No dia 22 de novembro de 1986, um sábado, o Hotel Nacional no Rio de Janeiro fervia. Já passava das onze horas e a estreia do primeiro longa-metragem do cantor e compositor Caetano Veloso estava marcada para a meia-noite, na Sala Glauber Rocha, que ficava no Centro de Convenções do hotel. A exibição fazia parte do III Fest Rio e era aguardada com grande expectativa. 1986 havia sido mágico para Caetano: lançara o disco “Totalmente Demais”, gravado ao vivo no Golden Room do Copacabana Palace, e apresentara na Rede Globo uma série de programas ao lado de Chico Buarque. Era um Caetano ainda jovem (44 anos em agosto), frequentador da Pizzaria Guanabara, e que adotara durante alguns meses um charmoso bigode.
O diretor, os participantes do filme, todo o beautiful people carioca, não imaginavam o que estava por vir. Cabiam quase 2 mil pessoas na enorme sala; a movimentação de entrada e saída gerava um bafo quente e ominoso. Iniciada a sessão com atraso, as primeiras cenas de “O Cinema Falado” (1986) pareceram provocar certa angústia nos espectadores. A maioria resistiu firme às longas sequências de diálogos e monólogos, aguardando o que estava por vir. A questão é que nada veio: o filme era aquilo mesmo.
Logo o cineasta Arthur Omar – diretor de inúmeros curtas e do longa-metragem “Triste Trópico” (1974) – começou a gritar: “Isso é uma porcaria, vanguarda de cartão-postal! Chega de mistificação!”. Ouviram-se novos brados, de anônimos, inclusive alguns de “Viva Glauber Rocha!” e “Isso é uma egotrip!”.
A sessão terminou debaixo de gritaria, que prosseguiu no bar do hotel. Omar definiria sua “participação” como necessária para “dizer que tudo aquilo era muito ruim, antes que a imprensa partisse para a mistificação”. Vários partiram em defesa de Caetano. Júlio Bressane disse que “A obra de Caetano é mental. A plateia é pré-mental”. Arnaldo Jabor comparou o filme ao disco “Araçá Azul”. E a atriz Fernanda Torres, então com 21 anos, o definiu sucintamente: “Gente falando, só isso. Muita gente falando”.
A ideia de fazer um filme de quase duas horas sobre “muita gente falando” surgiu para Caetano da observação de que nos filmes brasileiros, principalmente do Cinema Novo, alguns discursos adquiriam uma forma literária. E, a partir de uma entrevista de Jean-Luc Godard, na qual o diretor afirmava que “um filme poderia constituir-se apenas de alguém contando uma história na frente da câmera”, consolidou o projeto. Para o título, inspirou-se em um verso da música “Não Tem Tradução”, de Noel Rosa: “O cinema falado é o grande culpado da transformação…”.
Essa é a urdidura que Caetano repete há 30 anos. E, como quase tudo em Caetano Veloso, não temos motivos para duvidar. Digo isso com ironia, considerando a enorme inteligência do artista, que foi capaz de elaborar a melhor defesa até hoje sobre o próprio filme. Se analisarmos minuciosamente “O Cinema Falado”, vamos concluir que sua pretensão de mostrar pessoas discursando ou conversando na frente da câmera realiza-se plenamente. E que, ao explicitar a questão literária ao limite na fala cinematográfica, ele obtém um belíssimo experimento.
Em 1986, poucas pessoas entenderam assim. Filmado em 21 dias, custando em valores de hoje cerca de 1 milhão e 500 mil reais, não foi uma produção barata. E com todo o suspense que causou, era fácil adivinhar que, não sendo de fácil digestão, sofreria críticas funestas. Um bom motivo para o incômodo reside também no fato de Caetano viver comprando polêmicas – inclusive no Fest Rio do ano anterior, quando protestara a favor de Je Vous Salue, Marie (1985). Justamente na sua vez, em que abria um enorme telhado de vidro, era óbvio que iriam atacá-lo. Por qualquer coisa.
Como toda intelligentsia que se preze, a de 1986 tinha dogmas: entre eles o de que o cinema brasileiro, salvo exceções, era um projeto que estava dando errado. Havia quem acreditasse que o caminho seria filmar em inglês, ou simplesmente abandonar o barco. Engolir Caetano, livre, leve e solto, dirigindo um longa-metragem, não tinha cabimento. True Stories, direção de David Byrne que encerrou o festival, foi visto como algo muito mais interessante. A verdade é que os críticos rodavam, rodavam, e não conseguiam explicar O Cinema Falado, cuja estreia comercial havia sido marcada para dezembro. A Casseta Popular prometera até um ato de protesto contra o filme.
No dia quatro de dezembro, aconteceu a estreia em apenas uma sala carioca: o decadente Cinema 1, na Rua Prado Júnior, inferninho de Copacabana. Comportando 500 pessoas, as sessões eram testemunhadas por menos de 100. Logo passariam a uma sala mais modesta, no Centro Cultural Cândido Mendes, Ipanema. Em São Paulo estreou uma semana depois, no dia 11, no Cine Belas Artes. Mas teve pré-estreia no Cine Metrópole, dia 5. E continuava a apanhar: a partir de uma (péssima) crítica de Caio Túlio Costa na Folha de S. Paulo (07-12-86), começou a ser chamado de “Cinema Parado”. O apelido espalhou-se igual praga, por todo o país. Até o cantor Lobão, no auge do sucesso, deu sua estocada: “Vi o trailer e o Caetano fica explicando o filme. Arte não precisa de explicação”. E a cineasta Suzana Amaral: O Cinema Falado já seria antigo há 20 anos. A Embrafilme está encampando o amadorismo”.
Se o leitor estiver sentindo mal-estar com tanta negatividade, vai sentir-se pior quando finalmente eu disser que estavam todos completamente equivocados. Nos últimos 30 anos, O Cinema Falado só fez crescer. Sim, é um “filme de ensaios”, como avisa na primeira cena. Mas com inesquecíveis passagens. Seja Hamilton Vaz Pereira lendo um trecho de Grande Sertão Veredas, ou Regina Casé deslumbrada com Fidel Castro. O nu frontal de Maurício Mattar, as danças do irmão e do amigo de infância de Caetano em Santo Amaro da Purificação – o tempo é criança brincando, e transformou O Cinema Falado, antes de tudo, em um almanaque de curiosidades sobre a década de 1980.
O auge da beleza é o diálogo entre Dedé Gadelha e Felipe Murray em um apartamento de São Conrado. Da janela, vê-se o Elevado do Joá. Desde a aparição da dupla até o excerto seguinte, passam exatos 19 minutos e 15 segundos. Ora eles abrem uma porta corrediça, que dá na varanda – ruidosa pelos carros do Elevado – ora a fecham. E trocam impressões a respeito de cinema. Felipe comete uma pequena gafe, ao perguntar em tom incisivo: “Quando vamos assistir ao Bandido da Luz Vermelha e O Anjo Nasceu na TV?”. Caetano não sabia, mas O Anjo Nasceu já havia sido exibido pela TV Tupi, no dia 28 de abril de 1979, às 23h.
Por falar em TV Tupi, existe uma influência oculta em O Cinema Falado que ninguém se dá conta: certos programas de TV, dos anos 1970 e 80, pareciam bastante com a mise-en-scène das sequências. Vejam, por exemplo, as participações de Glauber Rocha no programa (de tv) Abertura. O relançamento em DVD (2003) e o Youtube, que possibilita um comparativo, validam essa impressão. Além disso, a tecnologia consertou uma das principais queixas dos espectadores do passado: a de que, em um filme de falas, não conseguiam ouvir perfeitamente o que era dito na tela.
Ao ser consultado sobre os “Melhores de 86” pelo Jornal do Brasil, o diretor não se furtou a indicar, dentre outros, o próprio filme (!). Prossegue defendendo sua obra até hoje, nitidamente incomodado pela baixa receptividade. Sou fascinada por O Cinema Falado desde a primeira vez a que o assisti, uns quinze anos atrás. Diferente do que gritava Arthur Omar no Hotel Nacional, não era vanguarda de cartão-postal. Permanece instigante e único. E acho que se você não gosta de O Cinema Falado é porque o filme ainda não gostou de você. Deixe passar um tempo e torne a querê-lo. Um dia vocês se acertam com ele.
Cinemateca Brasileira
Cartaz do filme: Ana Linneman e Luciano Figueiredo.