Estimada Natalia Greene
Estimado Francesco Martone
Recebo com surpresa e desgosto a vossa mensagem. Para mais fundada num parecer de uma colega que muito estimo Maristella Svampa.
À luz das considerações que mencionam, compreendo a vossa posição, mas quero declarar que elas assentam em premissas inaceitáveis num Estado de direito por que tanto lutámos. A presunção de inocência ao julgamento por instituições credíveis e não na praça pública e nas redes sociais foram lutas nossas desde o tempo que lutámos contra as ditaduras nos nossos países.
Desde há um ano sou objecto de uma guerra mediática internacional. É típico desta guerra que qualquer contra-narrativa é facilmente desacreditada. Pensei que o meu passado de luta ao lado das mulheres sobretudo indígenas e negras tivesse vindo em meu auxilio e dar-me o benefício da dúvida. Infelizmente tal não é possível porque as mulheres indígenas e quilombolas que me mandam mensagens de solidariedade não tem voz pública e estão intimidadas pela lógica do MeToo que se instalou na América Latina e que em minha opinião fará um péssimo serviço ao feminismo. Tenho lutado sem tréguas contra o feminicídio que só no meu país matou 25 mulheres no ano passado. Tenho estado e continuarei a estar na frente de todas essas lutas. Por estar certo que só decisões judiciais ou administrativas poderiam por fim a esta guerra, remeti-me ao silêncio esperando que uma Comissão Independente (CI) constituída pelo meu Centro (Centro de Estudos Sociais-CES). A CI publicou o seu relatório em 13 de Março e não encontrou provas, apenas indícios e sublinhou que das mesmas condutas havia versões completamente opostas. Todas foram validadas e não houve processo contraditório. Na minha nota limitei-me a dizer isso mesmo. Algumas das supostas vítimas resolveram escrever uma carta gravíssima em que me identificam entre os três agressores, imputando-nos crimes graves sem qualquer prova. Chamo a vossa atenção para o seguintes factos:
- Os outros dois investigadores são mestiços e nacionais de países africanos, um deles, é mulher. A prof. Maria Paula Meneses é moçambicana e o prof Bruno Sena Martins é cabo-verdiano. Pura coincidência? Não, há colonialismo e racismo no meu centro e o atalho mais eficaz para os atacar a eles é atacar-me a mim. Foi precisamente a minha colega moçambicana que actuou junto da Routledge por se sentir ofendida e difamada pelas autoras.
- Ao contrário do que tem sido dito, o capítulo difamatório foi retirado pela Routledge porque violava a lei inglesa da difamação. Era falsamente anónimo, já que duas das investigadoras fizeram questão de mencionar a instituição em que tinham feito formação.
- Duas das signatárias da sexta carta do colectivo de vítimas publicaram livros em –organização comigo ainda este ano. Aqui estão as referências:
Economias de Bem Viver. Contra o Desperdício das Experiências.
Santos, Boaventura de Sousa; Cunha, Teresa (orgs.). Coimbra: Edições 70, 2022.
https://www.almedina.net/economias-de-bem-viver-contra-o-desperdicio-das- experiencias-1658825207.html
Economías del Buen Vivir. Contra el desperdicio de las experiencias. Santos, Boaventura de Sousa; Cunha, Teresa (orgs.). Madrid: Akal, 2022. https://www.akal.com/libro/economias-del-buen-vivir_52440/
Descolonizando el constitucionalismo. Más allá de promesas falsas o imposibles. Santos, de Boaventura de Sousa; Araújo, Sara; Aragón Andrade, Orlando (orgs.) Madrid: Akal, 2021.
https://www.akal.com/libro/descolonizando-el-constitucionalismo_51643/
Decolonizing Constitutionalism. Beyond False or Impossible Promises. Santos, Boaventura de Sousa: Araújo, Sara; Aragón Andrade, Orlando (eds.) New York and London: Routledge.
https://www.routledge.com/Decolonizing-Constitutionalism-Beyond-False-or- Impossible-Promises/deSousaSantos-Araujo-Andrade/p/book/9781032490274
Pode imaginar-se que haja queixas graves contra mim por parte de pessoas que até agora colaboraram comigo?
- Nunca cometi qualquer acto de assédio sexual. Mostrei cabalmente que a sra. Moira Milan mentiu. Os documentos estão todos autenticados e mostra que continuou a contactar comigo até 2015 (sobretudo pedindo dinheiro para as suas causas), apesar de ter dito que não se comunicara comigo depois de 2010.
- O caso referido da brasileira Isabella Miranda (2014) está bem documentado e em segredo de justiça. Além disso, não lhe quero fazer o que ela me fez. Não tenho respeito pessoal por ela, mas tenho respeito político porque partilho muitas das lutas pelas quais ela luta. Sei que é candidata à prefeitura de Belo Horizonte (Brasil) e se lá vivesse certamente votaria. Isto não quer dizer que ela tenha dito a verdade na relação que teve comigo. Quando for publicada a documentação isso será evidente.
- Não me foram apresentados mais nenhuns casos de assédio sexual. Como fui director do Centro durante mais de 40 anos cometi certamente muitos erros e estou disposto a reconhecê-los quando me derem a oportunidade em Assembleia Geral. Mas nunca cometi erros graves nem, muito menos, crimes. Acusam-me sempre em conjunto com mais dois colegas, mas eu só sou responsável pelos meus actos. Desde 1984 eu passava quase metade do ano no EUA e desde 2012 não mais de quatro meses. Mantinha o lugar de director, mas a partir de 2010 deixei de ter funções executivas. Não excluo que tenha havido comportamentos irregulares no meu Centro e assumo responsabilidade política por eles, mas não posso ser culpabilizado por aquilo que não fiz nem por aquilo de que não tive conhecimento. Se tivesse sabido deles teria actuado prontamente. A verdade é que nunca houve denúncias.
Há um ano que sou vítima de uma guerra mediática. Sem ter sido condenado por nenhum tribunal ou por nenhuma instância administrativa. Como se recordam, o capítulo apresentava como prova pichagens anónimas. Para esta guerra convergem três públicos e a sua mistura é tóxica.
- O primeiro público é a extrema direita. Eu era um intelectual público de esquerda independente. Era preciso calar a minha voz sobretudo depois da guerra da Ucrânia e das minhas posições contra o imperialismo. A extrema-direita pediu no Parlamento para suspender o financiamento do meu Centro devido às minhas posições.
- O segundo público é a vertente MeToo do feminismo. Leccionei durante 35 anos nos EUA e nunca fui acusado de qualquer comportamento incorrecto. A crise que explodiu no meu Centro começou com um acto de vingança de uma investigadora belga a quem recusámos apresentar um projecto pela nossa instituição. Aproveitou-se de muito ressentimento interno que se foi acumulando com a precariedade do emprego segundo o modelo do neoliberalismo. Mais de três das assinantes da carta estão desempregadas ou em situação de subemprego ou em emprego precário. O neoliberalismo tende a criar comportamentos de ressentimento. O meu centro é dominado por uma ditadura de ressentimento neste momento. Há 14 pessoas denunciadas por 32 denunciantes. Das 14 denunciadas 9 são mulheres. Notem também que a grande maioria das assinantes da carta foram parte do meu projecto europeu ALICE. Acumulou-se muita frustração devido à alta competição em que estávamos. Nem todas as investigadoras estiveram à altura das exigências. Mas o projecto foi um êxito e vários jovens latino-americanos, incluindo um indígena, obtiveram brilhantes doutoramento.
- O terceiro público é o público científico, tanto marxista ortodoxo como conservador ou convencional, que se opõe às epistemologias do sul, a proposta epistemológica que lancei e que atraiu tantos jovens para a ciência ao serviço da democratização e das lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. As epistemologias do sul consideram que a ciência moderna é um conhecimento válido mas não é o único conhecimento válido. Deve saber dialogar com os conhecimentos populares e diálogos horizontais. Esta postura incomoda muita gente que não sabe sair da Torre de marfim em que confortavelmente vive (pelo menos, quando comparado como os que vivem fora). As rivalidades académicas são extremamente corrosivas e procuram qualquer pretexto para se manifestar.
Escrevo-vos esta longa mensagem pelo respeito e solidariedade que tenho por este tribunal que, de algum modo, ajudei a criar. Tenho pena (ate porque são um “tribunal”) que não tenham decidido ouvir-me antes de tomar uma decisão. Estamos num tempo de punitivismo em que as denúncias (sabe-se lá com que fundamento ou motivação ) são simultaneamente condenações. Quem vai pagar o preço por tudo isto são as nossas democracias. Reparem que são os intelectuais de esquerda os alvos preferidos destes processos. Nesta semana a minha colega e amiga Nancy Fraser foi cancelada por ter assinado uma carta pró-Palestina. Estamos num tempo de maccartismo contra o qual todos e todas lutámos. Não duvido das boas intenções da Maristella Svampa ou da Rita Segato ou da Gina Vargas, companheiras de tantas lutas. Só lamento que nos tenhamos separado sem trocarmos uma palavras e nos ouvirmos uns aos outros. A médio prazo, quem ganhará com estas atitudes não será o nosso campo.
Boaventura de Sousa Santos
Coimbra 11 de Abril 2024.
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