Fiz esta entrevista com Roberto Bolaño em junho de 2002. Ambos pertencemos à mesma geração poética latino-americana. Inclusive integramos, por volta de 1980, uma antologia no exílio chileno, elaborada pela revista Araucaria (que pode ser encontrada na internet, www.solidaridadconchile.org/Exili.html). Em 2001 e 2002 tivemos um breve contato por e-mail, e ele amavelmente aceitou que lhe fizesse algumas perguntas. Eu as enviei um dia à tarde, na hora de Nova York, e no dia seguinte todas as repostas já estavam no meu correio eletrônico perfeitamente escritas em espanhol, sem nenhum erro ortográfico.
Esta entrevista foi publicada pela primeira vez pelo diário chileno El mostrador (www.elmostrador.cl), em agosto de 2002. Até essa data, não existia nenhum trabalho extenso, profundo, nem acadêmico, sobre a obra de Bolaño. Somente trabalhos curtos, resenhas passageiras. Passaram-se cinco anos desde então, e a obra dele, é claro, após sua morte, já foi objeto de muitos estudos sérios.
Na entrevista abaixo não troquei nem um ponto ou vírgula. Está tal como a fiz, como Bolaño a respondeu e como ela foi publicada um ano antes de sua morte. O resto é história.
Breve conversação virtual com Roberto Bolaño (junho de 2002)
Javier Campos
São muito poucos os escritores que jogam o tudo ou nada. Quase todos preferem se situar em um meio-termo, contentar uma enteléquia a que chamam de público leitor e assegurar seu salário. Que, ao final das contas, não é mais que um salariozinho miserável.
Roberto Bolaño
Pode-se saber alguma coisa sobre a trajetória de Roberto Bolaño através das muitas entrevistas que ele tem concedido (estão disponíveis na internet). É certo, também, que muitos artigos foram escritos a respeito de sua obra, porém são textos em geral curtos e publicados em jornais da América Latina e da Europa. Como anunciou El mostrador na edição de 15 de julho de 2008, está sendo preparado, no Chile, um volume inédito de estudos acadêmicos sobre sua obra – que inclui sua poesia, seus contos e romances – por Patrícia Espinosa, professora na Universidade do Chile e na Universidade Católica. Será – com toda a justiça – o primeiro conjunto de estudos sobre a obra de Bolaño. Alguns acadêmicos e escritores confirmaram por e-mail que até agora não se organizou nenhum painel nem se apresentou nenhuma comunicação sobre a obra de Bolaño nos recentes congressos de literatura latino-americana realizados nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina.
Consultei recentemente – até 2002 – a completíssima bibliografia internacional da Modern Language Association (MLA). Nada, nenhum trabalho acadêmico sobre a obra de Bolaño. Nem sequer ao importante romance Os detetives selvagens (prêmios Herralde de romance, 1998, e Rómulo Gallegos, em 2000) foi dispensada uma atenção crítico-acadêmica mais rigorosa por revistas especializadas em literatura latino-americana. Exceto o bom artigo de Enrique Vila-Matas, em www.letraslibres.com, datado de abril de 1999, sobre Os detetives selvagens, em que se fala da “diversidade textual” de sua narrativa: “É muito provável, portanto, que Bolaño pertença à família literária que reúne Italo Calvino em torno de uma de suas propostas para o próximo milênio: a da multiplicidade”. No entanto, a ausência crítica à obra do chileno não quer dizer que nos cursos de graduação em universidades latino-americanas, norte-americanas ou européias, ou nos colégios, não se estejam lendo e estudando algumas de suas obras. (Será que isso de fato ocorre no Chile, em seus colégios e universidades?)
Roberto Bolaño foi muito agradável e aceitou responder a algumas perguntas por correio eletrônico. Pensei que não teria tempo para isso porque está terminando um romance de mil páginas e sempre respeito a tranqüilidade e a privacidade dos escritores. Porém ele respondeu no mesmo dia, após eu ter enviado as perguntas a seu e-mail particular em Blanes, Espanha.
JC: Os detetives selvagens pode ser lido como o romance do fracasso total de uma aprendizagem política e poética de toda uma geração dos anos 1960 e 1970 que afinal se despedaçaria com o Muro de Berlim e a queda do socialismo. Isso seria uma temática importante de sua produção narrativa a partir da década de 1990?
RB: Eu não acredito que Os detetives selvagens seja o romance do fracasso de uma geração. A educação sentimental, de Flaubert, não é o romance do fracasso de uma geração. Pelo menos sua leitura não pode, de modo algum, esgotar-se aí. Tampouco acredito que Guerra e paz seja o romance do fracasso de uma geração. Ou Conversas na catedral. Sabemos, essa é uma lição do século XIX que somente ficou clara no século XX, que toda geração, pelo simples fato de existir, está fadada ao fracasso. Por isso, pensando bem, carece de importância, como dissera Empédocles e como no íntimo toda pessoa sabe. O importante é outra coisa. William Carlos Williams tem um poema magnífico sobre isso. É um poema longo, coisa pouco usual nele, em que Williams fala de uma mulher, uma trabalhadora, que conta as vicissitudes de sua vida, uma vida mais repleta de desgraças que de alegrias, porém que essa mulher enfrenta com valor. Ao final do poema, Williams diz: “Se você não pode trazer a esta terra algo mais que não seja a sua própria merda, suma daqui”. É claro, diz com outras palavras, acredito. Mas a idéia é essa.
JC: Parece-me que em sua narrativa não se conta uma história principal, mas que se “intercalam” outras histórias ao redor da principal (à maneira das histórias intercaladas de Dom Quixote). Isso pode ser notado em Os detetives selvagens e no Noturno do Chile, por exemplo. Com essa “diversidade narrativa” você quer romper com um modelo linear, fundante da narrativa dos anos 1960 e 1970, ou com a testemunhal pura da década de 1980?
RB: Nunca me interessou isso que você chama de literatura linear. Todo romance, digamos, desde Stendhal, é “um espelho no qual se passeia ao longo de um caminho” e todo caminho, evidentemente, oferece uma diversidade considerável de histórias. Toda história, por sua vez, é sempre uma história no tempo, não fora do tempo, portanto suscetível de mudanças e metamorfoses. E suscetível, também, de várias leituras. Dom Quixote, sem dúvida, continua a ser, pelo menos para os escritores de língua espanhola, o cânone central. E sobre “a diversidade”, só posso dizer que, às vezes, não é diversidade.
JC: Acredito que essas histórias dão outra dimensão a sua narrativa (poética, surreal, alucinante…). Por exemplo, em Noturno do Chile várias histórias se intercalam à história de Sebastián Lacroix: uma é a do pintor guatemalteco e do pintor Jünger; outra é a do sapateiro, súdito do imperador austro-húngaro, que parece nada ter a ver com Lacroix; ou a história das igrejas e dos falcões; de María Canales etc. O que você pode dizer a respeito?
RB: Bem, essas histórias estão ali principalmente em função do personagem principal, o padre Ibacache. Digamos que elas funcionem como os abismos do padre. Agora, veja bem, uma vez ali, essas histórias têm também que funcionar por elas mesmas. Digamos que são exemplos filosóficos, no sentido voltairiano, de uma trajetória moral. E, ainda, uma cortesia do escritor para o leitor, claro.
JC: Seu passado, antes de narrador, foi a poesia e continua sendo. Tenho em minhas mãos a antologia organizada por Soledade Bianchi em 1984 (Entre la lluvia y el arcoiris: jóvenes poetas chilenos [Entre a chuva e o arco-íris: jovens poetas chilenos]), título bem utópico, porém compreensível nos momento em que se escreveram tais poemas. Mesmo ali, em sua poética (ao lado de Bruno Montané), você projeta a crença em uma poesia redentora nesse momento: como o poeta que fala pelos desvalidos, pelos desaparecidos, pelas massas. E agora, quando você escreve poesia, como é esse novo narrador poético chamado Roberto Bolaño?
RB: Eu sempre fui contra a poesia dirigida, a poesia do povo, a poesia da palavra de ordem, a poesia do partido. Não cheguei a essa conclusão depois de algum tempo. Sempre fui contra. Agora, veja bem, acredito que de alguma maneira a beleza, a beleza inútil sempre está – e essa é precisamente sua soberania, sua elegância extrema – ao lado dos despossuídos, dos enfermos, dos perdedores, e que, ao término de um périplo nem sempre mensurável, ela volta para perto deles, volta a essa zona misteriosa e cotidiana em que, para sermos compreendidos (mas unicamente para compreender-nos), chamamos o povo, os cidadãos, os trabalhadores. E também, como não, os vagabundos não trabalhadores.
JC: Os McOndistas, comoFuguet, Paz-Soldán etc., assinalam em seu manifesto – novamente ressuscitado, há pouco, no número da Newsweek International de maio de 2002) – que sua literatura é semelhante ao que se vê nas propostas de filmes mexicanos como E sua mãe também (Alfonso Cuarón, 2000), ou Amores brutos (Alejandro González Iñárritu, 2000). Você concorda com isso? Acredita que sua proposta narrativa é igualmente válida enquanto lhes interessa celebrar, extasiados, a “globalização da cidade latino-americana” – assunto que, objetivamente, uma grande quantidade de pessoas (no momento) o faz e seguirá fazendo?
RB: Não li o manifesto de Fuguet, mas, até onde sei, o próprio Fuguet já lhe deu as costas faz tempo. Não assisti a esses filmes mexicanos que você mencionou. Desde que meu filho nasceu, há doze anos, vou muito pouco ao cinema, quase nunca, e essa situação piorou, só tem se agravado desde o nascimento de minha filha, há um ano e quatro meses. Digamos que os filmes que vejo são os que meu filho aluga. Sobre a globalização da cidade latino-americana, bem, suponho que é uma lorota: as grandes cidades latino-americanas resfolegam como peixes fora d’água. É um tema complexo e seria irresponsável de minha parte falar disso aqui.
JC: Em algumas de suas entrevistas você dá a impressão de desconfiar dos acadêmicos latino-americanos que ensinam literatura latino-americana em universidades dos Estados Unidos. Por quê?
RB: Não, não creio que desconfie. Na realidade, não tenho uma idéia formada sobre esse contingente, que provavelmente deve ser muito variado. A verdade é que eles não possuem uma imagem muito boa. Aqui na Europa costuma-se vê-los como ratos. Ou como parte de uma picaresca latino-americana. Porém me lembro de excelentes professores, como Vazquez-Amaral, por exemplo, uma pessoa muito atenta, muito amável, que traduziu os Cantos, de Pound. Piglia, que também ensina nos Estados Unidos, é um escritor que me interessa. E Carmen Boullosa, a escritora mexicana. Suponho que o mesmo se dê em outros campos do saber humano: por um bom, há cem nefastos. Harold Bloom tem algumas opiniões a respeito, porque é um terreno que lhe toca, digamos, pessoalmente. Para mim, francamente, tanto faz.
JC: Mas você viajaria e viveria nos Estados Unidos como escritor convidado em uma universidade norte-americana? Esses convites fazem parte de uma longa tradição (como sabe, passaram muitíssimos escritores e continuam passando e a lista é longa). Inclusive as inscrições para a famosa oficina internacional de narrativa, da Universidade de Iowa, que ocorre de setembro a dezembro de cada ano, são sempre numerosas, com solicitantes de toda a América Latina. Qual sua opinião sobre isso?
RB: Não está entre meus planos viajar para os Estados Unidos. Menos ainda para um campus. Há uma idade em que se pode ser professor e fazer uma viagem ou viver uma temporada em outro país. Porém eu já tenho mais de quarenta anos, na verdade farei cinqüenta em 2003 e gosto muito de viver na Europa. Quando jovem, talvez tivesse sido interessante viver no Arizona, ou na Califórnia ou em Nova York, que suponho serem lugares cheios de energia. É claro, em nenhum caso viveria em um campus, nem acredito, por outro lado, que me convidassem para passar ali nem sequer um fim de semana. De fato, sinceramente, não acredito que, quando eu era jovem, me concedessem visto para entrar nos Estados Unidos. Ali só concedem vistos aos ricos e aos terroristas. Claro, poderia entrar como espalda mojada,[1] mas é que no México eu já vivia como espalda mojada; assim seria, nos Estados Unidos, duplamente espalda mojada. Ou costas e peito molhados, o que teria sido o cúmulo. Na realidade, ao contrário de muitos escritores chilenos, nunca senti o chamado do Tio Sam. Na América, me interessavam muitíssimo mais o México e a Argentina. De fato, poderia dizer que me interessava muito mais o Peru, e a riquíssima poesia peruana dos anos 1970, do que os Estados Unidos. E agora, não sei, não troco viver junto ao Mediterrâneo por nada.
JC: 2666, o romance de quase mil páginas que está terminando, o que é?
RB: 2666 é uma aposta. Dado o número de páginas, a aposta necessariamente tem que ser forte. Ainda que, na realidade, toda obra literária deva ser enfocada assim: como um trabalho de artesanato, de humildade e de paciência, porém também uma aposta selvagem, o instante em que o escritor joga tudo ou nada. Esse é um dos males, por outro lado, da literatura contemporânea. São muito poucos os escritores que jogam tudo ou nada. Quase todos preferem se situar em um meio-termo, contentar uma enteléquia a que chamam de público leitor e assegurar seu salário. Que, ao final das contas, não é mais que um salariozinho miserável.
Javier Campos. Poeta, narrador, colunista chileno. Reside nos Estados Unidos, onde é acadêmico da Universidade Jesuíta de Fairfield, Connecticut.
www.faculty.fairfield.edu/campos/
[1] Espalda mojada: termo com que se designam os mexicanos que entram nos Estados Unidos clandestinamente.