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MORRE JOVEM O QUE OS DEUSES AMAM

Fernando Pessoa escreve sobre Mário de Sá-Carneiro (1890-1916),
seu amigo e um dos grandes poetas de língua portuguesa, que se matou aos 25 anos
 
 
            Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga.* E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino.
            Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só o igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino; estagna só deus fingido, doente da sua ficção.
            Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la. Uns morrem; aos outros, tirado o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem a morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida.
            No heroi, no santo e no gênio os Deuses se lembram dos homens. O heroi é um homem como todos, a quem coube por sorte o auxílio divino; não está nele a luz que lhe estreia a fronte, sol da glória ou luar da morte, e lhe separa o rosto dos de seus pares. O santo é um homem bom a que os Deuses, por misericórdia, cegaram, para que não sofresse; cego, pode crer no bem, em si, e em deuses melhores, pois não vê, na alma que cuida própria e nas coisas incertas que o cercam, a operação irremediável do capricho dos Deuses, o jugo superior do Destino. Os Deuses são amigos do heroi, compadecem-se do santo; só ao gênio, porém, é que verdadeiramente amam. Mas o amor dos Deuses, como por destino não é humano, revela-se naquilo em que humanamente se não revelara amor. Se só ao gênio, amando-o, tornam seu igual, só ao gênio dão, sem que queiram, a maldição fatal do abraço de fogo com que tal o afagam. Se a quem deram a beleza, só seu atributo, castigam com a consciência da mortalidade dela; se a quem deram a ciência, seu atributo também, punem com o conhecimento do que nela há de eterna limitação; que angústias não farão pesar sobre aqueles, gênios do pensamento ou da arte, a quem, tornando-os criadores, deram a sua mesma essência? Assim ao gênio caberá, além da dor da morte da beleza alheia, e da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, êxul ao mesmo tempo em duas terras.
            Gênio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.
Mas para Sá-Carneiro, gênio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os gênios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. In qua scribebat, barbara terrafuit [Ovídio: “A terra onde escreveu era uma uma terra bárbara”]. Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.
 
Atque in perpetuum, frater, ave atque vale!
 
* Nota de Sibila: o dito latino que encerra o texto é, na verdade, o verso final de um poema de Catulo, escrito em homenagem ao seu irmão morto, que reproduzimos a seguir.
 
 
Carmen CI
 
Multas per gentes et multa per aequora uectus
Aduenio has miseras frater ad inferias
Ut te postremo donarem munere mortis
Et mutam nequiquam alloquerer cinerem
Quandoquidem fortuna mihi tete abstulit ipsum
Heu miser indigne frater adempte mihi
Nunc tamen interea haec prisco quae more parentum
Tradita sunt tristi munere ad inferias
Accipe fraterno multum manantia fletu
Atque in perpetuum frater aue atque uale!
 
       
 
Poema 101
 
Por muitos povos e muitos mares eu vim,
Irmão, para por fim honrar teu rito triste
E a derradeira dívida, devida à morte;
Para falar, em vão, às tuas cinzas mudas,
Porque o destino assim te separou de mim,
Triste irmão indignamente a mim arrancado.
Agora no entanto aceita, pelos costumes
Dos nossos ancestrais, as tuas honras tristes,
Trazidas assim molhadas por minhas lágrimas,
E para sempre, irmão, salve, salve e adeus.
 
                               (tradução Luis Dolhnikoff)
 

 
Placa que assinala o edifício onde Mário de Sá-Carneiro se suicidou, em 26 de abril de 1916
(Rua Victor-Massé 29, Paris).