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Bandeira e Quintana: por uma crítica objetiva

O título acima deveria ser, com mais precisão, “Por uma crítica minimamente objetiva de poesia”, porém a precisão se daria à custa da dimensão. Além disso, o minimamente enfraqueceria o elemento surpresa. Pois uma crítica minimamente objetiva não causaria espanto, ao contrário, talvez, da idéia de uma crítica objetiva.

A idéia de uma crítica objetiva de poesia surpreende porque a objetividade se concentra, por definição, no objeto (como na deposição de algo em uma balança, que então comunica seu peso), enquanto a crítica é um comércio descentrado entre o objeto, o texto, e o sujeito, o crítico. Justamente por isso é necessário que a crítica seja minimamente objetiva. Pois não se trata, no outro extremo da objetividade, de um puro solilóquio solipsista.

Se tudo isso é ou deveria ser óbvio, sua obviedade está longe de garantir um verdadeiro reconhecimento. Pois, na prática, o que tem predominado é o seu reconhecimento aparente. Daí o fenômeno hoje dominante na crítica brasileira de poesia (incluindo mídia e academia), a paráfrase do verso anteposta ao próprio verso parafraseado.

A paráfrase, porque centrada no verso, parece garantir um mínimo de objetividade à crítica. Porém a paráfrase, que desfaz a forma do verso e a substitui por uma frase com seu significado aproximado, não apenas elimina qualquer possibilidade de análise do verso em si, inseparável de sua forma, como na verdade está ali para iludir que se analisa o verso ao mesmo tempo em que se elimina assim a possibilidade (logo, a necessidade) de fazê-lo.

A paráfrase do verso apoiada à anteposição do próprio verso parafraseado pode, então, ser entendida como a forma fraca da objetividade crítica em poesia (espécie de objetivismo tautológico em que o objeto analisado é descrito pela apresentação de um clone anêmico, a paráfrase). A forma forte, em comparação, é aquela que utiliza todos os recursos de análise, à exceção, talvez, da paráfrase.

Uma verdadeira crítica minimamente objetiva de poesia é, portanto, uma crítica fortemente objetiva.

A possível importância disso, ou seja, dessa análise da crítica, dessa metacrítica, é apontar um dos prováveis mecanismos pelos quais a crítica de poesia tem se tornado cada vez menos relevante. A medida dessa relativa perda de relevância é dada pela relação inversa entre a quantidade de crítica hoje publicada e suas consequências. Somando-se os textos de orelhas de livros, de prefácios e posfácios, de resenhas jornalísticas, de sites literários, de artigos em revistas literárias e acadêmicas e de livros de críticos de jornal e da academia, a quantidade é vasta e crescente, enquanto o resultado prático é escasso e quiçá decrescente. Pode-se afirmá-lo pelo fato de a paráfrase do verso corroborada pelo próprio verso ser largamente dominante, e por tal recurso ser, como descrito acima, a forma fraca de objetividade crítica em poesia. Se a forma fraca de uma atividade é fortemente dominante, além de crescente, pode-se inferir com segurança que seus resultados, quaisquer que eles sejam, não são os melhores possíveis.

Quais seriam, então, possíveis resultados melhores? Por exemplo, a possibilidade de estabelecer com um mínimo de objetividade analítica os méritos relativos de dois poemas. Primeiro, pelo próprio estabelecimento de tal relação, que indica a viabilidade de um mapeamento não-arbitrário da criação poética, segundo, pelo tipo de ferramenta analítica que esse processo poria em operação.

 

Poetas da “periferia”

Escolhi para exemplificar tal procedimento dois poetas igualmente mortos, que além da circunstância fortuita de não estarem mais vivos têm outras coisas mais relevantes em comum. Porém o mais importante: suas muitas proximidades não resultam numa avaliação aproximada. Falo de Manuel Bandeira e de Mário Quintana. Além da proximidade geracional, e do fato biográfico de ambos serem nativos de regiões equidistantes dos grandes centros, mas ainda assim igualmente urbanizadas (Pernambuco-Recife / Rio Grande do Sul-Porto Alegre), ambos possuem semelhanças marcantes em suas poéticas. Em termos de tema e tom, predominam recortes de cenas urbanas em registro irônico, enquanto em termos formais domina o prosaísmo coloquial de extração modernista. Leituras regionalistas à parte, tais proximidades não garantem, como referido, uma avaliação próxima dos respectivos méritos poéticos. Não que faltem méritos a Quintana, mas sim que sobejam méritos em Bandeira. Embora contraposições diretas como esta sejam normalmente evitadas, até pela própria consciência de sua evidência, o que a tornaria ociosa, deixa porém de ser ociosa quando a evidência deixa de ser evidência para se tornar um hábito.

De Bandeira, escolhi um poema recém-analisado por Ronald Augusto,[1] em função tanto do poema quanto da possibilidade de aproveitar sua análise – principalmente porque a utilizo em um contexto textual radicalmente distinto. De Quintana, um poema cuja recente leitura desavisada me lembrou, justamente, desse poema de Bandeira – ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, evidenciava-se sua dessemelhança.

 

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

 

O ESPECTADOR

Olhar a televisão

Sem prestar atenção,

Ver apenas figuras a moverem-se na tela

E só assim talvez terei alguma compreensão

Da nossa vida e do sentido dela…[2]

 

Embora o poema de Bandeira tenha uma modernidade mais evidente na ausência do eu lírico e em sua substituição pela terceira pessoa envolta em prosa jornalística, baseada na listagem de fatos, o poema de Quintana compensa a presença do eu lírico e de sua temática existencialista pela presença concomitante de um artefato tão moderno quanto banal, o aparelho de televisão, no qual então projeta e introjeta tanto o eu lírico quanto a temática existencialista. Além disso, se num poema há um implícito leitor de jornal, no outro há, explicitado no título, um espectador.

Da análise de Ronald Augusto do poema de Bandeira destaco a descrição de um primeiro verso “cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: ‘…eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo’, [em que] de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva sequência paronomástica: ‘MoRava/ MoRRo/ núMeRo’”, e “a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, ‘Bebeu/ Cantou/ Dançou’”. Ao que acrescentei um comentário: a sequência de versos de um só verbo cria uma coluna verbal que aponta para e prepara o último verso. Este, ao contrário, é uma longa linha horizontal. E isto forma, em conjunção com a semântica da cena, um perfeito micrográfico da ação, ou seja, a queda vertical direto para a superfície do lago. Demonstra-se assim o quanto Bandeira era enganador. Pois juntava ao talento poético a vontade programática de não ser poético, para ser moderno, e um dos caminhos mais eficientes para acabar com o poético era ser prosaico. Mas Bandeira não era um prosador, era um poeta, e não estava se pondo ou se propondo a fazer prosa moderna, apesar de tudo, e sim poesia moderna. A tessitura sonora que Ronald Augusto demonstra desmonta, neste caso, de um prosaísmo pretensamente extremo, que Bandeira resolveu a contradição contrabandeando para um ritmo eventualmente prosaico (pois isto não é verdade para os versos curtos de um só verbo), ou seja, não feito das unidades discretas definidores da linguagem e do ritmo poéticos, uma grande densidade de recorrências sonoras, a outra característica definidora da linguagem poética.

Não surpreendentemente, não há nada de ocioso no poema de Bandeira. Nem um só caractere pode ser retirado desta frase sem truncar a frase e seu sentido: “João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número”. Tampouco desta: “Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro”. Idem em “Bebeu”, em “Cantou”, em “Dançou” e em “Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado”. Em suma, a este poema se aplica à perfeição a síntese de César Vallejo:

Un poema es una entidad vital mucho más orgánica que un ser orgánico en la naturaleza. A un animal se le amputa un miembro y sigue viviendo; a un vegetal se le corta una rama o una sección del tallo y sigue viviendo. Si a un poema se le amputa un verso, una palavra, una letra, un signo ortográfico, MUERE.[3]

Mais uma vez, demonstra-se a falsidade, ou melhor, o ilusório do prosaísmo de Bandeira. Pois é característico do prosaico, na contramão do que afirma Vallejo, poder ser amputado e seguir vivendo.

No poema de Quintana, ao contrário, há uma enormidade de informação ociosa. Já no segundo verso, a presença do verbo prestar apenas se presta a ecoar fracamente o apenas do terceiro verso, porém enfraquece a informação contida na própria palavra atenção: a expressão sem atenção é mais forte, porque mais concentrada, do que “sem prestar atenção”. A presença do verbo se justifica, afinal, somente pelo ritmo: “Olhar a televisão / Sem prestar atenção”. Ocorre que no primeiro verso o ritmo, em heptassílabo, é obtido à custa do inchaço. O artigo a é aqui ocioso, e ainda mais ociosa é a opção por olhar em vez de ver. Tanto mais que VEr ecoa em telEVisão. Portanto, se o primeiro verso fosse simplesmente ver televisão, em vez de “olhar a televisão”, seu ritmo permitiria ou induziria que o segundo fosse somente sem atenção, em vez de “sem prestar atenção”. A ociosidade morfossemântica está perfeitamente evidenciada, e mais, destacada, no final do poema, com a presença do pronome dela ali posto e disposto para poder oferecer uma rima-apoio a tela. O procedimento de eliminação da informação ociosa aplicado ao resto do poema resultaria, enfim, em sua radical condensação:

Olhar a televisão
Sem prestar atenção,
Ver apenas figuras a moverem-se na tela
E só assim talvez terei alguma compreensão
Da nossa vida e do sentido dela…

ver televisão
sem atenção:
figuras fugazes numa tela
e haver compreendido
a vida e seu sentido

Não é Quintana, naturalmente. Mas não pela mera mudança de seu estilo, ou seja, de uma irredutível pessoalidade idiossincrática na escolha e no arranjo dos elementos do poema. E sim porque a pessoalidade idiossincrática não é tudo. Sequer é o fundamental. Pois há determinantes da própria linguagem. Prova disso é seu texto não se amoldar bem a uma disposição linear prosaica:

Olhar a televisão sem prestar atenção. Ver apenas figuras a moverem-se na tela. E só assim talvez terei alguma compreensão da nossa vida e do sentido dela…

Não se amolda bem porque seu ritmo e suas rimas individualizam partes do texto. E a prosa é feita de fluidez sintática, que a linearidade gráfica traduz. O resultado, aqui, é uma prosa em que os elementos poéticos se destacam, interrompendo o fluxo e funcionando como ruídos. Mas se a linguagem de Quintana é, portanto, de fato poética, estamos falando de estrutura, de sintaxe, não de estilo. Quanto a este, realiza-se afinal por uma paradoxal prosaízação de um texto propriamente poético (na exata contramão do procedimento de Bandeira, que poetiza profundamente o prosaísmo jornalístico). O que gera e explica, ainda que não necessariamente justifique, a característica flacidez sintática do estilo poético de Quintana.

 

Mattoso superior a Piva

Pode-se argumentar que se conseguiu demonstrar de modo convincente o já sobejamente sabido, ou seja, a superioridade da poesia de Bandeira em relação a Quintana. Mas é exatamente disso que se trata. Em linguagem laboratorial, isso se chama calibragem. Quando se tem de testar um novo aparelho, primeiro ali se testa algo já testado. Se o resultado se mantém, o aparelho funciona, e pode então ser usado para novas medições. Por exemplo, a comparação entre Roberto Piva e Glauco Mattoso (que, acredito, indicaria a superioridade do segundo), ou entre Arnaldo Antunes e Nelson Ascher (idem), ou entre o novo poetinha X e o novo poetinha Y (empate).

Dir-se-ia, desta vez, que assim se transforma a crítica em uma espécie de reiterado “Fla-Flu”. Mas há atividade humana cujo mérito não seja relativo? No entanto, como a arte não tem, à diferença de outras atividades, um desenvolvimento linear ou ascendente, que fique entregue ao arbítrio do crítico (trata-se da postura ideológica da qual a crítica via paráfrase é o método). Há critérios objetivos para demonstrar a superioridade de um 747 sobre um DC3, mas de um soneto de Vinicius versus um de Camões?

O sofisma está na troca da sincronia pela diacronia. Em termos diacrônicos, nada há de fato a comparar, pois a arte não tem um desenvolvimento linear. Daí só se poder compará-la sincronicamente. Daí, portanto, dever-se compará-la sincronicamente. Haverá então critérios minimamente objetivos para demonstrar que os melhores sonetos de Vinicius, ao contrário, apesar de posteriores, não ficam a dever aos de Camões.

Hoje, na crítica de poesia, como regra se compara nada a coisa nenhuma. Ao mesmo tempo, antepondo-se seus versos às suas paráfrases, não há poeta a quem falte o aplauso de algum par, enquanto raríssimos são alvo de quaisquer ressalvas. Mas se há muito mais salvas que ressalvas, deve-se por força concluir que as coisas vão de bem a melhor. Se acaso não vão, e se a quantidade de poetas é radicalmente desproporcional à presença de poetas fortes, e se isto indica certa fraqueza fortemente disseminada, algo está errado nos muitos aplausos e nas poucas ressalvas. Como ambos vicejam em meio à escassez de comparações analíticas diretas entre os méritos relativos dos poetas, talvez fazê-lo não seja, afinal, nem um despropósito nem um erro.

 


 

[1] “Sobre Meu Amor de Beatriz Bracher”, in sibila.com.br/index.php/critica/532-sobre-meu-amor-de-beatriz-bracher.
[2] In Velório sem defunto, SP, Globo, 2009, p. 43.
[3] “Se prohibe hablar al piloto”, in Literatura y arte (textos escogidos), Buenos Aires, Mediodia, 1966, p. 21.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).