Heller encantou-se com as fotos que ele fez do Centro velho de São Paulo, estampadas no extraordinário livro Fotógrafos franceses em São Paulo (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), que havia dado de presente a uma amiga. Heller ficou impressionada, em especial, com uma das fotos de Lévi-Strauss: algumas cabeças de gado tangidas em plena Rua da Liberdade, ao lado do bonde, lotado, de homens de terno, gravata e chapéu, e de umas poucas mulheres encasacadas.
O bonde trazia, em sua testa, o letreiro “Vila Mariana”. Lévi-Strauss a bateu entre 1935 e 1939, quando lecionou na USP. Disse-lhe que ela me lembrava uma do suíço-americano Robert Frank: a do vaqueiro em Nova York, intitulada “Rodeo”, da espetacular série The Americans. A foto de Frank é dos anos 1950. Todavia, ambas flagram o rural no urbano ou, em outras palavras, o processo vindouro do esmagamento do campo pela cidade, entre outras coisas. Os passageiros do bonde, àquela altura, já olhavam surpresos para o rebanho, cabisbaixo. Heller me perguntou se Claude ainda estava vivo. Contei-lhe que se tornou antropólogo no Brasil, ao estudar os índios Kadiveu e os Bororo nos anos 1930. Ela conhecia Tristes trópicos, escrito com base em suas experiências brasileiras. Lembrei-me da frase inicial: “Odeio as viagens e os exploradores”, que revelava toda a virada etnocêntrica do pensador francês, despojado do espírito da pilhagem. O assunto mudou, não sem antes Heller notar as semelhanças de Centro velho de São Paulo, daquela época, com o de Nova York.
Pouco me importam os rótulos: estruturalismo “teoricismo”, “formalismo”, “abstracionismo”. Ele mesmo detestava o termo “estruturalismo”, que decretava degradado pelos amigos e adversários. Prefiro reler, como poeta, As estruturas elementares do parentesco (1949), que encontrou em Simone de Beauvoir sua primeira resenhista. E todos os seus livros. Sem seu olhar, os índios teriam menos direitos do que têm hoje. Os índios estariam ainda mais dizimados. E, com eles, a natureza ou o que ainda resta dela. Provavelmente, a contracultura dos anos 1960 não teria a dimensão que teve sem as ideias desse belga de nascimento.
Lévi-Strauss deu estatura internacional ao Brasil – um país de cultura provinciana, que se move por meio dos “corretores intelectuais”, para usar a expressão do próprio antropólogo. O conceito de uma literatura voltada para o Brasil, surgida com a Semana de Arte Moderna de 1922, encontrou profundidade nas pesquisas de Lévi-Strauss. Leia-se “Nesse Brasil que conhecera certos êxitos individuais brilhantes, mas raros – Euclides da Cunha, Oswaldo Cruz, Chagas, Villa-Lobos –, a cultura permanecera, até época recente, um brinquedo para ricos. Era porque essa oligarquia precisava de uma opinião pública de inspiração civil e laica, para fazer frente à influência da Igreja e do Exército, assim como ao poder pessoal, que, ao criar a Universidade de São Paulo, ela se propôs levar a cultura a uma clientela mais vasta” (in Tristes trópicos, 1955). Como paulistano, permito-me trazer à tona algumas de suas observações sobre a cidade: “A cidade desenvolve-se a tal velocidade que é impossível obter seu mapa: cada semana demandaria uma nova edição” (in Tristes trópicos). Frase charmosa, que não o impediu de apontar os seus horrores, já nos anos 1930. Lévi-Strauss discutia sua antológica feiura: “E, contudo, nunca me pareceu feia: era uma cidade selvagem, como o são todas as cidades americanas”. E é ainda em Tristes trópicos que encontro certa explicação para a foto que evoquei no início: “Mas, os milionários abandonaram a Avenida Paulista. […] Suas residências de inspiração californiana, em cimento misturado à mica e com sacadas de ferro fundido, deixam-se entrever no fundo de jardins abertos aos pequenos bosques rústicos onde se implantam esses loteamentos para ricos. Pastos de vaca estendem-se ao pé de imóveis em concreto…”. Lévi-Strauss, com seus trabalhos, mostrou à “civilização” (branca) todo o seu desconforto e aí reside sua centralidade crítica para o futuro: “A (minha) vocação etnológica talvez tenha sido mesmo um refúgio contra uma civilização, um século, em que a gente não se sente à vontade”. Lévi-Strauss levantou “suspeitas” corretas sobre o etnocentrismo e o desastre ecológico que provocou. O aquecimento global é prova disso. É importante recordar sua definição de cultura, imprescindível para aqueles que não se contentam com os limites do “mercado” e do desgoverno oficialista: “Em sua acepção geral, cultura designa o enriquecimento esclarecido do juízo e da capacidade de distinção” (De perto e de longe, Claude Lévi-Strauss & Didier Eribon). Assiste-se, nessa quadra histórica, a um movimento de indistinção generalizado, evidenciando a morte da crítica, a morte da arte, da literatura, da poesia. Lévi-Strauss ponderava que os membros de uma cultura são ao mesmo tempo observadores e agentes. Onde estão eles hoje? Nessa mesma trilha, entendia – corretamente – a “cultura do rock” (pop) e a dos “quadrinhos” mais como fenômenos sociológicos. Chegou a falar em “malversação intelectual”. Quem teria coragem para afirmar isso aqui e agora, em um país onde Chico Buarque é considerado “prosador-modelo” por críticos marxistas? Lévi-Strauss opunha-se igualmente à ideia de “síntese” de uma cultura, tópica ainda valorizada no Brasil – irredutível a uma interpretação, como qualquer outro país ou cultura. Basta de malversação intelectual. O autor de Tristes trópicos dialogou com gigantes como Roman Jakobson, Jaques Lacan, Michel Foucault, Roland Barthes (todos fascistas?) e outros, que também contribuíram para definir ideias não para o século XX, mas para o futuro.
Lévi-Strauss influenciou todas as artes e todos os campos de conhecimento. Não creio, por exemplo, que o Cinema Novo, de Glauber Rocha, para dar um exemplo qualquer, pudesse existir sem seu pensamento – ele, um estrangeiro que se voltou para o Brasil e mostrou a relevância de seus índios, de seus recursos naturais, de seu “interior”. Talvez os “Parangolés”, de Hélio Oiticica tenham esse traço etnográfico, ao romper com a representação renascentista e incorporar as margens. Aliás, foi graças ao trabalho sobre os Bororo, em Mato Grosso do Sul, que ele, Claude, foi convidado para um primeiro período em Nova York e lá conviveu com artistas de primeira linha, do movimento surrealista, entre eles o insuperável Marcel Duchamp – a quem se referia como “afável” – e Max Ernst, de quem se tornou próximo. Lévi-Strauss afirmava que a mitologia de cada cultura se construía em torno de oposições binárias: o quente e o frio, o cru e o cozido, o animal e o humano, o molhado e o queimado – pensamento que se condensou em um livro chamado exatamente O cru e o cozido, de 1964. Talvez ele apreciasse ler o poema “Fazer o seco, fazer o úmido”, de João Cabral de Melo Neto, do livro A educação pela pedra (1966). As ideias de Claude eram poéticas. E estavam no ar naqueles incríveis anos 1960 e 1970. Deixo então aos leitores o poema como homenagem a este que libertou a antropologia de suas próprias fronteiras e a tornou obrigatória para todos.
Fazer o seco, fazer o úmido
A gente de uma capital entre mangues,
gente de pavio e alma encharcada,
se acolhe sob uma música tão resseca
que vai ao timbre de punhal, navalha.
Talvez o metal sem húmus dessa música,
ácido e elétrico, pedernal de isqueiro,
lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo
na molhada alma pavio, molhada mesmo
*
A gente de uma Caatinga entre secas,
entre datas de seca e seca sem datas
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água.
Talvez as gotas úmidas dessa música
que a gente dali faz chover de violas,
umedeçam, e se não com a água da água,
com a convivência da água, langorosa.