Entrevista concedida a Soledad Platero
Há pouco mais de dois meses, o poeta Eduardo Milán (Rivera, 1952), que vive há anos no México, passou por Montevidéu. Ele não participou de nenhum desses grandes eventos em que os leitores regulares e compradores de livros usados se misturam, mas dedicou um tempo para dar uma palestra intitulada “A nova situação da poesia latino-americana”. E uma das primeiras coisas que disse naquela ocasião, depois de ter brevemente referido quem ele era, onde viveu e quando e onde nasceu, foi que esse artefato semântico sugerido pelo título da palestra não era, estritamente falando, outra coisa que não uma questão especulativa.
“Hoje eu fui a uma rádio e me perguntaram, como se intrigados, o que era essa ‘nova situação de poesia latino-americana’, como se eu tivesse alguma coisa escondida, algo que ainda não havia chegado como uma novidade ao Uruguai. Eu disse a eles que o discurso ou reflexão sobre a poesia latino-americana não se constitui em um saber, e isso foi pior, pois pareceu que eu estava ocultando algo essencial, uma espécie de formalização ausente, e afinal acabamos falando sobre música, que é onde todos são felizes”. Assim, com essa mistura de humor e desencanto, Milán foi entrando no tema sobre o qual tinha vindo falar: o paradoxo de um cenário em que cada vez mais se produz mais poesia (se escreve mais, mas também se publica mais) e, ao mesmo tempo, cada vez se pensa menos. A hiperprodução, como ele a chama, chegou junto com uma ausência radical de pensamento e reflexão sobre a poesia. Ou melhor: de uma reflexão coletiva sobre poesia. Pois é claro que há poetas que pensam no que fazem. E há também acadêmicos que dedicam suas vidas à análise e à teorização sobre este ou aquele poeta, este ou aquele período, esta ou aquela obra. Mas o que não existe, o que não existe mais, diz Milán, é um ambiente de reflexão, um âmbito de interesse comum pela coisa poética, pela própria poesia, pela questão essencial do que a poesia pode ou não pode dizer. Porque a poesia não é o que é dito, necessariamente. A poesia pode estar (e está) onde o significado se mantém oculto. Isso acontece em Trilce, por exemplo, do peruano César Vallejo (1922). Acontece na tensão que Nicanor Parra instalou entre dois polos quando publicou Poemas y antipoemas (1954). E aconteceu, claro, em 1897, quando Stéphane Mallarmé lançou os dados que jamais aboliriam o acaso.
“A escrita não é apenas um problema de formalização; é também um problema de ausência. Na escrita há partes que não existem, e isso é difícil de lidar e mais difícil de aceitar”, explicou Milán na conferência, e acrescentou que o pragmatismo atual não suporta essa indefinição, essa margem, essa falta de propósito e de significado.
A ‘recoverização’ do mundo
Já no México, Eduardo Milán conversou sobre esse assunto. “Para minha geração, escrever poesia tinha uma conexão com o pensamento. A poesia estava ligada ao pensamento, produto de uma longa luta que vem do século XIX e encontra um dos seus grandes defensores em Paul Valéry, que era muito próximo de Mallarmé e de Fernando Pessoa (‘o que em mim sente está pensando’), porque se tratava de realizar uma operação integral, orgânica. Era uma maneira de dignificar a poesia, de tirá-la da zona puramente subjetiva, do ‘eu profundo’, isto é, da lírica”. Isso coincide, aliás, com o que ele descreveu como “queda lírica do projeto moderno: as ‘grandes’ ocorrências, o mínimo dado pessoal elevado à categoria do espírito”. Num mundo em que qualquer coisa pode ser poesia, em que a mera expressão atinge um valor de espiritualidade e honestidade que legitima sua existência como objeto de arte, como se pode exercer a crítica? Como manter o rigor crítico, como pensar o fenômeno estético, o fato artístico? “A isso se deve somar a cumplicidade do produtor com o leitor que quer algo como a poesia”, algo “que lhe soe como poesia”, um simulacro de poesia, “o relato do que foi uma ‘experiência poética’”, mas “não a poesia-como-ato-de-escritura que acontece na página”.
Além disso, a essa transformação da poesia em pura expressão desenfreada do eu se agrega o fenômeno do registro do processo (“uma espécie de culto procesual”, diz Milán): o diário de feitura da obra (sua atualização minuto a minuto nas resdes sociais, poderíamos acrescentar) ocupa um lugar de importância semelhante ao da obra. Esse narcisismo exacerbado tem um preço: o pensamento; a ausência do passado e do futuro, uma instauração perpétua no presente, no instante prolongado da experiência, imortalizada em tantos registros quanto a capacidade técnica permitir.
“Há um movimento na cultura atual – com o risco de chamá-la assim e de generalizar – de ‘recoverização’ do mundo. Cover é versão, como se sabe, e uma versão atualizada. Mas cover também é encobrimento. Quer dizer: o que chamo de ‘recoverização’ é uma saída para o problema do passado, é lhe dar uma versão”. Isso, que pode ser bom em arte, em termos sociais tem consequências bem diferentes, pois ajusta o passado e o futuro ao conceito do possível”. É o “ajuste à realidade do projeto capitalista atual, que encontrou seu oxímoro perfeito: nacionalismo global, que passa pela questão do manejo do passado possível e do possível futuro”.
Finalmente, face à pergunta sobre se se mantém algum dos âmbitos de pensamento coletivo que Milán conheceu durante seus anos de formação, ele explica que em 1986 participou da “fundação de neobarroco poético rioplatense (uma variante de Néstor Perlongher do neobarroco cubano, aplicada à nossa realidade do substrato enlamedado do rio)”.
“Tínhamos em mente o concretismo brasileiro, cuja ressonância no Uruguai demorou, mas chegou. Éramos Roberto Echavarren, Néstor e eu. Nenhum quis assimilar-se ao neobarroso em demasia, mas todos escrevemos sobre isso. Quer dizer: todos nós tínhamos em mente a relação entre pensamento e poesia que era um legado dos poetas concretos brasileiros. E acho que tínhamos clara uma grande dispersão que havia na poesia latino-americana e uma grande falta de comunicação. E nós não tínhamos muito a ver individualmente. Mas era um legado o pensar, algo para se assumir. Essa emergência neobarroca foi um ‘sentimento do tempo’ mais do que uma proposta orgânica. Foi um testemunho de algo que não estava lá, uma coisa meio espectral. Mas o espectro existe, é claro”.