Em 5 de julho de 2016, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, São Paulo, Francesco Careri, arquiteto, artista e professor universitário, proferiu palestra, seguida de debates, sobre uma série de questões tratadas em seus dois livros traduzidos ao português. Tento aqui uma síntese de seus relato.
Em princípio, Careri não se considera nem arquiteto, nem artista, nem professor. Careri informa que se apresenta às populações nômades, aos emigrados e aos refugiados que se estabeleceram e ou passaram pela periferia de Roma, onde ele atuou com seu grupo denominado “Stalker” e, com suas sucessivas turmas peripatéticas de alunos, como poeta. “Aos poetas não se pede nada e dos poetas ninguém espera nada” – diz ele. Isso – acrescenta – ajuda a quebrar inicialmente o gelo com esses povos deslocodos. Algumas intervenções, ou melhor, interações, com essas comunidades deram muito certo, como as descritas nos livros comentados, e – mesmo que depois tenha havido intervenção (agora sim!) das autoridades constituídas (leia-se policiais) – a semente plantada deu frutos, e Careri foi e continua a ser convidado mundo afora para falar sobre suas experiências.
Ao lhe perguntarem como se colocam ditas experiências face à arquitetura contemporânea, ele simplesmente desmistificou-a, dizendo que, na maioria das cidades de qualquer país, as obras arquitetura visam apenas ao ganho imobiliário, via a participação (a assinatura) de algum arq-star para qualquer tipo de projeto realizado em escritório, as mais das vezes, sem que esses arq-stars e a equipe que se vale de seu nome jamais tenham estudado atentamente o lugar edificado e suas adjacências, que, segundo ele, é o que realmente importa. Mas, principalmente, insiste Careri, esse estudo implica interação. Vejamos aqui um pouco de seu itinerário.
Desde 1966 até hoje Francesco Careri reuniu alguns de seus trabalhos no livro Caminhar e parar (versão brasileira: Editora G. Gili, São Paulo, no prelo), que dá continuidade ao livro anterior Walkscapes – O caminhar como prática estética, publicado há três anos pela mesma editora e reimpresso várias vezes, na tradução de Frederico Bonaldo.
Sobre esse primeiro livro, escreve o autor:
Eu não tinha ideia que um livro pudesse fazer com que eu viajasse tanto. Particularmente, pela América do Sul […]. Atravessando Bogotá, Santiago do Chile, São Paulo, Salvador da Bahia, Tacla, entendi que não sei caminhar na quadrícula colonial e que, para ir em transurbância, tenho de buscar os pontos em que a grelha se rompe, perder-me ao longo dos rios, circum-navegar as novas zonas residenciais, imergir-me nos labirintos das favelas […].
Mas não são viagens quaisquer: são – como quer o autor – mergulhos em zonas não oficiais, não turísticas – onde geralmente as pessoas têm receio de caminhar. É dessas viagens que trata o segundo livro (tradução minha), assim apresentado pelo autor:
A obra Caminhar e parar retoma o discurso a partir de onde termina meu primeiro livro, desde a volta de Roma, empreendida com o grupo Stalker, em 1995, e desde sua primeira parada no Campo Boario, em 1999. Passa, em seguida, à metáfora do navegar, à deriva e aos portos, para pausar e aprofundar a história de Caim e Abel, relacionando-a com o gesto do ka, símbolo da errância eterna que vai ao encontro do Outro. Vai em peregrinação pela morte de Constant e pela releitura crítica do Urbanismo Urbano Unitário, vai à procura da New Babylon (Nova Babilônia), relatando os anos passados nas cidades dos Rom [Ciganos], de seu apartheid nos novos campos de concentração, mas também de Pidgin City, o mundo das ocupações que dizem respeito à habitação, onde o informal volta a ser um recurso, e a autoconstrução, uma saída praticável, onde podem ser construídos novos espaços na escala 1:1, a partir das capacidades construtivas, das lutas e dos desejos dos habitantes. Desse ponto, parte para a América do Sul, a escola mais avançada para a grande cidade informal que virá, caminhando por Santiago do Chile, Bogotá e São Paulo, entre brancos de memória, amnésia de censura, labirintos espontâneos e retórica da segurança. Encerra-se numa homenagem patética a Patrick Geddes, com um artigo sobre a urbanística itinerante, e sobre o percurso peripatético de Artes Cívicas, onde se aprende a perder tempo para ganhar espaço, a caminhar e a tropeçar, a entrar em lugares onde parar para fazer arquitetura, a cumprimentar ao chegar e ao despedir-se. Há um glossário de palavras que me ajudam a transmitir isso tudo, um manifesto de cabeça para baixo.
Uma das ideias que norteiam este segundo livro foi inspirada ao autor pelo cineasta russo Andréi Tarkóvski que, em 1979, realizou um dos filmes metafísicos mais importantes do século: Stalker, que inspirou seu primeiro grupo de estudos peripatéticos. Para quem não assistiu a ele, aqui vai o resumo que Careri nos fornece:
A Zona onde se desenrola o filme de Tarkóvski é um território em que a Natureza, depois de uma aterrissagem de extraterrestres, tomou seu próprio rumo, sua própria evolução: é um território mutante. É uma região cercada e controlada pelos militares e submetida ao estudo dos cientistas. Os únicos frequentadores desse novo universo mutante são os Stalkers, estranhos personagens míticos que conhecem seus lugares de acesso e por eles penetram abusivamente, por ser a Zona o único lugar onde é possível ter esperança. No filme, Stalker conduz duas pessoas que personificam as duas formas do Conhecimento, a científica, representada pelo físico, e a humanista, representada pelo escritor. Eles caminham, sem seguir nenhuma senda, por uma paisagem em contínuo devir, sem passado nem futuro.
Uma natureza em que a paisagem por onde se acabou de passar já foi transformada em uma nova paisagem, onde também nossa presença é causa de novas mudanças e onde, para caminhar, é preciso ter uma estratégia ou, – ao menos – um ritual. O Stalker os guia até o quarto onde os desejos se cumprem, só que não se pode ir lá diretamente. É preciso tomar tempo para chegar lá, deve-se atravessar a Zona, deve-se ser “digno daquilo que acontece”.
Pois bem, desde 1990, sob a orientação de Careri, é fundado, em Roma, Stalker, um grupo que reúne estudantes, arquitetos e artistas, que assume o caminhar como seu “mais importante instrumento de ação” e que, com o passar dos anos, irá adquirindo outros nomes: Stalker/Osservatorio; Primaveraromana; Laboratorio di Arti Civiche (LAC); Stalker Walking School; Space Experiments etc.
Um dos primeiros empreendimentos do grupo é, em 1995, dar a volta, a pé, pelas zonas abandonadas de Roma, aquelas áreas – muitas delas – esquecidas depois do mundial de futebol de 1990, que formam o “negativo da cidade contemporânea”, refugo e recurso, ao mesmo tempo. Os habitantes desses lugares, mais ou menos clandestinos: pastores/pescadores/camponeses/albaneses/poloneses etc., recebem quase sempre cordialmente os visitantes e os ajudam a conhecer suas “propriedades”. Mas penetrar nessas zonas não deixa de exigir do grupo certa habilidade, quando não ousadia, e como a lei é “ não voltar atrás”, os estudantes – especialmente – começam a provar sua têmpera, a se descobrir, a forjar seu futuro caráter.
Após a exploração dos territórios, vem o trabalho de interação. A experiência realizada pelo grupo Stalker, nesse sentido, em 2005, é no Campo Boario, o ex-matadouro de Roma, habitado, na época, por 1500 ciganos italianos, os Rom Kalderash, experts em trabalhos com metal. Mas a eles se juntaram outras gentes, de outras culturas: norte-africanos, senegaleses e curdos, sendo que – com a ajuda do grupo Stalker – estes últimos ocuparam, no ex-matadouro, a antiga casa do ex-veterinário, tendo-lhe dado o nome de Ararat, na entrada do Campo Boario. Aqui vai a descrição da experiência:
Em poucos meses a grande praça de asfalto é transformada em um campo de jogos, uma lousa na qual se podem desenhar, com liberdade total, ações de interação com a comunidade, para produzir um espaço público fundado no acolhimento e na solidariedade. Entre 1999 e 2002 vige o Teatro dos Grandes Jogos Coletivos: a Carteira de Não Identidade, distribuída a todos os habitantes para o Clandestino Day, o Almoço Boario, uma grande mesa circular onde a comida curda se mistura com o gulash cigano e com as algas japonesas do artista Asako Iwama; o Global Game, onde são lançadas duas mil bolas de futebol sobre as quais se podem escrever os testemunhos da vida no Campo Boario; o Transborderline, espaço espiralado, símbolo de uma fronteira permeável e habitável, mais tarde instalado ilegalmente no confim entre Itália e Eslovênia; o Tapete Voador, um forro itinerante que reproduz, em corda e cobre, as muqarnas da capela Palatina de Palermo, e outros jogos e ações sem nome que não deixaram rastos, mas contribuíram para a emancipação desse espaço […].
Hoje o Ararat – onde foi organizado o workshop “de Cartônia à Praça Kurdistan” e que empresta o nome da montanha sagrada para os curdos – é etapa obrigatória para todos os refugiados curdos que transitam pela Europa: mais de três mil já passaram por lá. O asfalto foi transformado em Ortoboario, um jardim de girassóis e de árvores frutíferas, e na grande praça, a cada ano, celebra-se o Newroz, a festa de ano novo curdo, durante a qual se dança em círculos concêntricos em volta de uma fogueira alta, lembrança essa do rechaço do invasor assírio-babilônio, ocorrido em tempos imemoriais e da atual luta de libertação de cinquenta milhões de curdos, repartidos entre quatros nações em guerra, o maior povo existente sem Estado.
Foram necessárias muitas passagens e um grande dispêndio de energia para ter acesso ao Campo Boario, para encontrar a maneira conveniente para se relacionar com seus habitantes, para superar as barreiras culturais e pôr-se à disposição daquilo que era difícil de compreender, vencer receios e complexos para encontrar a serenidade de não julgar, de não querer determinar e de não criar certezas. Foi necessário encarar as coisas como habitante, compartilhar a condição de ocupante ilegal, assumir a responsabilidade cotidiana, compreender e observar os equilíbrios e as regras, mas também as visões. Este lugar, com efeito, parece capaz de autorregulação e inventividade, sem as quais já teria explodido, há tempo. Não há leis nem regras escritas e mesmo que tudo pareça abandonado a si próprio, na realidade cada situação é fruto de um acordo. Em todo lugar há confins invisíveis, nunca traçados mas, assim mesmo, prontos a se modificarem a todo momento. Tudo se mantém num equilíbrio instável e parece que, desde sempre, a história desse lugar em que ninguém é proprietário e em que ninguém tem verdadeiros direitos tenha sido uma sequência de acordos temporários capazes de englobar, sem nunca produzir graves traumas, cada chegada e cada partida, cada confinamento e cada possibilidade de passagem.
Por que, então, não voltar àquela comunidade na cidade de Alba (no Piemonte) – propõe o autor – constituída pelos ciganos (Sintos) piemonteses aos quais Pinot Gallizio havia doado um terreno e Constant – o idealizador da New Babylon e amigo pessoal de Careri –, um projeto: a ideia de não impor aos nômades um urbanismo sedentário, mas – ao contrário – de tomar como modelo o estilo de vida deles, para propor ao mundo inteiro como habitar o espaço?
A resposta foi negativa.
“A história” – diz Careri – tomou outro rumo. A revolução não chegou, e aquela sociedade multicultural que teria devido construir uma Nova Babilônia se encontra, hoje, entre os refugos das zonas mais periféricas de nossas cidades e de nossos pensamentos. O campo dos nômades de Alba não chegou a ser, para os situacionistas, um “terreno de jogo e de participação.” O Urbanismo Unitário, que havia encontrado ali um campo concreto onde jogar, não jogou. Apesar dos proclamas para uma arte coletiva a ser aplicada ao espaço urbano, os situacionistas não conseguiram encontrar um terreno comum, onde poderiam experimentar as capacidades excepcionais de seus membros isolados: as do construtor de redes de Asger Jorn – sedutor habilidoso e diretor de tantos times interdisciplinares a serem apresentados; as de construtor de sentido de Guy Debord, capaz de carregar de significados políticos e filosóficos os aspectos que, um após o outro, iriam surgir do campo; as de construtor de espaços de Constant, capaz de traduzir em poesia tridimensional as qualidades do espaço nômade; as de construtor de relações de Pinot Gallizio, capaz de tecer fios entre a realidade concreta do campo dos nômades e o mundo político e cultural de Alba. O Urbanismo Unitário não sobreviveu às expulsões, às demissões e às vaidades egoístas de seus membros, tomados individualmente. Hoje aquelas capacidades seriam ainda fundamentais para transformar espaços complexos das cidades atuais, como também aqueles conceitos de antibrevê e antiautoridade que não foram implementados justamente ali, em Alba, onde teriam servido para ativar processos criativos de transformação coletiva. De lá para cá os campos nômades tornaram-se lugares-símbolo da recusa do Outro. Passou-se meio século e estamos sempre aí, nas margens do rio Tanaro, a nos perguntar como imaginar um outro modo de viver, para todos e não apenas para os Rom: para nós também; como projetar o instável, o transitório, o incerto; como subtrair o projeto desse espaço aos tecnocratas de partido, aos aproveitadores, ou – pior – às delegacias.
Mas Careri e sua turma não desistem:
Desde 2006, com Stalker nós mergulhamos inteiramente nas múltiplas formas do habitar forçado do universo nômade. Percorremos a pé o inteiro curso do rio Tibre, visitamos dezenas de instalações, favelas, casas de chapas de metal, de papelão, de tijolos, tendas, arraiais ocupados, vilarejos dentro de fábricas abandonadas, áreas de trânsito, campos autorizados a se tornarem favelas – sem água, sem luz, sem esgoto – campos de containers onde crescem, superpovoadas, inteiras gerações sem documentos nem identidade e, por fim, a resposta tecnicamente mais avançada, imaginada pelas instituições para enfrentar a “emergência dos nômades”: as famigeradas “vilas da solidariedade”, aclamadas por todas as forças políticas como sendo a única solução para o “problema Rom”. São as novas “cidades para os nômades” que serão exportadas para o resto da Itália e talvez para a Europa, sua “cidade à parte”, seu apartheid: estados de exceção que segregam e estão fora da lei, pois são criados com legislações de emergência e em derrogação às leis e aos standards habitacionais. Essas “vilas da solidariedade” encontram-se afastadas e são invisíveis da cidade, desenhadas como estreitas fileiras de containers sobrepovoados, com cercas metálicas em volta do espaço. Telecâmeras e vídeos de vigia com circuito fechado, com ingresso vigiado 24 horas por dia, impossibilidade de entrada, mesmo para parentes próximos. Os habitantes desse novo campo de concentração não levam números marcados no braço, mas após terem sido fotografados e fichados, recebem um DAST, documento que serve para entrar e sair dos campos com horários estabelecidos, não antes das 6 horas, não depois das 22 horas. Quem recusa esses campos, ou se subtrai ao fichamento, procurando um caminho alternativo, transforma-se definitivamente em “clandestino”, podendo ser preso, sem processo e sem ter cometido reato algum, num C.T.E. (Centro de Identificação e Expulsão) e – quem sabe – repatriado para uma pátria que jamais conheceu (a maioria deles nasceu e cresceu na Itália). Ao entrar nesse mundo, compreendo quanto são equívocas as palavras campo e nômades, um álibi para prender nos campos de parada aqueles que teriam desejado continuar sendo nômades ou seminômades, como os Sintos e os Rom Kalderash, e para nomadizar, numa vida constantemente precária, quem jamais havia sido nômade, e – ao contrário – possuía uma casa como muitos dos prófugos das guerras dos Balcãs, aos quais sempre será negado o direito a uma casa.
É inútil dizer que a New Babylon não está em nenhum desses lugares.
Como alternativa aos campos de containers do apartheid da solidariedade, em julho de 2008, juntamente com os Rom do Casilino 900, (em Roma) construímos a Savorengo Ker, que na língua romanì significa “a casa de todos”, uma pequena casa em madeira, que custa um terço do que custa um container, pensada, projetada e idealizada diretamente por quem teria desejado ali morar. Uma casa-manifesto que quer significar que os Rom não são mais nômades, que eles querem uma casa e que eles sabem se organizar entre si e trabalhar para construí-la. Uma casa não somente para os Rom, mas para todas aquelas pessoas que se encontram hoje em emergência habitacional e às quais é negada a possibilidade de uma terra onde construir, de modo estável, sua própria vida. A construção da casa é um dos momentos mais altos de compartilhamento entre nossas culturas, um momento de convívio, de jogo e de participação, um mês de utopia coletiva vivida e habitada profundamente por todos. A coisa mais importante que aprendemos é que o espaço de integração se produz através de um ato de criação coletiva, no canteiro de obras, construindo, juntos, a própria casa, jantando, à noite, diante do fogo, raciocinando, em conjunto, sobre o que construir no dia seguinte, numa comunhão de competência e aspirações. Cada um coloca as próprias diversas competências à disposição do outro. Experimentamos e demonstramos, nos fatos, que as boas relações de vizinhança, de patamar, de condomínio, e de quarteirão podem se construir trabalhando lado a lado, e que a cidade pode ser construída passando, um ao outro, pregos e martelo.
Careri prossegue:
Depois de algum tempo, a prefeitura de uma cidade de província propõe-nos participar da realização de um campo de nômades utilizando nosso modelo de casa. Respondemos que Savorengo Ker era um símbolo que pretendia anular a própria ideia de campo, era o início de um processo que teria feito com que o campo evoluísse para um bairro intercultural e, aquele bairro, em uma cidade. Não um campo feito com clones da Savorengo Ker no lugar dos containers, mas casas diferentes, nascidas das relações com os habitantes, uma New Babylon de desejos habitacionais que é preciso fazer emergir, juntamente com os Rom, num processo de escuta e de transformação recíproca. Savorengo Ker foi queimada por desconhecidos em dezembro de 2008, o Casilino 900 foi despejado em janeiro de 2010, os seus habitantes moram, hoje, nas vilas da solidariedade. Mas Savorengo Ker foi uma extraordinária experiência neobabilonesa.
Careri procurou, nas viagens que tem empreendido, visitar lugares que possuíssem características próximas àquelas por ele visitadas em Roma ou em Alba e que tivessem construções edificadas em regime de mutirão ou de autoconstrução, ou que permitissem idealizá-las. Quais lugares melhores senão os aterros em que surgiram as favelas? Bogotá e São Paulo são um exemplo disso. Em São Paulo escolheu a “Comunidade de São Francisco”, na terceira maior favela de São Paulo, a de São Francisco, que hoje conta com mais de 50 mil habitantes.
Vejamos do que se trata.
Quando, em 2012, Careri veio para São Paulo, estava com uma visita já programada à favela de São Francisco, localizada na Zona Leste. De acordo com os dados da Prefeitura de 2011 uma série de melhorias haviam sido propostas para esta favela tornar-se uma “cidade”. Embora a maioria delas não tenham saído do papel, as expectativas, quando Careri a visitou, eram grandes – em particular, a da criação de um hospital para a comunidade, visto o mais próximo achar-se a uma hora de distância, de carro.
O arquiteto veio para a primeira “Jornada da Habitação”, para participar do evento-caminhada que também fazia parte da mostra São Paulo is calling, organizada por Stefano Boeri. A Jornada era acompanhada por três arquitetas do Laboratório de Artes Cívicas (LAC) da Universidade de Roma, uma representante do grupo italiano Metropoliz, uma arquiteta da SEHAB e líderes da “Comunidade de São Francisco”. Da caminhada, além dos líderes e de Careri, participaram uns duzentos membros da comunidade, em geral jovens, que vestiam camisetas brancas com corações vermelhos pintados à mão e que gritavam o slogan: “Hospital! Hospital!”.
Mais tarde, a esse bordão foi acrescentado um outro: “Labirinto! Labirinto!”, porque Careri assim chamou, poeticamente, o emaranhado de ruelas que subiam o morro da favela e por onde ele fez questão de seguir com o pessoal, até chegar ao local onde a população desejava fosse construído o hospital e onde haveria uma espécie de ritual marcando a conclusão da marcha.
De atalho em atalho, subiram, desceram, e passaram pelas casas do Promorar, para depois margearem as bordas de um aterro que se esperava transformar em um grande parque interno, até chegarem à zona do Mutirão, iniciativa – esta – muito prezada por Careri que, em Roma, onde foi praticada por seu grupo, foi chamada de “construção assistida”.
Pergunto por que não se dá continuidade a esse programa e me respondem que, em termos de organização, atuar assim para cada casa é ação que exige excessivo empenho e que essa tipologia consome ainda muito solo e tem densidade demasiado baixa. Compreendo que quando se quer construir casas para três milhões de habitantes em vinte anos não se pode dispersar demasiada energia. Porém o tema da densidade não me convence: as construções chegam até o terceiro piso e os pátios, os quintais e as ruelas para pedestres são bem apertados. Nunca me convenceu o fato de que o baixo consome solo e que o alto, só por ser alto, o preserva: muitos dos novos e elevados blocos de construções têm à sua volta enormes recintos para carros e espaços de socialização que, muitas vezes, ficam inutilizados.
A penúltima etapa, à qual chegaram sempre pelos “labirintos” da favela, era a dos Novos Prédios, num dos quais morava o líder Jerônimo. Careri:
Em descida, ao longo de escadas e escadinhas que passam apertadas por entre as casas, das quais dá para ver, ao longe, o parque [idealizado] onde nos encontrávamos uma hora antes. O pessoal da caminhada, engrossado por outros participantes que se juntaram espontaneamente, começa a andar em uma longa fila indiana, dançando – na descida – todos de pé, retos, se dirigindo para a casa do Jerônimo. Isso me lembra o vídeo que me mostrou Paula Berenstein Jacques, uma professora da Bahia, no qual enquadra as pernas de um menino descendo as escadas da favela. O livro que ela escreveu chama-se Estética da ginga. A estética das favelas através da obra de Hélio Oiticica e fala das favelas como rizoma e labirinto, onde se anda gingando.
A zona dos Novos Prédios, porém, não entusiasma o visitante.
A arquitetura conseguiu que fosse dado um passo importante na escala social. Isso é reforçado pela cerca de ferro que separa a favela dos prédios, um muro entre iguais que coloca diferenças que antes não existiam. Aquela cerca deve defender a quem? Posso estar enganado, mas o recinto protege apenas o estacionamento. Mas vale a pena diferenciar-se dos próprios irmãos para defender seu carro? Tenho a impressão de que este modelo venha diretamente dos condomínios de classe média, do tipo “Minha casa, minha vida”, que têm os mesmos dispositivos de segurança, mas que têm prédios com mais de vinte andares, logo, também o elevador, com vista ainda mais do alto. Mas todos eles gostam desses prédios populares, com certeza, são uma espécie de monumentos à casa, pequenos palácios renascimentais, que se elevam num tecido medieval, pontos de referência visual e social. A mim parecem uma ameaça para o labirinto, sementes de sua destruição. A grande oportunidade que oferecem as slums do mundo inteiro creio que seja justamente a possibilidade de um projeto indeterminado e labiríntico, como na Nova Babilônia de Constant e penso que homologá-los com a arquitetura da cidade formal seja uma ocasião desperdiçada, se não um crime.
Esses tipos de propostas criativas de Careri, Constant e de outros artistas e arquitetos, mencionados ou não, são uma tentativa generosa de fazer com que, em nosso mundo futuro, haja uma maior compreensão (leia-se “interação”) entre seus habitantes, sejam eles autóctones ou de fronteiras diferentes, compreensão essa que, em nosso mundo de agora, está cada vez mais ausente.
(Abaixo vêm textos, via internet, que ilustram mais pontualmente alguns conceitos dos projetos mencionados.)
Projeto da Nova Babilônia – Constant
O Projeto “Nova Babilônia” era composto por um conjunto de intervenções urbanas experimentais constituídas por megaestruturas desenvolvidas por Constant Nieuwenhuijs (conhecido simplesmente como Constant). Estas “urbanidades experimentais” utilizavam gigantescas estruturas espaciais cujos elementos diagonais e tensionáveis foram inspirados pelas inovações estruturais surgidas ao longo da Revolução Industrial, como as apresentadas no Pavilhão Francês na Exposição de Bruxelas em 1958, pelo engenheiro francês René Sarger. Nova Babilônia foi concebida como uma construção contínua sobre pilares, dotada de um extenso sistema multifuncional de espaços para se dormir, se divertir, realizar múltiplas atividades em áreas suspensas; enquanto ao nível térreo poderiam multiplicar-se os espaços livres para o tráfego e para outras atividades públicas.
Constant afirmava que para sua execução deveriam ser utilizados materiais ultraleves e facilmente montáveis, tendo o objetivo de produzir uma arquitetura suave e espaçada. A cidade teria, segundo seus cálculos, “100% de espaço construído, mas 200% de espaço livre, ao contrário dos 80% de espaço construído e 20% de espaço livre das cidades em geral”. Seria dotada de grandes terraços ao ar livre, acessados por elevadores e escadas. Nestes terraços-plataforma se localizariam os espaços esportivos, os aeroportos, heliportos, jardins-suspensos etc. A articulação da cidade em níveis diferenciados, espaços contíguos e intercomunicáveis, possibilitaria para os moradores uma variação de ambientes e espacialidades muito ricos, e fomentaria assim a deriva.
Nova Babilônia seria caracterizada por espaços em constante transformação, um produto variável de uma atividade lúdica generalizada, um “estado de espontaneidade”. As megaestruturas desta cidade-conceito seriam conectadas bem acima do solo, possibilitando serem também instaladas em cidades existentes de modo que pudessem “entrar e sair da cidade antiga a qualquer momento”. Constant considerava que esse tipo de megaestrutura poderia ser pensado para qualquer cidade, utilizando o potencial de seus espaços vazios aéreos. Influenciado pela psicogeografia, imaginava uma ambiência que pudesse ser constantemente remodelada pelo andar de seus habitantes, pelas suas descobertas psicogeográficas. O estranhamento, conceito fundamental da arte, seria inevitável: “deixar o espaço te impressionar, exercitar a obra, tomar posse do lugar”. Propunha “soltar a arquitetura nas mãos de quem a usa”, deixando frestas e permitindo sua identificação pessoal, num “cotidiano que não se pode jamais domesticar”. Nova Babilônia oferecia uma imagem benevolente de um futuro em que a tecnologia e o processo urbanizador constituiriam uma fonte de prosperidade e liberdade. Uma cidade nômade, feita de habitações temporárias, permanentemente remodelada pelo andar de seus habitantes, estruturada em grandes redes que se sobrepõem de maneira ilimitada sobre as cidades existentes. Esses eram alguns dos delírios de Constant.
A fundação teórica destas iniciativas poético-construcionistas tinha um nome: “urbanismo unitário”. Para sua concretização deveria haver uma utilização sistemática de todo o conjunto das artes e tecnologias disponíveis e demais recursos que contribuíssem para produzir uma composição holística do meio ambiente. “Qualquer construção futura deverá ser precedida de uma profunda investigação das relações entre espaço e sentimento, como forma e estado de ânimo.” Constant idealizava uma arquitetura que fosse capaz de transformar as concepções dominantes de tempo e espaço, e que fosse ao mesmo tempo um instrumento de conhecimento, um meio de ação, uma “arquitetura modificável, maleável e carregada com os desejos de seus habitantes”. A principal atividade dos habitantes desse território sensório-democrático seria a contínua deriva, um contínuo deambular que provocaria “um estranhamento meio-ambiental implacável, profundo e delirante”.
Para Constant, uma ambiguidade fundamental deveria ser esclarecida, determinar com clareza a diferença entre um “espaço estático” e um espaço “dinâmico”.
O espaço estático, segundo suas palavras, era: “o espaço óbvio para a sociedade utilitarista, um espaço baseado diretamente no princípio de orientação funcional”. A imperatividade do trabalho na sociedade moderna era vista por Constant como diretriz fundamental para a organização dos espaços urbanos; ideias como a maximização dos deslocamentos entre local de moradia e o local de trabalho etc. De certa forma, levando em conta o discurso moderno, muitas proposições urbanas obedeciam naturalmente a este modelo de ordem e projeto. Inúmeras concepções urbanísticas modernistas partem desse princípio de orientação.
Já o espaço dinâmico advém de um pensamento associado aos preceitos situacionistas de uma sociedade lúdica. Para o ideal urbano-experimental de Constant, uma construção estática do espaço é incompatível com as contínuas mudanças de comportamento de uma sociedade. As atividades lúdicas conduzem, consequentemente, a uma inevitavelmente dinamização do espaço.
O principal habitante do espaço dinâmico seria o homo ludens, definição situacionista para o homem que “atua sobre o seu entorno, interrompe, muda, intensifica seu microcontexto imediato”. Mais do que um espaço de trabalho, o espaço dinâmico era considerado objeto de jogo, e isso impulsionava a demanda pela mobilidade e variabilidade de suas ambiências e estruturas. Contrários aos rápidos deslocamentos, tornava-se imperativo intensificar o uso do espaço, potencializando o jogo, a aventura e a exploração. No entanto, ela deveria ir além do labirinto, pois nele a escolha de apenas um caminho correto único torna o horizonte prático de sua experiência limitado. O labirinto deveria ser continuamente modificável, dotado de um número infinito de saídas em movimento: um labirinto dinâmico.
(De Movimento internacional situacionista – Bruno Massara Rocha)
Referências bibliográficas:
WUILLAUME, Francis (trad.); VINICIUS, Leo (trad.). Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002.
www.territorios.org/teoria/H_C_situacionista.html.
A deriva situacionista – afirma Francesco Careri –
é ainda hoje, quem sabe, o instrumento mais eficaz para enfrentar as contradições do mundo, entrando nelas sem opor resistência e sem perder energia, mas se valendo da energia potencial que oferecem os fenômenos em curso para sulcar novos territórios, para entrar neles desimpedidos, sem preconceitos, prontos a acolher o que sucede, prontos a mudar de direção quando o vento muda. A deriva é um dispositivo que não se opõe ao devir, mas o deixa acontecer e desdobrar-se, acompanhando-o para seus próprios fins: atravessar o mar, um território fluido em perpétuo movimento – e portanto um território do “aqui e agora”, como tantas vezes são os fenômenos urbanos – obtendo potência e secundando a energia do vento, daquela pura força imaterial que, quando para, deixa de existir.
RELEMBRANDO O URBANISMO UNITÁRIO
O urbanismo unitário define-se primeiramente pelo emprego do conjunto das artes e das técnicas, como meios concorrendo a uma composição integral do meio ambiente. É preciso encarar este conjunto como infinitamente mais vasto do que o antigo império da arquitetura sobre as artes tradicionais, ou que a atual aplicação ocasional ao urbanismo anárquico de técnicas especializadas, ou de investigações científicas como a ecologia. O urbanismo unitário deverá dominar quer, por exemplo, o meio sonoro, quer a distribuição de diferentes tipos de bebidas ou de alimentação. Deverá abranger a criação de novas formas e o desvio de formas conhecidas da arquitetura ou do urbanismo – igualmente o desvio da poesia ou do cinema antigos. A arte integral, de que tanto se falou, não se podia realizar senão ao nível do urbanismo. Mas ela já não poderá corresponder a nenhuma das definições tradicionais da estética. Em cada uma das suas cidades experimentais, o urbanismo unitário atuará através de certo número de campos de força, que podemos momentaneamente designar pelo termo clássico de bairro. Cada bairro poderá tender a uma harmonia precisa, e em ruptura com as harmonias vizinhas; ou então poderá jogar sobre um máximo de ruptura de harmonia interna.
(transicoesurbanas.stress.fm/post/…/relembrando-o-urbanismo–unitário-o-urbanismo)