexiste um discurso cujas regras possam ou devam ser aplicadas a outro, pois todos, no limite, referem-se apenas a si mesmos, detentores que são da mesma (im)pertinência relativa a uma realidade neutra ou idealmente abordável. Todos os discursos são igualmente (in)válidos, ou (in)válidos ao seu próprio modo. A ciência, por exemplo, não é mais realista do que a religião, nem pode a religião ser analisada pelas regras que regem o discurso cientifico.
Além do “jogo de linguagem” de Wittgenstein, a afirmação da mudança da “realidade” conforme muda o modo de descrevê-la também se apóia na sociologia e em sua filha ideológica, o multiculturalismo, ou relativismo cultural, e no princípio da indeterminabilidade de Heinsenberg (mais conhecido, em tradução pouco precisa, como princípio da incerteza).
Começando por Heisenberg, trata-se, neste contexto, da provável apropriação indevida de um conceito/descoberta laboratorial. O princípio da indeterminabilidade refere-se, primariamente, à impossibilidade de determinação, ao mesmo tempo, da posição e da velocidade de certas partículas elementares, grosso modo, porque a marcação (isto é, a incidência de alguma forma de energia detectável) de sua posição altera sua velocidade, e a medição de sua velocidade altera sua posição. As ciências humanas, como não é incomum, o deslocam então de seu contexto laboratorial e lhe dão uma dimensão e uma conotação epistemológica abrangente e não necessariamente pertinente (já aconteceu outras vezes, como com o conceito termodinâmico de entropia). No caso das partículas elementares, trata-se de uma alteração detectável, intrínseca ao ato laboratorial. Fora desse âmbito, parece duvidoso que o ato de olhar uma paisagem a altere.
De fato, ninguém crê nisso: trata-se, na verdade, de afirmar a condenação ao solipsisimo. O que eu vejo só eu vejo, porque apenas eu ocupo o espaço-tempo em que vejo em certo momento uma dada paisagem, que não pode, portanto, ser vista por outrem do mesmo ângulo ao mesmo tempo. E ainda que o pudesse, minha visão é inseparável de mim, de meu próprio corpo: cada indivíduo tem capacidades visuais e repertórios mnemônico-culturais particulares. E no entanto, existem os universais linguísticos.
[Há] quatro tipos básicos de universais linguísticos. Entre os vários universais absolutos está, por exemplo, o reconhecimento de que todos os sistemas linguísticos contêm pelo menos três vogais e que preto e branco devem estar presentes no conjunto de cores. Entre os universais tendenciais está a percepção de que p t k são normalmente os pontos de articulação básicos para pausas (consoantes que encerram uma obstrução total das vias respiratórias) e que outras pausas não são incluídas à língua a não ser que p t k já estejam presentes. Universais implicativos só são verdadeiros quando existem certas condições, por exemplo, se vermelho é uma cor em determinada língua, então se pode esperar que preto e branco já estejam presentes nela. Os universais não-implicativos não exigem condições prévias […]: isso é observado no aparente universal de que todas as línguas humanas contêm pelo menos três vogais. […] Também se deve incluir a informação de que as línguas que apresentam apenas três vogais apresentam somente i, a e u. [O motivo] seria que essas vogais fornecem a máxima projeção acústica. […] Um outro exemplo ligado ao processo cognitivo do cérebro humano seria o reconhecimento de que em todas as línguas o singular ocorre mais frequentemente que o plural, e o plural mais frequentemente que o dual. Ou seja, o cérebro humano registra uma unidade específica antes de um grupo (conjunto), e um grupo antes de um tipo de grupo. A partir daí pode-se generalizar a dinâmica universal de, em que todas as línguas, uma marcação simples vem antes de uma marcação menos simples (marcação significando qualificação por meio da identificação de características distintas). […] Na verdade, parece existir um grane número de universais sintáticos. Por exemplo, todas as línguas parecem compelidas a colocar adjetivos (“grande’’) próximos aos substantivos (“caverna”) que eles modificam. Uma sensação cerebral de “pertencimento” opera na linguagem humana de modo a limitar a distância entre os itens que se “pertencem”. O que mentalmente se pertence é unido sintaticamente. (Steven R. Fischer, Uma breve história da linguagem – introdução à origem das línguas, São Paulo, Novo Século, 2009, pp. 58-60 [grifos do autor]).
Enquanto a filologia clássica, através da “teoria mimética”, via a língua como um espelho da realidade, acreditando ter cada palavra uma relação “verdadeira”, “natural”, com a coisa referida, o relativismo contemporâneo atira o pêndulo para o extremo oposto. Mas se existem elementos fonológicos e principalmente sintático-semânticos universais, logo, transculturais, isso impõe limites necessários tanto ao solipsismo individual quanto ao relativismo cultural. Há um substrato comum que é da espécie, apesar das variáveis circunstanciais, individuais e culturais, e que informa profundamente a percepção humana da realidade.
De fato, se existe, afinal, uma característica humana que distingue a espécie das demais, é a empatia, ou seja, a capacidade de introjetar, ou projetar internamente, percepções ou sentimentos alheios (sintetizada já pelos gregos num famoso aforismo: “Sou humano; nada do que é humano me é estranho”). Ela é tão determinante da condição humana que sua ausência, em indivíduos capazes de sentir tão somente aquilo que deveras sentem (sendo-lhes a dor alheia, por exemplo, totalmente indiferente), se traduz em uma incapacidade de convivência com os demais membros da espécie: eles são chamados, não por acaso, de sociopatas. Mas apenas porque a empatia está sempre presente, e perpetuamente atuante, em um animal condenado à mais profunda sociabilidade (diferentemente, um leão que estraçalha os filhotes de outro macho para impor à fêmea um novo cio e assim conseguir rendê-la sexualmente não faz nada de extraordinário). Não somos Robison Crusoe sequer no silêncio de nossos pensamentos: trazemos os outros em nós. Pela empatia assim como pela presença dos universais linguísticos.
6. Realidade e realismo II
Se isso parece relativizar, de alguma maneira, a imiscibilidade de cada “jogo de linguagem”, a irrredutibilidade dos vários “jogos de linguagem” às suas próprias regras, pela inexistência de uma linguagem mais “realista” do que as outras, é ainda contraditada, e ainda mais fortemente, pelas ciências naturais. Quem o diz é o insuspeito pragmatista norte-americano Richard Rorty.
O debate […] do século 19 [era] uma disputa sobre qual área da cultura fornece um relato preciso de como as coisas “realmente” são. À medida que o século 20 avançava, propostas para a coexistência pacífica […] proliferaram, e o debate sobre os respectivos méritos […] começou a parecer pueril. [Numa] cultura que tome [afinal] a peito o lema de Gadamer [“O ser que pode ser compreendido é linguagem”], tais rivalidades não seriam pensadas como controvérsias sobre quem está em contato com a realidade e quem ainda está atrás do véu de aparências. Elas seriam lutas para captar a imaginação, para fazer com que outras pessoas usem seu vocabulário. […] Não quer dizer que o cientificismo esteja morto. Há muitos filósofos analíticos de envergadura […] que são inabaláveis metafísicos fisicalistas. […] Esses filósofos ainda conferem um status ontológico especial às partículas elementares descobertas pelos físicos. Eles acreditam que a ciência natural nos dá essências e necessidades que são, como dizem, de re e não de dicto. Eles julgam que os filósofos da linguagem wittgensteinianos são perigosamente irracionalistas quando dizem que toda a distinção entre essências e acidentes, ou entre necessidades e contingências, são artefatos que mudam à medida que muda nossa escolha de descrição. Eles acham que os filósofos da ciência estão igualmente enganados ao recusarem à ciência natural qualquer privilégio […] epistemológico. Essa disputa para saber se a ciência natural é especial hoje domina a filosofia analítica [grifo nosso] (“Gadamer e sua utopia”, in groups.yahoo.com/group/unesp2000/message/464?source1).
Se a discussão não está, portanto, encerrada, e se, então, um discurso ainda pode dar a ver coisas de re, e não apenas de dicto, ou seja, dizer das coisas reais, estar “em contato com a realidade”, em vez de se manter “atrás do véu de aparências”, talvez outros, de algum modo, também o possam, apesar de tudo. O que nos devolve ao problema da verdade.
Pois se a realidade da condição humana talvez exista, como quer a biologia, apesar da morte da metafísica, a verdade parece mesmo não poder escapar do relativismo. Mais precisamente, da circunstancialidade.
O problema para a poesia, porém, não está na possibilidade restrita de se enunciar a verdade somente quando entendida como coerência com fatos singulares. O problema está em que a poesia opera por deslocamento em relação à linguagem cotidiana. Num poema, “Cai uma chuva fria” não significa que uma chuva fria está caindo, mas representa a imitação dessa afirmação circunstancialmente verdadeira, pois o verso, desconectado, separado, abstraído da circunstância real, não se refere de fato a ela, ou seja, não se refere ao fato, embora pareça fazê-lo. Mas se não se refere ao fato, ao que se refere o verso? Ao que a frase implicaria se, ou seja, quando verdadeira. Se numa circunstância real a frase “Está caindo uma chuva fria” é verdadeira, desde que uma chuva fira esteja a cair, num poema a frase deixa de se referir ao fato, logo, deixa de se referir à verdade, para se referir a um estado emocional. Não se trata mais, portanto, da chuva, mas da melancolia. É esse deslocamento, essa abstração, inexorável na poesia em relação à fala (pois a poesia não é a tradução verbal circunstancial de uma circunstância), e somente decodificável pela existência da empatia, que afinal impede a poesia de dizer a verdade e de ser realista. Sua razão de ser é outra, ou não passaria de fala cotidiana. Por isso mesmo, a qualidade do deslocamento, e portanto, da emoção estética que a poesia realiza, então pode, e deve, ser analisada. Dito de outro modo, se toda poesia é, por natureza, abstrata em relação aos fatos, seu tipo particular de “abstracionismo” torna-se um elemento fundamental de construção e análise.
7. Poesia e política
O deslocamento pela poesia da possível verdade da fala cotidiana hoje parece tanto menos justificável quanto menor e mais particular a emoção estética gerada. A melancolia, ou, no extremo oposto, a alegria do poeta, não interessa mais, ou não interessa suficientemente. Ainda que muitos esqueçam ter sido o eu lírico, centro linguístico do lirismo tradicional, morto e enterrado pelo modernismo. Em todo caso, se a épica, a poesia do ele heróico, é hoje impossível, a poesia do eu lírico é insuficiente. É preciso, então, que a poesia busque algo como o ele lírico. E todo ele, todo outro, é necessariamente político (talvez não seja por acaso que o contrário de político, do relativo à pólis, ou seja, o particular, o privado, em grego se diga idiotés, origem da palavra idiota em português).
Isso se torna cada vez mais evidente por pelo menos dois motivos. O primeiro é, justamente, histórico-político. Depois do fim das utopias de esquerda e antes da emergência do fascismo islâmico e da agudização da questão ambiental, não foram apenas arautos da direita que falaram em fim da história e em fim da política. Pois essa crença radica igualmente no relativismo à la Rorty, como é inevitável depreender de colocações como a da citação anterior. Porém o 11 de Setembro, as invasões do Afeganistão e do Iraque, a perspectiva de uma bomba iraniana e o avanço brutal da Índia e da China rumo a uma industrialização e um consumismo à la século XX, baseados em combustíveis fósseis (sem falar que o modelo chinês, de sucesso econômico sob ditadura brutal, enfraquece a defesa da democracia representativa), repuseram tanto a política quanto a história – além da cultura em seus múltiplos sentidos – no horizonte da realidade imediata.
O segundo motivo advém da experiência concreta de um número significativo de poetas brasileiros relevantes. Sei disso por informação direta, ou seja, por inúmeras conversas ao longo dos últimos anos. Nelas, esses poetas manifestam certa frustração com o estado atual da poesia, sem porém entrar, como regra, em considerações de qualidade poética desse ou daquele nome. E sem, igualmente como regra, considerar irrelevante a atual exuberância quantitativa da poesia brasileira, como é o meu caso particular. Sua frustração tem como centro a percepção de que a poesia voltou a um estado de “beletrismo”, um século depois da revolução “realista” e “materialista” do modernismo. Se não há mais formas dominantes, volta a ser dominante certo formalismo multiforme. E esse formalismo multiforme, em que cada poeta se compraz em criar suas próprias idiossincrasias formais, é impotente para ir além da mera idiossincrasia formal. Todo grande poeta sempre se caracterizou por desenvolver uma voz fortemente particular. O individualismo poético contemporâneo, porém, assim como a adesão passiva às regras grupais nas antigas escolas, é incapaz de gerar vozes poéticas realmente poderosas. A isso se alia, em termos temáticos, um coerente solipsismo, no qual o pequeno mundo cotidiano do poeta, e seu não maior mundo mental, são dominantes. Em termos práticos, não se pode separar, portanto, o fraco formalismo idiossincrático do forte solipsismo temático. E é isso que constatam muitos dos poetas com quem tenho conversado informalmente nos últimos anos. E é isso que os frustra no estado atual de sua arte. No meu entender e no meu linguajar, formalismo idiossincrático e solipsismo temático estão nas antípodas de qualquer acepção de realismo. Ainda no meu entender, não se pode simplesmente desconsiderar, numa abordagem crítica profunda ou abrangente, a visão de vários poetas importantes sobre o estado atual de sua arte. Mesmo porque, em muitos casos, tal frustração tem levado a uma queda do ritmo de criação e/ou publicação, o que a pletora de livrinhos irrelevantes de novíssimos poetas e de antologias de não-tão-novos tem o poder de escamotear.
8. Rap e poesia
Levando em consideração o fato linguístico de que o rap, como já referido, não é música, mas cantofalado (daí prescindir de linhas melódicas), o que seu próprio nome (rhythm and poetry) explicita, e desconsiderando, portanto, o fato linguisticamente neutro de sua absorção pelo mercado musical (explicável pelo aspecto comercializável dessa poesia-espetáculo, cuja forte dimensão rítmica permite, ainda que não torne necessário, seu acompanhamento por coreografias de gestos e de passos, além de instrumentos musicais), ele se torna um contraponto concreto e pertinente para analisar, para além da mera troca de argumentos teóricos, a situação atual da poesia letrada, particularmente na questão de seu (não)realismo, seja porque o realismo, para além do nome de um estilo, não existe, como querem as ciências humanas, seja porque existe mas é inalcançável pela poesia letrada atual, como acredita (e “sente”) mais de um poeta contemporâneo relevante.
Na muralha, em pé,
Mais um cidadão José.
Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson.
Ele sabe o que eu desejo.
Sabe o que eu penso.
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso.
Vários tentaram fugir, eu também quero.
Mas de um a cem, a minha chance é zero.
Será que Deus ouviu minha oração?
Será que o juiz aceitou apelação?
Mando um recado lá pro meu irmão:
Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão.
Ele ainda tá com aquela mina.
Pode crer, moleque é gente fina.
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá…
Tanto faz, os dias são iguais.
Acendo um cigarro, vejo o dia passar.
Mato o tempo pra ele não me matar.
Neste trecho bastante representativo de “Diário de um detento” não se revelam, porém, quaisquer novidades ou diferenças formais em relação à poesia letrada. Sua estrutura é a de um poema longo em versos livres, cujas medidas, porém, mantêm-se como regra dentro dos parâmetros tradicionais, variando do pentassílabo ao dodecassílabo – e com direito a alguns perfeitos decassílabos bem mais do que eventuais, como no caso de três versos desse trecho (“Mas de um a cem, a minha chance é zero”, “Será que Deus ouviu minha oração?”, “Mando um recado lá pro meu irmão”). Os versos são articulados em pares de rimas, tornando o poema uma longa sucessão de dísticos rimados. A poesia de Mano Brown é, aqui, poesia estrito senso. O que diferencia, então, um rap dos Racionais de um poema qualquer?
9. Rap e poesia II
Em primeiro lugar, uma forte impregnação entre a estrutura rímica e a estrutura sintática, resultando num marcado paralelismo, no qual a maioria dos versos é uma frase suficiente, sintaticamente isolada, com raros enjambements ou continuações frasais interversos de qualquer tipo, o que reforça grandemente a fragmentação do discurso, além de adequar as frases-versos aos marcado ritmismo do rap.
Tem uma cela lá em cima fechada.
Desde terça-feira ninguém abre pra nada.
Só o cheiro de morte e Pinho Sol.
Um preso se enforcou com o lençol.
Em segundo lugar, seu realismo, constituído de elementos de vários tipos, entre formais e semânticos, como a incorporação direta de certo falar particular em várias passagens (forma direta de realismo linguístico). Pois um dos elementos mais concretos de realismo da poética dos Racionais está, numa aparente contradição com muito do que vai dito acima, na matéria de sua linguagem. Mas não há verdadeira contradição ao se considerar que tal linguagem se elabora, em parte, diretamente sobre um falar real, praticado num tempo e lugar determinados por um determinado grupo social. Assim, essa poética incorpora fortemente elementos linguísticos reais. O argumento fica mais evidente ao se considerar, por exemplo, o coloquialismo e o experimentalismo modernistas versus o hiperconvencionalismo parnasiano. Torna-se claro ser o modernismo, no aspecto especificamente linguístico, tanto no vocabulário quanto na sintaxe e nos ritmos, mais realista, no sentido particular aqui adotado, de se tratar de uma poética mais próxima da linguagem cotidiana dos brasileiros urbanos da época, do que a sonetística parnasiana. Este era, aliás, um dos objetivos principais do modernismo.
Na última visita, o neguinho veio aí.
Trouxe umas frutas, Marlboro, Free…
Ligou que um pilantra lá da área voltou,
com Kadett vermelho, placa de Salvador.
Pagando de gatão, ele xinga, ele abusa
com uma 9 milímetros embaixo da blusa.
Brown: “Aí neguinho, vem cá, e os manos onde é que tá?
Lembra desse cururu que tentou me matar?”.
Blue: “Aquele puta ganso,
pilantra corno manso.
Ficava muito doido e deixava a mina só.
A mina era virgem e ainda era menor.
Agora faz chupeta em troca de pó”..
Brown: “Esses papos me incomoda.
Se eu tô na rua é foda…”.
Blue: “É, o mundo roda, ele pode vir pra cá.”
Brown: “Não, já, já, meu processo tá aí.
Eu quero mudar, eu quero sair.
Se eu trombo esse fulano, não tem pá, não tem pum.
E eu vou ter que assinar um cento e vinte e um”.
Em terceiro lugar, sua veiculação, substituindo o silêncio e o isolamento da página pelo som e o grupalismo do espetáculo público. Isso incorpora, por sua vez, novos elementos, a começar da elocução. E aqui certa agressividade arrogante padrão da elocução do rap, que se torna farsesca em poemas de temática vulgarmente machista, emerge como um forte elemento poético-político. Pois a elocução dos Racionais é marcada, se não por um tom de revolta de tipo “revolucionário”, por um acento que denota certa ira serena, temperada por uma certeza constatativa de quem sabe, e não admite ou concebe dúvida ou contradição, ainda que totalmente isenta da certeza opinativa do fanático: realismo. Quem, como Orfeu, adentrou o inferno, sabe que o inferno existe, e como ele é. A referência a Hitler no final do poema revela então toda sua pertinência. Pois a mistura de puro arbítrio cotidiano, violência generalizada, opressão estatal e despersonalização dos prisioneiros que caracteriza as prisões brasileiras tem muito em comum com campos de concentração (chegando episodicamente a semelhanças com campos de extermínio, como no massacre à la SS dos 111 do Carandiru pela tropa de choque paulistana – pelo qual, naturalmente, ninguém foi punido). À diferença, então, do intimismo sutil da bossa nova, da alegria gratuita do pagode, do niilismo raivoso do rock pesado, a elocução do rap tem aqui um registro explicitamente político, em mais um elemento formal de realismo. Ao qual outros ainda se somam, como o tom grave e agressivo da percussão e a multiplicação de vozes durante a elocução, ora em forma de alternância vocal, ora em forma de coro, o que desindividualiza o poema e o torna grupal – e, mais uma vez, político.
10. Rap brasileiro e realidade brasileira
O rap nasceu nos EUA no contexto de certa culturalização do movimento negro dos anos 1960 e 1970, que, sob a rubrica geral de hip hop, desenvolveu a partir dos anos 1980 várias linguagens agressivamente afirmativas de uma diferença negra, das vestimentas hiperlargas aos gestos ultramarcados, passando pelo próprio rap e várias formas de street dance. Sua aculturação no Brasil teve dois vieses dominantes. Um, como já referido, tributário de certa postura de gangue, que faz das mulheres e da polícia seus alvos; outro, marcadamente sociopolítico. Se existe, porém, no rap norte-americano denúncias de disparidades persistentes entre negros e brancos, com destaque para a população carcerária, seu tema dominante está longe de ser este. Houve um desvio crescente da denúncia social para a afirmação individual, com o rapper marcando sua nova condição de winner, detentor de money and women, em contraste com tantos losers ao redor. O fato de o rap norte-americano não ser predominantemente sociopolítico é indicativo da melhoria da condição da população negra nos últimos anos, da qual a eleição de Barak Obama não é a marca principal, mas sim o fato de mais de um terço da comunidade negra hoje integrar a classe média norte-americana, cujos padrões de escolaridade, conforto e consumo estão acima dos das classes ricas de muitos países. Não poderia haver contraste maior com a brutal inércia brasileira. Se no passado o país se dividiu em casas-grandes e senzalas, hoje se divide em condomínios e favelas. O Brasil é o exemplo acabado do país em que as coisas mudam, quando mudam, apenas para permanecer inalteradas (deveria ser assustador ver imagens atuais do sertão nordestino, que parecem capturar fantasmas de paisagens, fantasmas de construções e fantasmas de pessoas: os mesmos Severinos dos tempos de Euclides da Cunha e de João Cabral nos olham nas mesmas condições, enquanto seus “representantes” em todas as instâncias de todos os poderes, de Nova Canudos a Brasília, se entregam aos mesmos jogos obscenos de privatização da coisa pública, atualmente sob a regência complacente de Lula da Silva).
O que há afinal de significativo na poesia dos Racionais não está, porém, nos fatos em si que refere/retrata, pois os fatos são conhecidos. Ninguém ignora, por exemplo, as condições selvagens das prisões brasileiras. O que todos fazem é ignorar aquilo que conhecem. Na prática, sempre há motivação para manifestações específicas de repulsa e recusa ante casos pontuais de selvageria, como no tratamento dos presos de Abu Ghraib (já desativada) pelo exército americano, enquanto nada é feito e pouco é dito em relação às milhares de Abu Ghraibs perenemente espalhadas por todo o território nacional, em todos os tamanhos e formas, da delegacia da esquina aos grandes presídios como o Carandiru. Há pouco, vieram à tona mais de um caso de meninas atiradas em celas masculinas por vários dias: ninguém, obviamente, foi punido, pois ninguém nunca é punido, a não ser que seja preto, pardo & pobre, para relembrar a famosa tríade tipicamente nacional.
A momentosa prisão do governador do DF, José Roberto Arruda, ex-DEM, hoje sem partido, nesse contexto não muda nada, como tantos gostariam apressadamente de poder acreditar (e assim poder, igualmente, relaxar: afinal, o Brasil mudou…). Não muda, em primeiro lugar, a mediocridade fisiológica de Lula, que declarou, ipsis litteris, ser a prisão de um governador “ruim para a consciência política brasileira”, quando a verdade é radicalmente oposta: ela é muito boa para a consciência política, jurídica e democrática de um país injusto e sem justiça. Daí o segundo motivo de sua impotência, apesar disso, para mudar o estado geral das coisas: o estado geral das coisas não muda por um fato isolado. Na verdade, a notória impunidade brasílica, ou seja, o não punir a maioria dos crimes, incluindo, além da corrupção generalizada, agressões, estupros e assassinatos, sejam dolosos ou culposos, como os do trânsito, é (mais) uma manifestação do pouquíssimo valor que a vida humana tem historicamente no Brasil, tornando o país particularmente bárbaro: não por acaso, além de possuirmos a polícia que mais mata em termos mundiais, também somos os campeões internacionais em mortes por armas de fogo, entre otras cositas más, incluindo um dos sistemas carcerários mais selvagens.
O que os Racionais obviamente pretendem – e logram, o que é menos evidente – é referir ao mesmo tempo da forma mais direta, mais empática e de maior impacto, com a reprodução de certo falar ao lado do influxo linguístico da profusão de rimas, do ritmo fortemente entrecortado, da elocução assertiva-irada e do acompanhamento seco e pesado, alguns dos aspectos mais duros dessa realidade brutal, numa abrangente sinédoque. Não porque isso irá redundar em “tomada de consciência”, como pretendia o voluntarismo da arte engajada, mas porque parece necessário. Como reza um antigo aforismo, um homem faz o que tem de fazer pelo simples fato de ter de fazê-lo. O contrário de outra famosa tríade hoje muito popular, divertimento, consumismo & business.
O Senhor é meu pastor…
Perdoe o que seu filho fez.
Morreu de bruços no salmo 23,
sem padre, sem repórter,
sem arma, sem socorro.
Vai pegar HIV na boca do cachorro.
Cadáveres no poço, no pátio interno.
Adolf Hitler sorri no inferno.
O Robocop do governo é frio, não sente pena,
só ódio e ri como a hiena.
Rátátátá, Fleury e sua gangue
vão nadar numa piscina de sangue.
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento.