“[…] à medida que a poesia se deixar levar pela nostalgia de tais ‘moldes antigos’ ou insistir na reação contra eles decidirá, a meu ver, da sua liberdade conceitual, pois o regresso ao padrão arcaico ou transposto é quase sempre indício de uma tendência para a recapitulação histórica, para a volta a concepções e diretrizes intelectuais também suplantadas. Quero dizer: começa-se pela forma e chega-se ao fundo. Ora, acredito que os poetas se acautelarão do risco.”
Carlos Drummond de Andrade
Em fevereiro de 1957, um Mário Faustino tão irônico quanto precipitado clamava do coreto da “praça de convites” pelo retorno do sr. Carlos Drummond de Andrade ao front. Suas palavras, proferidas por meio de Poesia-Experiência, a página de poesia do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, eram focadas na agonia do momento poético brasileiro e traziam à tona um Drummond entrincheirado no campo literário daquele período.
Para Mário, aquela postura calada e distante do poeta itabirano estava completamente alheia à busca por uma solução para o suposto estado moribundo da poesia brasileira dos anos 1950. Não fazia sentido que o dono do mais lúcido corpo de poemas de nossa literatura assumisse uma postura reacionária e desistente. Para quem estava de armas em punho, vociferando por revolução, essa atitude, à primeira vista, representou um descaso sem tamanho para com a arte poética. No caso de Faustino, o peso dessa decepção foi tão maior quanto sua admiração pelo autor de Alguma poesia:
“Há o sr. Carlos Drummond de Andrade. O sr. Carlos Drummond de Andrade é dono do mais ponderável corpo de poemas que já se formou na nossa história literária. O sr. Carlos Drummond de Andrade, em quem muitos se apressam, periodicamente, em apontar sinais de decadência (o poeta os estimula publicando, vez por outra, versos bem abaixo dos seus próprios standards), o sr. Carlos Drummond de Andrade, de quando em quando, aparece com um poema como aquele ‘Elegia’, do Fazendeiro do Ar, ou como certo poema publicado recentemente em O Estado de S. Paulo, comprovantes de ainda ser ele uma das duas pessoas vivas que melhor escrevem no Brasil… Mas a não ser que o sr. Carlos Drummond de Andrade apareça de repente com uma autorrevolução bem mais radical que a processada entre A rosa do povo e os Novos poemas, predecessores de Claro enigma, a não ser que o sr. Carlos Drummond de Andrade rompa subitamente com todo um sistema ético e estético – a não ser nessa remota possibilidade, é difícil enxergar nele uma solução eficiente para os problemas que justificam a ação poética no Brasil…
O sr. Carlos Drummond de Andrade só age poeticamente através dos livros que publica. Não escreve a sério sobre poesia. Não faz crítica séria de livros de poesia. Ao que saibamos não discute a sério poesia, nem oralmente nem por escrito. Cala-se. Não manifesta grande interesse pelo progresso da poesia.” [1]
Como sabemos, o percurso poético de Carlos Drummond de Andrade apresenta essa reviravolta anunciada acima por Faustino, tanto em aspectos técnicos como no próprio sujeito lírico, na transição – encarnada pelos Novos poemas – entre A rosa do povo, de 1945, e Claro enigma, de 1951. Em detrimento de uma “poesia social”, que o consagrou como nosso maior “poeta público”, de grande apelo esquerdista, o livro de 1951 marcou uma fase de pessimismo e de retomada do legado clássico, cuja semelhança com o virtuosismo estéril de muitos autores da Geração de 45 é responsável pela maior parte das investidas contra o poeta itabirano.
Não à toa, desde o início houve polarização na recepção de Claro enigma, entre uma minoria que celebrou essa obra como um gesto de amadurecimento do poeta e uma maioria que viu ali uma postura reacionária de aproximação com a campanha restauradora da Geração de 45. Controversa até hoje, essa guinada detém uma extensa fortuna crítica formada, inclusive de bom volume de material recente preocupado em explicitar as razões desse “silêncio”, ou dessa “recusa”, como preferem alguns.
Combater à distância
Em seu ótimo ensaio sobre essa fase da obra de Drummond, Vagner Camilo descreve o poeta diante de um impasse entre duas ameaças decorrente do pessimismo e da falta de horizonte utópico nascidos do desencanto com o sectarismo ideológico no contexto da Guerra Fria: de um lado, o dogmatismo fincado na política cultural do PCB naquele período; de outro, a especialização dos neomodernistas de 45 em um esteticismo redundante e alienante.
Esse impasse estaria no cerne da constituição de Claro enigma, no qual a apropriação do legado “clássico” por parte de Drummond nada teria de regressiva ou restauradora. Para Camilo, trata-se, na verdade, de uma operação consciente de tomada de posição:
“Assim, diante de uma conjuntura histórica marcada pela frustração da utopia revolucionária e de todo empenho participante, o sujeito lírico, que, segundo alguns intérpretes, acabaria por abandonar a ‘praça de convites’ para supostamente recolher-se ao isolamento de sua torre-de-marfim, estaria, na verdade, operando uma retirada estratégica […]” [2]
Prova disso é que o próprio Drummond acabou por confirmar a necessidade de se armar contra qualquer tipo de neoclassicismo ingênuo ou posicionamento político-ideológico reacionário, como neste comentário a uma carta remetida por Mário de Andrade:
“No meio de tantas paixões fáceis e de tanta intelectualidade abdicante, Mário preserva o seu individualismo consciente, que lhe dá mais força para exercer uma ação social que os intelectuais políticos praticam de mau jeito e sem resultado.” [3]
Com seu silêncio, Drummond abriu uma trilha possível diante do esfacelamento da utopia comunista. Ao contrário de outros poetas (como Ferreira Gullar, que no início dos anos 1960 abandonou a vanguarda para publicar cordéis pelo Centro Popular de Cultura), com sua retirada estratégica Drummond buscou não se distanciar a ponto de se alienar, nem se aproximou demais, a ponto de se privar de sua liberdade intelectual.
Já para Mário Faustino, escapou à sua impressão imediata a desconfiança de que seria muito improvável que um escritor como o sr. Carlos Drummond de Andrade pudesse assumir uma postura ingênua àquela altura do campeonato. Justiça seja feita, apesar da carga exagerada de ironia em seu artigo, o poeta piauiense – como afirma sua biógrafa – arrependeu-se da indelicadeza e também sofria com juízos precipitados que até hoje o colocam na mesma bandeja do concretismo (em grande parte devido ao próprio grupo de Noigandres), seja como adepto ou como precursor. [4]
Poesia, dor e morte
Camilo também percebe em Claro enigma uma noção mais ampla e distanciada da História, disposta em certo senso de fatalidade presente na herança trágica do poeta de Brejo das almas. Essa herança, aliada ao sentimento de culpa drummondiano – entenda-se aí culpa social (ou culpa de classe), familiar (retratada por Drummond na figura do gauche) e histórica (encarnada, sobretudo, no último verso de “Estampas de Vila Rica”: “Toda história é remorso.”) –, é uma peça-chave do entendimento do pessimismo presente na obra.
Se entre as motivações para a retirada drummondiana está a frustração com o sectarismo político-ideológico do Partido Comunista no contexto da Guerra Fria, foi a partir de sua herança trágica e de seu sentimento de culpa que o poeta encontrou na dor o fio condutor de seu pessimismo. A partir daí, a análise se volta para as relações entre os dois últimos poemas do livro: “A máquina do mundo” e “Relógio do Rosário”.
O alerta para o vínculo presente entre “A máquina do mundo” e “Relógio do Rosário” é evidente não só pelo fato de ambos constituírem a última parte de Claro enigma, mas também pelas relações antagônicas presentes nos versos de ambos os poemas. No caso do “Rosário”, retomando Nietzsche de O nascimento da tragédia nos versos “Oh dor individual, afrodisíaco/ selo gravado em plano dionisíaco”, Drummond nos remete à dor primeva da individuação, quando, a partir do despedaçamento do mito cósmico do Homem Universal, celebrado em Dioniso, surgiu o primeiro fundamento do mal (a arte, por sua vez, representa a esperança de retorno à unidade primordial de tudo o que existe).
Apesar de citar o amor como um caminho possível para a superação da dor da individuação nietzschiana, os demais versos do poema mostram como esse elemento é fugaz e fraco diante do “contato furioso da existência”. Dessa forma, Drummond reafirma, ainda segundo a leitura de Camilo, a dor do existir como “verdade última, revelada em toda sua clareza ao sujeito lírico em meio à dourada praça do Rosário”. [5] A menção de Camilo ao “sofro, logo existo” de Schopenhauer serve, então, para endossar a presença, em “Relógio do Rosário”, dessa “identidade na dor como fundamento de toda existência”. [6]
Nesse sentido, a dissipação da sombra nos versos finais do poema coroariam a clareza dessa revelação. Por fim, o dístico final, que guarda um intertexto brilhantemente descrito por Camilo com “Cimetière Marin”, de Paul Valéry, seria, de acordo com a tese schopenhaueriana, a figuração da morte como “única forma de alçar a paz, de alcançar a libertação, a superação da catástrofe simbolizada, como no mito bíblico de Noé, pela pomba desferindo o voo sob o céu azul”. [7]
Entretanto, é possível encararmos essa obra por outra tangente, que não diverge de todo da leitura de Vagner Camilo, mas acrescenta alguns elementos. Nesse sentido, os versos de “Relógio do Rosário” encerram não uma certeza definitiva, mas um ciclo de um estado que não é permanente, pois cessa no fim da sombra (ou da noite que invade os primeiros versos do livro: “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada./ Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.”).
Dessa forma, ao invés da consagração da morte como verdade última, temos, então, a imagem de um estado cambiante entre recusa e aceitação, noite e dia, explicitada pelas relações antagônicas dos dois últimos poemas do livro. Aí reside, a meu ver, a clareza desse enigma encerrado nos versos de “Relógio do Rosário”.
A máquina do mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima – esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Relógio do Rosário
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.
Oh dor individual, afrodisíaco
selo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face… Ele murmura
algo que foge, e é brisa, e fala impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contato furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
Notas
[1] Poesia-Experiência, 10/12/1957, p. 5.
[2] Vagner Camilo, Drummond: Da rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 19.
[3] Carlos Drummond de Andrade, O observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985, p. 21. A carta em questão diz o seguinte: “Pela primeira vez se impôs a mim o meu, o nosso destino de artistas: a Torre de Marfim. Eu sou um torre-de-marfim e só posso e devo ser legitimamente um torre-de-marfim. Só um anjo da guarda perfeito me impediu escrever um artigo sobre isso no dia em que descobri que sou um torre-de-marfim. Mas sobrou o anjo da guarda, felizmente, imagine o confusionismo que isso ia dar e o aproveitamento do f-da-puta. Porque, está claro, a torre-de-marfim não quer nem pode significar não-se-importismo e arte-purismo. Mas o intelectual, o artista, pela sua natureza, pela sua definição mesma de não-conformista não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político. Ele pensa, meu Deus!, e a sua verdade é irrecusável para ele. Qualquer concessão interessada para ele, para sua posição política, o desmoraliza, e qualquer combinação, qualquer concessão o difama. É da sua torre-de-marfim que ele deve combater, jogar desde o guspe até o raio de Júpiter incendiando cidades. Mas da sua torre. Ele pode sair da torre e ir botar uma bomba no Vaticano, na Casa Branca, no Catete, em Meca. Mas sua torre não poderá ter nunca pontes nem subterrâneos. Estou assim: fero, agressivo, enojado, intratável e tristíssimo” (Carlos Drummond de Andrade (org.), A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1988, pp. 224-225).
[4] Apesar de ter mantido sempre uma posição independente, embora tenha prestigiado a iniciativa concretista em Poesia-Experiência, Mário Faustino ainda tende a ser lido a partir da ótica do grupo paulista. Exemplo disso é que mesmo bons críticos chegam a afirmar que o poeta era “adepto imediato das concepções e propostas do grupo paulista” (Camilo, op. cit., p. 30). Note-se ainda em nota do mesmo livro que o autor havia alertado para esse risco: “Há nisso, decerto, mais um exemplo do que Roberto Schwarz identificou como ‘procedimento-chave dos concretistas, sempre empenhados em armar a história da literatura brasileira e ocidental de modo a culminar na obra deles próprios’” (p. 33).
[5] Camilo, op. cit., p. 306.
[6] Ibidem, p. 305.
[7] Ibidem, p. 311.