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APONTAMENTOS MARGINAIS: A POESIA E A VIDA DE CRUZ E SOUSA

Em 1898, cerca de um ano depois de haver concluído a redação de Faróis e Evocações – e da publicação de Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé , Cruz e Sousa morre em estado de penúria extrema, vítima de tuberculose, em Sítio (MG), para onde se dirigira, inutilmente, em busca de melhora. Seu corpo desce para o Rio de Janeiro num vagão utilizado para o transporte de gado.

“Ninguém sentiu teu espasmo obscuro/ (…) / O mundo para ti foi negro e duro”. Estes versos, do soneto “Vida Obscura” (Últimos Sonetos, 1905), bem poderiam servir de epitáfio à memória não só do escritor negro. Por certo, também evocariam todo um elenco de artistas que viveram, cada qual a seu modo, vidas que poderiam ter sido e que não foram. Vejamos alguns exemplos: (1) Edgard Allan Poe (1809-49), poeta norte-americano, patriarca do simbolismo que influenciou decisivamente a poesia de Baudelaire – que por seu turno influenciaria Cruz e Sousa – e Mallarmé; Poe, filho de um casal de atores pobres e famélicos, foi adotado por um gentleman do sul dos Estados Unidos. Não obstante esse lance afortunado em sua vida, tratou de findar seus conturbados dias, bêbado e miserável em meio à sarjeta. (2) François Villon (1431-?), “por muitos, considerado o primeiro poeta moderno da França” (P. E. da Silva Ramos), foi um homicida e ladrão, e por pouco não acabou condenado à forca; viveu largo tempo no exílio e mais outro tanto às ocultas no submundo da marginalidade. Ezra Pound compara-o a Dante. (3) Vielimir Khlébnikov (1885-1922), um homem sem a menor aptidão para as coisas práticas e sensatas da vida, viveu quase sempre à margem dela, mesmo tendo concluído (não se sabe como) os estudos formais; inventor da poesia russa moderna. Uma espécie de homeless que “morreu de fome em santalov” (Haroldo de Campos) com a cabeça repousada sobre um travesseiro de manuscritos. Esses três exemplos já são o bastante. A lista não teria fim.

Digamos, então, que até mais ou menos o final do século 19 e início do nosso, casos e transes como estes e o de Cruz e Sousa não chegam a constituir surpresa. Ademais, a voga romântica persistia muito forte, e mesmo justificava – inclusive ou de preferência – as revoltas mais patológicas aos vários condicionamentos político-sociais de então, forjados segundo os moldes do positivismo. No entanto, se é verdade que para muitos escritores e poetas o mundo foi e tem sido generosamente “negro e duro”, ou “áspero e forte”, poucos, por outro lado, podem-se “vangloriar” de haver passado um “dia de negro” em pleno fin-de-siècle brasileiro: escravidão, república recém-nascida, Canudos etc. Um grão de sal na memória do leitor.

Cruz e Sousa, como é consabido, não passou um, mas uma vida inteira deles. Uma vida de negro, para dizer o mínimo. E sem o glamour dos panos coloridos e sabores picantes que agora identificamos ao gesto afirmativo dos movimentos negros. Ele experimentou dias e noites de uma vida estilhaçada. Por exemplo, imaginemos o vidro cortante dos olhos vidrados de Gavita, sua mulher, enlouquecida (vencida pela fome e anemia, justificam alguns pesquisadores) e metida num banzo sem fundo, infernal. Mudez da crioula doida. Este o sentido trágico, ou apenas um dos sentidos do verso (e da entropia entranhada à existência do poeta) citado lá no início do nosso texto: o mundo para ti foi negro e duro. Mas Cruz e Sousa ainda é capaz de submeter sua experiência dolorosa ao crivo da função poética da linguagem, para ver até que ponto a síntese entre ambas é de fato possível. No poema em causa, Cruz e Sousa se aplica nesta aventura no momento em que tira proveito da polissemia do vocábulo “cruz”. O poeta – como frequentador da escola mefistofélica – se reconhece a si mesmo como símbolo. Um drama ambulante. Vida e arte mescladas num nome-desígnio: cruz. O homem preso ao nome. Persona. Cruz e Sousa eleva o seu nome a altas temperaturas informacionais, flertando mais com a ironia do que com o sentimentalismo autocomplacente: o poeta salta de dentro do homem para estranhar o nome que carrega entranhado em si próprio. Do ponto de vista de um jogo paronomástico, estaríamos diante de algo como um desatino-sentido congenial a um destino que, por sua vez, é a hipostasia de um estilo. Assim, talvez fosse a hora de ressaltar a seguinte citação extraída do poema: “Sei que cruz infernal prendeu-te os braços” (grifo meu). Porém, outra também seria bastante sugestiva, e ela diz assim: “…En somme, le style… c’est le diable!” (Paul Valéry, Mon Faust). Vejamos alguns excertos do poema:

VIDA OBSCURA

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
(…)

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

João de Cruz e Sousa, filho de escravos, nasceu a 24 de novembro de 1862 na cidade de Desterro, atual Florianópolis (SC). Tentou talvez, como nenhum escritor brasileiro tentara até então, romper o molde das contingências históricas e sociais. Em muitos aspectos foi derrotado, mas no principal teve êxito, embora em vida não tenha sido, por si mesmo, testemunha disso. Os fatos de sua biografia evidenciam os grandes obstáculos que precisou enfrentar para levar a termo seu projeto criativo, o qual, em sentido amplo, dizia respeito tanto ao indivíduo no seu anseio de tornar possível uma vida mais digna para si e os seus, como ao artista, que marca a sua ação independente sobre o mundo, mediante uma visão desautomatizada e contestadora acerca do mesmo.

Via de regra, os transes, os padecimentos de um poeta sempre acabam num livro. Para que o sangue vire letra, para que o sentimento se resolva em símbolo, isto é, figura, faz-se necessário trabalho sobre a matéria prima. Vale dizer, é preciso fazer. Os antigos davam a isto o nome de poesia. Cruz e Sousa estava a par disso, e ia além. Para ele, poesia era música, arte, combinatória. Articulação e descentramento. Fazer. E acontecer, inclusive, no que foi (mal)feito. Encarnar. O descarnado da arte – seus artifícios – se incorpora à própria vida. Dir-se-ia que a arte de Cruz e Sousa se desenha a partir da interdição do seu corpo negro. Pode ser. E o poema tem algo do estado de coisas do seu espírito. O poeta negro conspira no limite entre vida e arte. Há som, sombra, luz e fúria (húbris) na poesia deste homem da ilha do Desterro. Assim, malgrado a condição emparedada em que o mundo insistia em confiná-lo – ou mesmo, graças a ela -, Cruz e Sousa produziu sua poesia dissoluta, provocante, cuja pulsão libertária sugere-nos que é “escrita em sonho” e escrava da “embriaguez do ritmo, da sonoridade, da música das palavras”. O efêmero da poesia, seu fracasso, seus “sons intraduzíveis”.

A consciência de Cruz e Sousa sobre os limites do discurso poético é de uma modernidade impressionante. Cruz fez o dever de casa:

TORTURA ETERNA

Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura
Ó luta, ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó sons intraduzíveis, Formas, Cores!…
Ah! Que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!

A visão embriagada, satânica e dúplice de Cruz e Sousa, não deriva apenas, como supõem alguns críticos mais apressados, de uma mente atormentada ou recalcada, que não soube como construir meios mais objetivos de autodefesa às obscurantistas regras sociais que à época se destinavam ao abafamento da vontade dos não brancos. Um ponto de vista interessante, para que se possa fruir em profundidade a poesia de Cruz e Sousa, é o que entende o inusitado dessa poesia como a prática intransigente de uma estética que só se concebe como estranhamento (húbris). Uma poética descentrada, que pressupõe uma total ruptura com as mais variadas formas de determinismos, sejam eles históricos, geográficos, étnicos, etc. A obra de Cruz e Sousa é um milagre antinaturalista. Sua poesia torce o pescoço à voz de comando e toda poderosa do meio.

ALGUNS FATOS DE UMA VIDA QUE É SONHO

Na infância, esse filho de escravos libertos foi tutelado pela família do Marechal Guilherme Xavier de Sousa. Na casa do Marechal, o menino Cruz e Sousa aprendeu a ler e escrever. Cruz e Sousa vivia assim uma espécie de vida dupla, pois não fora abandonado de fato por seus genitores e, ao mesmo tempo, era mimado e educado pela família do ex-senhor com todos os requintes, requisitos e cuidados normais aos códigos de civilidade da Casa-Grande. A vida madrasta não dera ao Marechal Guilherme Xavier e sua esposa, D. Clarinda, um filho natural. Sendo assim, coube ao moleque Cruz e Sousa tornar-se o filho postiço do casal desinteressado.

Com a morte dos ex-senhores, Cruz e Sousa volta ao convívio de seus pais. Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição lutam com dificuldade e se desdobram ao máximo para dar prosseguimento aos estudos nos quais o jovem Cruz e Sousa se iniciara no período em que se viu sob as graças dos antigos tutores. Em 1881, Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, insatisfeitos com a monotonia da sua “cidadezinha qualquer”, perturbam a mentalidade local fundando o jornal Colombo. Um ano depois, criam a Folha Popular. Naturalmente, a irreverência dos jovens não tarda a suscitar animosidades. Aproveitando o ambiente, por assim dizer, desfavorável, Cruz se integra a uma companhia de teatro que se apresentava na ilha àquela altura. Quando a caravana teatral deixa Desterro, no ano de 1883, o poeta a acompanha desempenhando a função de ponto. Cruz e Sousa percorre com ela boa parte do país.

Durante cerca de dois anos o poeta segue com a companhia teatral, experimentando, pode-se dizer, como que uma viagem de formação. O jovem inquieto mergulha no espetáculo do mundo. Faz um percurso que vai dos ares provincianos às ideias renovadoras do fin-de-siècle, cujo palco é a cidade e suas populações em conflito. Assim, esse andarilho, com os olhos marejados de névoa lisérgica, segue vivenciando o mambembe e o épico que de alguma maneira constituem a atmosfera da empresa “pé-na-estrada” de sua experiência como ponto. Vida, drama e poesia. Nesse momento, Cruz e Sousa engaja-se na luta abolicionista. Espalha sua poesia aos quatro ventos participando dos anseios de mudança. A agitação cosmopolita o seduz de uma vez por todas. O lado dandy do Dante negro. Com efeito, as luzes da cidade aparecem delicadamente recriadas em sua poesia; constitui-se numa referência intrínseca.

No entanto, em 1885 o poeta volta à terra-ilha natal. Colabora com O Moleque (étimo de origem africana, não custa lembrar), jornal combativo e iconoclasta que realiza praticamente sozinho, escrevendo artigos, crônicas, noticiário geral e inclusive assumindo a parte gráfico-visual (desenhos, ilustrações). Usa o próprio nome ou pseudônimos para assinar as peças dessa diatribe multifacetada.

1890 assinala o ano em que Cruz e Sousa se muda para o Rio de Janeiro. Começa a ler de maneira insaciável os escritores franceses, e, principalmente, Charles Baudelaire, que é, não por acaso, o autor da “epígrafe emblemática” (Salim Miguel dixit) do seu livro de estreia, Broquéis, publicado em 1893. No mesmo ano lança Missal, este de prosa poética. Segundo a historiografia literária, com esses dois volumes Cruz e Sousa inaugura o simbolismo brasileiro. Mas Cruz e Sousa, como Baudelaire, não é um simbolista em sentido estrito. Há uma revolta na dicção poética de Cruz que, em alguns momentos, contradiz aquela maciez roçagante, do tipo mallarmiano, por meio da qual tão bem se manifesta o ideal estético da sugestão simbolista. No soneto “Escravocratas”, percebe-se à maravilha este outro simbolismo do poeta negro:

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

Apesar disso, ainda é recorrente a disposição algo maledicente de apresentá-lo como o negro-branco, no sentido de traidor de sua “essência”, talvez negra. A sustentar esta ideia, estão as famosas formas alvas, vaporosas, etc., surgindo feito imensos icebergs no tecido poético engendrado por Cruz e Sousa, e que evidenciariam um complexo, um problema, um sintoma. Com efeito, a “brancura” com seus múltiplos e contraditórios sentidos – morte, vazio, esquecimento, pureza, luz – está presente na poesia de Cruz e Sousa, mas da mesma forma podemos percebê-la na de outros grandes autores do simbolismo, tal como em Rimbaud, Mallarmé e Verlaine. No entanto, como já nos referimos mais acima, um outro modo de síntese permeia o simbolismo do poeta negro. À diferença dos simbolistas branco-europeus, perplexos em face da folha de papel defendida por sua brancura mesma, atormentados na busca de um sentido mais puro para as palavras, Cruz e Sousa opta por não se dobrar ao tédio estéril do flâneur devotado à miragem da poesia pura. Enquanto, por exemplo, Mallarmé diz que fuma apenas para lançar um pouco de fumaça entre ele e o mundo, Cruz e Sousa esmurra uma parede tremenda de preconceitos erguida justamente para mantê-lo à margem deste mesmo mundo que o poeta francês sonha ver dissolvido em brumas; enquanto Rimbaud renuncia à poesia e parte para a África onde vai dedicar-se ao tráfico de escravos, Cruz e Sousa escreve em apoio ao abolicionismo, arremessa pedradas verbais contra os escravocratas e leva a cabo o longo poema em prosa “Emparedado”, que tematiza, entre outras coisas, por meio de um horror irônico, as cogitações nervosas e autocríticas de um criador de exceção olhando desafiadoramente na cara da estupidez humana. Enfim, Cruz e Sousa não incorpora à sua linguagem uma atitude inteiramente refratária à realidade que o cerca. Com ele, a poesia eventualmente branca – quer seja simbolista ou não – torna-se também negra. O simbolismo dos historiadores literários precisou adaptar-se a Cruz e Sousa, e não o contrário.


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com