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PORTUNHOL SELVAGEM: UMA LÍNGUA-MOVIMENTO

“Para neutralizar os malefícios de Babel”, afirma Rónai, resta ao homem, portanto, criar um meio novo que aproxime “as gentes das falas diversas.” A idéia de uma língua universal ganha importância no início do século XVII, “quando o latim, ‘língua morta’ que durante mil anos conseguira o que nenhuma língua viva conseguira depois —  ser o idioma internacional dos intelectuais de toda a Europa –, entrava a perder terreno ante o assalto de idiomas vulgares (…).”[2]

O fato é que “a impressionante história dos esforços desperdiçados para a construção de um idioma auxiliar universal” acaba por relatar “uma das aventuras mais curiosas do espírito humano na luta sua para livrar-se do irracional e organizar sensatamente o mundo das idéias e de sua expressão”[3], como destaca Rónai.

Num primeiro momento, o portunhol selvagem, língua fronteiriça, nascida entre o Paraguai e o Brasil, parece ter sido criado com a intenção não só de aproximar “as gentes das falas diversas”, mas também de organizá-las num mundo de idéias e expressões, situado numa fronteira via de regra anárquica e caótica. Essa primeira impressão, porém, logo é desfeita pelo brasiguaio Douglas Diegues que, junto com seu compadrito El Domador de Yacarés, encabeçam essa língua que se propõe a ser também um movimento cultural. A propósito do portunhol selvagem, Diegues afirma: “el portunhol selvagem brota como flor de la buesta de las vakas.” Portanto, esse idioma não tem uma regra, uma ordem, ele pulula livremente por aí, na fronteira livre entre o Brasil e o Paraguai e além dela. Disso resulta uma série de características que distinguem o portunhol selvagem de outras tantas “línguas artificiais”, como se verá.

Segundo Rónai, existem dois métodos principais para se criar uma língua artificial: “inventar de vez todo o idioma, ou aproveitar o vocabulário de uma ou várias línguas existentes, sistematizando-o e modificando-o conforme o bom-senso. As línguas artificiais que obedecem ao primeiro sistema são chamados a priori, as que seguem o segundo, a posteriori. Existem também sistemas intermediários.”[4]

Levando-se em consideração os mencionados sistemas, poder-se-ia dizer que o portunhol selvagem é uma língua a posteriori, já que ela aproveita o vocabulário de várias línguas, não se limitando somente ao português ou ao espanhol, como o seu nome nos faz crer. A língua guarani, por exemplo, integra o portunhol selvagem. No entanto, o portunhol selvagem vai além, ou aquém, da simples mescla de línguas, já que ele permite que se fale ora só espanhol, ora só português, ou outra língua qualquer, num mesmo discurso, numa mesma narrativa.

Um exemplo de narrativa que ora usa uma língua, ora outra, sem que elas se misturem criando uma terceira, ou uma mescla das duas, é o livro Ventri loca (editora Katarina Kartonera), de Alai Garcia Diniz, recentemente publicado e que contém poemas escritos em português, em espanhol, em inglês, sucessivamente, conforme a conveniência do projeto musical da autora.

Lembro que, no portunhol selvagem, o uso de diferentes idiomas não segue outra regra senão a vontade daquele que se vale dessa “nova” língua.

A respeito das línguas artificiais, sabe-se que, na maioria dos casos, seus inventores “limitam-se a elaborar-lhe a gramática e o léxico, e depois abandonam o seu invento, na esperança de que outros se encarreguem de pô-lo a funcionar. A experiência demonstrou, porém, que, se o próprio inventor não cuida de pôr em prática seu idioma, este fatalmente soçobra no mar da indiferença, independente de seus méritos”[5], como lembra Rónai.

Certamente esse não é o caso do portunhol selvagem, uma vez que ninguém trabalhou seu léxico, nem sua gramática. Suas regras nascem espontaneamente e estão sempre em ebulição, são aquelas de quem o usa, como falei. Ademais, o portunhol sempre existiu nas fronteiras do Brasil e sempre existirá, de modo que dificilmente se pensará no portunhol como uma língua prestes a cair no esquecimento. O portunhol selvagem, no entanto, vai além do uso corriqueiro da língua, já que esse idioma pretende ser o idioma da arte, da poesia, da literatura, é a língua de um movimento artístico.

Portanto, se na opinião de Rónai, a língua artificial é uma “tentativa antipoética, por sua essência”, a qual só “pela audácia do empreendimento, se torna um verdadeiro poema, em que o heróico e o burlesco aparecem juntos mais de uma vez, e cujos capítulos vale a pena recordar”[6], o portunhol selvagem, ao contrário, quer fazer arte, é “arte relacional” que cria contatos, interações ou sociedades em torno de um objeto.[7]

A respeito da língua e da sua relação com a arte, George Steiner lembra que “a teoria romântica sustenta que, de todos os homens, o escritor é o que mais obviamente encarna o gênio, o Geist, a quididade de sua língua materna.” O escritor, mais do que um falante comum, poderá levar a sua língua a influenciar um pensamento, e, lembra Steiner, é a “sua familiaridade com ela, sonambular, genética, que torna a influência radical e inventiva.” Daí “a estranheza a priori da idéia de um escritor lingüisticamente ‘desabrigado’, de um poeta, romancista, dramaturgo não completamente em casa na língua de sua produção, mas deslocado ou em hesitação na fronteira.”[8] Até o final do século XVIII, porém, o bilinguismo, “no sentido de uma fluência igualmente expressiva na língua materna e em latim e/ou francês, era regra, mais do que exceção, entre a elite européia.” Freqüentemente, “o escritor se sentia mais à vontade em latim ou  em francês do que na sua própria língua.”[9] George Steiner destaca ainda, no seu ensaio, escritores modernos, como Oscar Wilde e Samuel Beckett, “geniais” em duas línguas e que não dependeram, portanto, de uma língua materna para se expressar.

A propósito do “gênio” e de sua relação com a “língua materna”, o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma, paradoxalmente, que “viver com Genius significa, (…), viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não-conhecimento.” Ou seja, “genius [sic] é a nossa vida [a nossa língua], enquanto não nos pertence.”[10]

A respeito do problema do bilingüismo, que as línguas artificiais trazem à tona, numa tentativa de solução, em 1961, Paul Celan, poeta judeu de língua alemã que cresceu numa região da Romênia onde se falavam correntemente pelo menos quatro idiomas, declarou o seguinte: “Não acredito que haja bilingüismo na poesia. Falar com língua bífide – isso sim, existe, também em diversas artes ou artifícios da palavra e dos nossos dias (…). Só na língua materna se pode dizer a verdade. O poeta mente se usa uma língua estrangeira.” [11]

À tese de Celan, Agamben acrescenta o conceito de “único”, tornando a discussão nada conclusiva, no meu entender. Para Agamben, “a língua única não é uma língua. O Único, de que os homens participam como da única verdade materna, isto é, comum, é sempre qualquer coisa dividida.(…) Ao falarmos, podemos apenas dizer alguma coisa – não podemos dizer unicamente a verdade, nem podemos dizer apenas que dizemos.”[12]

O portunhol selvagem revisa o tempo todo esse conceito de único, já que a divisão da língua não está só no conceito dos nomes, mas na escolha dos vocábulos de diferentes línguas. Sem esquecer que a sucuri, com sua língua bífida, é um dos totens do portunhol selvagem.

Uma imagem, talvez, resuma o portunhol selvagem: numa recente viagem de Assunção ao Rio Janeiro, Douglas Diegues contou que trazia na bagagem uma sucuri de papelão de três metros. No final da viagem, ao desempacotar no Rio de Janeiro esse e outros bichos “kartoneros”, percebeu que El Domador de Yacarés havia perdido “la linguita da cobra no caminho”. A imagem da língua perdida no meio do caminho é a imagem de uma língua sem verdade, de uma língua sempre estrangeira, que nos mantém na “zona do não conhecimento”, como diz Agamben, ou seja, na intimidade de um ser estranho e justamente por isso, estamos diante do momento da criação.  Achar a língua da sucuri é como achar a gênio da lâmpada, só que a língua da sucuri nunca vai satisfazer nossos desejos, ao contrário, vai se transformar numa máquina de gerar desejos, não vai resolver a questão. Então a sucuri sem língua é tão eficaz, nesse contexto, quanto a cobra com língua.

Ainda no que diz respeito ao Genius, Agamben lembra que o Genius, em épocas recentes, já não necessita de uma obra: “toda tentativa de Eu, do elemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigá-lo a assinar seu nome, está necessariamente destinada a fracassar.” Portanto, nasceria daí “a pertinência e o sucesso de operações irônicas como aquelas das vanguardas, nas quais a presença de Genius é testemunhada descriando, destruindo a obra.”[13] Ou, como acontece em Ventri loca, de Alai Diniz, o Genius poderia estar presente na apropriação da obra de outros poetas, a qual é posta lado a lado com suas próprias criações, confundindo, inicialmente,  as referências autorais de quem lê seu livro. Ventrículo, aliás, é aquele que fala na boca de outro. E fala na boca de quem não tem língua materna, ou de quem deseja transitar pelas línguas dos outros, como a sucuri-totem do portunhol selvagem.

Vale mencionar aqui que as traduções do portunhol selvagem também partem do princípio da descriação da obra, ou melhor, da criação de uma nova obra, tomando a obra de origem quase que apenas como pretexto. Um exemplo desse tipo de tradução selvagem é essa de um haicai de Issa: The wren/ earns his living/ noiselessly (A carriça/ ganha sua vida/ silenciosamente). Em portunhol selvagem os versos ficaram assim, na versão de Douglas Diegues: la piedra es uma sábia/ passa la vida/ sin hablar nada.

Ainda outro exemplo de tradução selvagem é a seguinte: Mr. Toad,/ your wife is waiting,/ your children are wailing (Sr. Sapo/ sua mulher está esperando/ seus filhos estão chorando); Em portunhol selvagem lemos: Mr. Kururú/ nde senhora le espera/ lloran nde hijo kuéra.

O fato é que, como afirma Rónai, ainda hoje é “espantoso o trabalho que a multiplicidade das línguas nos tem dado. Quanto tempo e esforço gasto unicamente para sabermos o que nos quer dizer o vizinho!”[14] Mas quando a língua se perde no meio do caminho, como é o caso do portunhol selvagem? Será que aí não é o vizinho que nos desobriga da tarefa de compreendê-lo?

A respeito das muitas línguas, restam algumas perguntas: “Quem sabe quantas coisas úteis se deixaram de fazer no mundo inteiro pela necessidade de aprender idiomas?” [15] Lembro que, segundo os estudiosos, o fato de o escritor e dramaturgo Luigi Pirandello estudar diferentes falas e criar inclusive vocabulários novos para certos casos particulares não era perda de tempo, já era um prenúncio de que o escritor estava à procura de uma nova dimensão, do gesto, como dizem os críticos, que completasse o verbo, era a sua passagem do texto para o palco. Certamente, Pirandello apreciaria o portunhol selvagem, uma vez que ele não se quer só verbo, mas movimento, reunião de pessoas em torno de um tema comum.

Outra pergunta que se faz é: “… em vez de construir um idioma auxiliar, não seria mais simples adotar uma das línguas já existentes?” Rónai afirma que a resposta dos partidários da língua universal é não, “pois os demais povos ficariam com inveja e receio da nação favorecida, ‘porque é coisa bem compreensível que o povo cuja língua fosse escolhida como internacional em pouco tempo haveria de alcançar tal supremacia sobre todos os outros povos que os oprimiria e os tragaria.” [16]

Portanto, “a fé no advento de uma língua auxiliar artificial pressupõe a confiança na possibilidade de soluções internacionais pacíficas.” [17] O portunhol selvagem é a solução pacífica das nossas fronteiras culturais, que abraçam as diferenças e dão as boas-vindas aos estrangeiros, sem solucionar, é verdade, os impasses inerentes aos espaços de relações contemporâneas. Mas o portunhol selvagem cria um microterritório onde novos momentos de socialidade são possíveis a partir das línguas que falamos sem falar verdadeiramente, segundo a compreensão convencional sobre o que é falar uma língua, ou “dominar” um idioma.

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Notas

  1. RÓNAI, Paulo. Babel & antibabel. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 21, 22.
  2. Idem, p. 22.
  3. Idem, p.22
  4. IIdem, p. 29.
  5. Idem, p. 125.
  6. Idem, p. 22.
  7. Conferir o livro Estética relacional, de Nicolas Bourriaud.
  8. STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.15. 
  9. Idem, p. 16.
  10. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 17.
  11. AGAMBEN, Giorgio. Idéia da prosa. Tradução: João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 39, 40.
  12. AGAMBEN, Giorgio. 1999, p. 41.
  13. RÓNAI, Paulo, p. 18.
  14. Idem, p. 22.
  15. Idem, p. 22.
  16. Idem, p. 23.
  17. Idem, ibidem.

 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).