Por Bruno Molinero
U portunhol salbaje es la língua falada en la frontera du Brasil com u Paraguai por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa, amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca. Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos na linha da fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es una lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente, que impacta. Es la lengua de mia mãe y de la mãe de mis amigos de infância. Es la lengua de mis abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje comigo. Us poetas de vanguarda primitibos, ancestrales de los poetas contemporâneos de vanguarda primitiba, non conociam u lenguage poético, justamente porque ellos solo conocian un lenguaje, u lenguaje poético. Con los habitantes de las fronteras du Brasil com u Paraguay acontece mais ou menos la misma coisa. Ellos solo conocen u lenguaje poético, porque ellos no conocen, non conhecem otro lenguaje. O portunhol salbaje es una musica diferente, feita de ruídos, rimas inesperadas, amor, água, sangre, árboles, piedras, pássaros, ventos, fuego, esperma.
Essa é uma das suas definições mais conhecidas do portunhol selvagem. Faz parte de um livro seu de 2005. O que mudou nesses quase 20 anos?
Douglas Diegues – El portunhol selvagem sigue una lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente e tem algo que impacta en las profundezas del lector. Es uma nova linguagem que permanece nuebo lenguaje. Y lo nuebo sempre amedronta.
Mas é preciso dar um passo atrás, antes de colocar mais cerveja nos copos, preparar a erva-mate, limpar o suor e seguir a conversa com o poeta brasileiro Douglas Diegues. Afinal, todos os poetas de vanguarda descendem de poetas de vanguarda ancestrais, que seguiram o caminho de outros poetas ainda mais antigos. A flor que brota da bosta da vaca já flutuou na forma de pólen. E a própria bosta da vaca já fez parte da carne um dia.
Estamos em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, mais perto de Assunção do que de São Paulo. Ponta Porã, 92 mil habitantes abraçados a Pedro Juan Caballero, município paraguaio logo ali, do outro lado da rua. Região perdida na geografia, mas habitué de manchetes de jornal. Chacina deixa quatro pessoas mortas em Ponta Porã. Traficante que enviava drogas do Paraguai para a Europa em contêineres de frutas é preso em Ponta Porã. Mais um plano de fuga em massa é descoberto na penitenciária de Pedro Juan Caballero, onde 75 presos escaparam por um túnel. Ponta Porã, terra dos guarani-kaiowá, dos bois para exportação, das araras que desviam de linhas bêbadas de cerol e dos tamanduás-bandeira perdidos em plantações de soja. Ponta Porã, 33 ºC no momento em que escrevo esta frase. O reggaeton e o sertanejo no último volume do rádio.
Ponta Porã, onde vive Douglas Diegues quando não está em Campo Grande. Berço do portunhol selvagem, essa língua inventada, híbrida, mestiça, rejeitada oficialmente, mas desejada às escuras. Concebida entre os lençóis da fronteira, no beijo entre o português, o espanhol e o guarani, mas aberta a qualquer idioma que deseje borrar o batom e misturar a saliva numa orgia que despe ortografias, sintaxes, semânticas e fonéticas de suas vergonhas.
Mas é preciso voltar. Toda história tem um antes, e o portunhol já apareceu aqui e ali na linha do tempo da literatura brasileira. Oswald de Andrade, por exemplo, jogou essa fala latino-americana no liquidificador antropofágico. Foi em “Serafim Ponte Grande”, de 1933.
— Uma vez puso dôs inglêses nocaute en la calhe! Passavam e mi dabam encontrones todavia! Yo me fué arrabiando e exclame: — animales! Hijos de puêta! Se volvieram luego diez ou dôce! […]
Mas o caso mais emblemático é o de “Mar Paraguayo”. A novela de Wilson Bueno, publicada em 1992, deu corpo e fôlego a esse idioma bastardo, ao código fluido que sempre esteve vivo nos becos labirínticos da América Latina, fazendo graça das amarras gramaticais. “Mar Paraguayo” desaguou não uma mistura engraçadinha de português, espanhol e guarani, mas a revelação da face mestiça, morena, indígena e latina da linguagem. Um idioma propositivo. Um falar impuro e criativo. Uma linguagem diferente, com sabor e erotismo que pingam justamente da forma e da ruptura estética.
Bueno morreu assassinado em 2010. Desde então, o bastão do portunhol é carregado por Diegues, poeta nascido no Rio de Janeiro em 1965. Filho de um carioca e uma paraguaia, ele viu seus pais se separarem aos dois anos de idade, quando se mudou com a mãe para Ponta Porã, onde vivia o avô materno, um espanhol que havia fugido da Guerra Civil.
“Moscas phodem volando”. Escrito com a linguagem pulsante das ruas da fronteira, esse verso deu à luz o portunhol de Diegues e ao idioma que ele passou a adjetificar de selvagem. Uma língua apátrida, fruto do idioma falado pelos brasiguaios que circulam pelas margens, sempre vistos como primitivos e bárbaros pelo auto-intitulado primeiro mundo civilizado, pela Europa, pelos States, mas também pelos próprios brasileiros das grandes capitais.
Em livros como “Dá Gusto Andar Desnudo por estas Selvas: Sonetos Salvajes” (2002), “Uma Flor na Solapa da Miseria” (2005), “Triple Frontera Dreams” (2012) e o infantil “Era Uma Vez en la Fronteira Selvagem” (2019), Diegues constrói uma literatura que desconstrói. Implode a lógica hegemônica, ao mesmo tempo em que usa os destroços para erguer um espaço onde diferentes poéticas se fundem. Nela, a cosmogonia guarani frequenta os inferninhos paraguaios e os botecos brasileiros, sempre a partir de uma linguagem resistente, que germina do lixo. Literatura escorregadia. Ambígua. Transfronteiriça.
E, por isso mesmo, renegada. Porque inventa palavras, significados, sons, sentidos. Porque é um revide contra o racionalismo e o colonialismo exercidos pelo português e pelo espanhol numa América Latina que ainda sangra. Porque é a fala dos marginalizados, oprimidos, invisíveis e daqueles cujas vozes são sempre silenciadas.
Porque, em portunhol, o subalterno grita.
San Pablo, San Pavlov, San Paulandia
O que seria de ti, San Pablo, San Pavlov ou San Paulandia, sem nosotros, los nordestinos, para vos servir manhanas y noches, tardes y nuebas manhanas?
O que seria de ti, San Pablo, San Pavlov, sem nosotros, los nordestinos, los mais paraguaios, los kabroboles, los kabras de la peste?
O que seria de vostras noches salbajes sem nosotros, los nordestinos, los dandys kangaceiros, o que seria de tuos bares y restorans?
O que seria de ti, San Pablo ou San Paulandia city, sem nostra feiura, sem nostra gracia, sem nostro savoir-faire, sem nostras yergas, sem nostro humor negro azul, sem nossa capacidade de limpar latrinas & servirles a full?
Que seria de tuas ruas mais prostis, de tuos arrogantes edifícios, de tuo poder, de teu lixo, de tua fama?
Quem limparia vostras latrinas?
Quem lavaria vostras casas y apês?
Quem prepararia tuo plato preferido?
Quem prepararia los drinks mais hots del asfalto y de los litorales, xixi de virgen, licor de yégua, mel de viúva?
O que seria de tuos bairros, de tus supers, de tuas villas, de tus fabelas, de tuos jardins, de tuos trianons, de tuos museos, sem la ayuda de los otarios?
O que seria de ti, San Pablo, San Pavlov ou San Paulandia, como kieran, sem la mano de obra barata, original, paraguaia, boliviana, nordestina?
Non sei lo que seria de ti, San Pablo ou San Paulandia, pero como el velhaco Marcial, el poeta que mais kurto de la Roma que non existe mais, yo saco kual es la tua…
Qual é o papel do portunhol selvagem no campo de batalha da linguagem?
Douglas Diegues – El futuro del portunhol selvagem es como regressar a los orígenes, a la lengua de los anjos, de las estrellas, de los jaguaretês. Mesmo que tentem punhaladas, el portunhol selvagem es como um kometa ensaboado, dificilmente van a conseguir acertá-lo.
Kometa ensaboado. Nome de lutador de luta livre, que usa máscara colorida, veste macacão colado e sobe ao ringue diante de fortões como Falcón, Lexor, Psycho Cesar, El Injusto e outros astros paraguaios. Ao ringue da linguagem, porque ela é sempre uma batalha. Disputa de poder, em que um grupo sempre impõe ao outro um jeito certo de falar. Uma norma culta empurrada goela abaixo num processo violento, como afirma o professor francês Jean-Jacques Lecercle, autor de “The Violence of Language”.
O portunhol selvagem é o contrário. É o escape. A contraviolência. Essa língua híbrida não evita o embate, porque isso é impossível. Mas cria um terreno mais franco, sem vantagens nem cartas marcadas. Transforma-se em ringue de luta livre, costurado com uma lona desfiada e puída que se abre para uma nova poética. Em vez da velha pancadaria, aqui a plateia paga ingresso para assistir à loucura, à fala das crianças, ao delírio dos desajustados, à poesia, à profecia e ao prazer, sempre o prazer.
Prazer segundo Roland Barthes, que costumava dizer que o escritor sempre brinca com o corpo da mãe —ou com as volúpias de sua língua materna. Diegues mostra isso em “La Xe Sy”, que significa “minha mãe” em guarani.
Los abogados, los médicos, los músicos, todos quierem fornicar com mia mãe.
Nadie tiene las tetas mais bellas que las de la xe sy.
Los gerentes de banco non resistem.
Los músicos, los guarda-noturnos, los karniceros, todos querem fornicar com ella.
Nadie tiene los ojos mais bellos que los de mia mãe.
Tengo três años.
[…]
Quem fala no portunhol selvagem?
Douglas Diegues – Um espírito. Um espírito produtor de portunhol selvagem. Em alguns terreiros de umbanda, fiquei sabendo, los ciganos hablan en portunhol selvagem. Sou apenas uma espécie de cavalo. Por meio do cavalo, el Universo se expressa em portunhol selvagem.
O leitor branco, de classe média, os universitários, os europeus, os clubs de Nova York, os críticos, a turma dos saraus de São Paulo, os jurados dos prêmios literários, os donos das grandes editoras, esse pessoal todo consegue entender essa linguagem?
Douglas Diegues – El portuñol selvagem demanda bons leitores. Além disso, demanda ser leído con el korazón y los ojos bem abiertos al mismo tempo. Também faz bem lembrarmos que —como lo ensinou Manoel de Barros— entender é parede. Non importa el color del lector. Nem seu nível de instrução. Mais importante es leer con los ojos y el korazón abertos.
Se, no portunhol selvagem, o subalterno sobe ao ringue de luta livre da linguagem e desafia os donos do poder, ele não faz isso com mata-leões nem mergulhos suicidas. Suas artimanhas são as mesmas de um fungo antropófago. Ele invade interiores. Apropria-se dos corpos dos senhores. Usa a carne para formar algo novo, fresco, mestiço. Vivo. Purificado na poluição.
Não à toa, o guarani é tão protagonista dessa linguagem quanto o português e o espanhol. É sempre um tripé, cuja uma das pernas é um cordão umbilical conectado à poética indígena da América Latina. Sendo assim, o portunhol selvagem jamais vai ser entendido pelas escalas ocidentais, eurocêntricas e de mercado. É preciso retirar outras réguas dos estojos. Estamos diante da poética dos sem Estado, incompreensível para a lógica racionalista e industrial e fruto da osmose que ocorre todos os dias na membrana permeável da fronteira.
O portunhol selvagem é uma espécie de gagueira?
Douglas Diegues – Es una linguagem que existe como habla y escritura, pero non existe como idioma oficial. Gramaticarlo sería matarlo. Com essa linguagem inventada, puedo dizer coisas antigas de maneira nova ou por lo menos diferente. Mio mejor portunhol selvagem es el que supera el ying-yang: um pedazo de bosta de vaca, mas que ainda dá flor.
O kometa ensaboado é gago. Essa é uma de suas armas na luta livre da linguagem. Gagueira como a descrita pelos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, ou seja, como ruptura, interrupção, descontinuidade da fluidez e ponto de partida para algo novo. Uma flor que brota do modo supostamente incorreto de falar e escrever e da forma anômala e exótica, mas cujos tropeços são inseparáveis da poética. Gagueira não como falha, mas como estratégia para desestabilizar as normas. Como desobediência. E nocaute.
Sendo assim, será que podemos considerar a literatura escrita em portunhol selvagem como uma literatura menor? Ainda de acordo com as ideias de Deleuze e Guattari, a literatura menor é aquela produzida por uma minoria em uma língua maior, mas modificada por uma forte desterritorialização. O exemplo clássico é o de Franz Kafka —um judeu tcheco que escrevia em alemão, levando para esse idioma toda uma perspectiva judaica e tcheca.
A rigor, não seria o caso do portunhol selvagem. Só que não estamos diante de uma linguagem castiça. Não é o português, muito menos o espanhol. É uma língua híbrida, que paquera ambas, num flerte tão íntimo que torna-se bem compreendida por lusófonos e hispanohablantes. Isso cria um caso curioso. O que é repetição para o português torna-se variação para o espanhol e vice-versa, numa operação cujo resultado é variação para ambos.
Por caminhos impuros e contaminados, o portunhol selvagem pode, sim, ser analisado como um modelo de literatura menor, já que é entendido por falantes das duas línguas maiores —o português e o espanhol— e cria uma coleção de desvios em relação aos cânones dos dois lados da fronteira. Mas, como já foi dito aqui, ele vai além. E joga luz sobre um terceiro lado, a terceira margem do rio: o guarani paraguaio, de raíz indígena latino-americana.
Incorporei apenas el hermoso guaraní paraguayensis, pitadas de inglês, franxute, italiano. Pero puesso incorporar las lenguas que quiser, el tomáraho, el ashlushlay, el ebytozo, el toba qöm, el sanápaná, el maká, el ache-guayaki, el ayoreo y otras hermosas lenguas que seguem sendo habladas aún diariamente por las selvas paraguayensis de la Triple frontera.
Por isso, também é possível pensar no portunhol selvagem como a invenção de uma língua menor. Uma linguagem tempestuosa, com padrões fluidos, imprevisível. Um tropeçar bêbado, a criação contínua, o nunca sentir as coisas da mesma maneira. Porque o portunhol selvagem vive na fronteira. Ultrapassa a fronteira. Dança na fronteira. É a fronteira.
non adianta ter segundo grau completo
graduacion pós-graduación doctorado en la gaveta
um bom curriculum que garanta um buen emprego
quem nasceu pra ser una bestia sempre será una besta
non adianta dominio de la lengua sem la gosma de la experiência
almoçar jantar cagar vomitar grandes assinaturas
que se estendem como grifes de la más alta cultura
quem naceu pra ser una besta siempre será una bestia
non adianda saber ler y escrever correta
mente, colecionar diplomas que os otários veneram
conhecimento nunca foi sabiduria nem aqui na china nem lá nu Iran
quem nasceu pra ser una bestia sempre será una besta
muchos posam de sábio en la mais badalada de las fiestas
mas como diria titia Gertrude: una bestia es una bestia es una bestia
Por que criar suas próprias editoras, a Editora de los Bugres e a Yiyi Jambo?
Douglas Diegues – El portuñol selvagem para mim és algo sagrado. Non está a venda. Es el lenguaje que los dioses usan quando jogam golfe en los buracos negros del korazón humano. Nim los dioses nem los humanos conseguem jogar golfe com pelotas quadradas.
Nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Milán, a poesia é —ou deveria ser— uma forma de dissenso da linguagem a partir do próprio uso da linguagem. É desacordo. Fuga da estabilidade, do cansaço, das mesmas fórmulas. Defesa do imprevisível, do erro, do abismo, da desobediência. É trânsito, busca, investigação. Desejo de criar espaços que não existem.
Mas como fazer isso dentro das regras estritas das grandes editoras e das relações estáticas de poder do mercado editorial? Em 2007, Douglas Diegues criou a editora cartonera Yiyi Jambo, no Paraguai. Em 2018, abriu a Editora de los Bugres, no Brasil.
São tentativas de resposta, mas iniciativas ainda silenciadas, silenciosas, mandadas ao ostracismo por ousar friccionar as relações de poder do mercado editorial, que, para voltar a Milán, prefere comprar o cinturão de campeão aos que almejam a estabilidade, o equilíbrio, a preguiça, a calmaria das águas serenas e da paz da linguagem consensual, que não gagueja.
O portunhol selvagem é sempre poesia, mesmo quando escrito em prosa?
Douglas Diegues – Es una lengua anterior ao português e ao espanhol. De los orígenes. Y los orígenes, repetindo-me uma vez mais, están en el futuro.
O que ele pode ensinar para o mundo? Quer ensinar alguma coisa para os outros?
Douglas Diegues – El portunhol selvagem pode ensinar —sem pretensiones de ensinar lo que quer que seja— que este mundo es una gran ilusión passageira. Es inútil acumular dólares en colchones ou em bancos. Um dia todos los dólares han de ser comidos pelas baratas, como num conto de Dostoiévski.
Poema en línea re(c)ta
by Álvaro de Campos
Nunca conoci quem houbiesse llevado patada.
Todos mios conocidos han sido the champions en tutti kuanti.
Y eu, tantas vezes tonto, tantas vezes pig, tantas vezes vil,
Yo tantas vezes irrespondibelmente parasito,
Indesculpabelmente sucio,
Yo, que tantas vezes non he tenido paciência para bañarme,
Yo, que tantas vezes he sido ridículo, absurdo,
Que he tropezado com mios pies publicamente en los tapetes de las etiquetas,
Que he sido grotesco, mezquino, submisso y atorrante,
Que he sufrido maledicencias y (me) he callado,
Que kuando non (me) he callado, he sido aun mais ridículo;
Yo, que he sido cômico a las mucamas del hotel,
Yo, que he sentido el guiño de los chongos de fletes,
Yo, que he hecho bergüenzas monetárias, pedido prestado sin pagar,
Yo, que, kuando la hora del mokete ojerá, me he agachado
Para fuera de la possibilidad del mokete;
Yo, que he sufrido la angústia de las pequeñas cosas ridículas,
Yo verifico que non tengo par en todo esto neste mundo.
Toda la gente que conozko y que me fabla
Nunca tuvo un ato ridículo, nunca ha sufrido maledicencia,
Nunca han sido si non príncipe – todos ellos príncipes – en la life…
Quien me diera oubir de alguém la voz humana
Que confesasse non un pecado, mas uma infâmia;
Que contara, non uma violênzia, mas una cobardia!
Non, son todos lo Ideal, si los oigo y me hablan.
Quién neste largo mundo existe que (me) confese que uma vez fue vil?
Óóóó príncipes, mios hermanos,
Arre, estou harto de semi dioses!
Donde hay gente neste mundo?
Entonces apenas yo soy vil y equivocado nesta tierra?
Pueden las mujeres non los haberen amado,
Pueden haber sido traicionados – pero ridículos, jamás!
Y yo, que he sido ridículo sem haber sido traicionado,
Como puesso hablar com mios superiores sem vacilar?
Yo, que vengo siendo vil, literalmente vil,
Vil nel sentido mais tacaño & infame de la vileza.
Glossarioncito Selvatiko
Mokete: Soco, porrada.
Ojerá: Brota, aparece de repente, acontece.
Soa o gongo. A patada final. O mokete que leva os senhores para a lona. A plateia de Ponta Porã, paraguaios, brasileiros, brasiguaios, bolivianos, guarani-kaiowás, imigrantes espanhóis, todos esperam que o juiz levante o braço do vencedor e entregue o cinturão.
Mas não. Não há campeões. Linguagem é sempre busca, investigação, movimento. O kometa ensaboado se deita na lona ao lado dos os corpos nocauteados e lambe as línguas deles.
Porque o portunhol é sempre poroso. É o que o professor e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu como uma porta de vai-e-vem, nunca escancarada, mas tampouco fechada, típica das periferias e semiperiferias globais. Ponta Porã, a periferia dentro das periferias que são Brasil e Paraguai. Portunhol selvagem, a periferia dentro das periferias que são o português brasileiro, os espanhóis latino-americano, o guarani e “tutti kuanti”.
Como vemos na tradução indomável de “Poema em Linha Reta”, de Álvaro de Campos, nesse processo de contaminação constante Diegues se apropria sem cerimônias do corpo do colonizador, de sua língua, de sua poética, de seu cânone e até do poeta-símbolo para injetar nele outro sotaque, outra fonética, outra linguagem. Fernando Pessoa não é derrotado —mas ganha um olhar deslocado, sulista, latino, marginal. Fronteiriço.
Um olhar ameríndio, por que não, já que o guarani é central nessa disputa. O eco retumba também em Eduardo Viveiros de Castro e no perspectivismo ameríndio. De acordo com ele, diversos povos originários da América compartilham a visão de que o mundo é formado por uma multiplicidade de pontos de vista. Sendo assim, humanos, animais, deuses, espíritos e todas as formas têm perspectivas ontológicas diferentes, um prisma particular que filtra o mundo. Tânia Stolze Lima exemplifica essa ideia com a etnografia da caça dos porcos do povo yudjá. Segundo ela, para os indígenas, esse ato é apreendido como caça. Para os porcos, por outro lado, é uma guerra. A questão é que não estamos diante de um mesmo evento entendido de duas formas diferentes —mas de dois acontecimentos paralelos e simultâneos.
Assim também é o portunhol selvagem, com múltiplos acontecimentos paralelos que se cruzam. Não há uma verdade única a ser alcançada. A compreensão é mais fluida, as fronteiras são mais frouxas, sujeitas a todo instante a transformações. Nada disso cabe no pensamento racionalista. O método científico nunca dará conta ao mesmo tempo da perspectiva humana e da apreensão dos porcos.
Ao serem “trasfernandopessoainventados” para portunhol selvagem, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa utilizam a linguagem dos subalternos e se tornam um deles. Passam a enxergar esse grupo e a se expressar nesse código. Deslocam-se para um acontecimento paralelo ao boiarem no rio do portunhol selvagem, que se aproxima da linguagem dos xamãs e dos pajés, capazes de assumir as perspectivas de animais, plantas, espíritos.
No portunhol selvagem, não é o subalterno que foi traduzido para a linguagem hegemônica. É o contrário. É a poética dos senhores que foi engolida por uma língua inventada, reconfigurada, desafiante, num processo que insere faíscas e fissuras no cânone ocidental. Uma coisa é ser português no início do século 20 e nunca ter conhecido quem tenha levado porrada. Outra bem diferente é ser “kabra de la peste” e não conhecer ninguém que tenha “llevado patada” em Ponta Porã ou na Pedro Juan Caballero do século 21.
Ali, na fronteira, sentido o mormaço da porta vai-e-vem, Álvaro de Campos descansa na mesa de um boteco. Já não é lusitano. Fala com prosódia brasiguaia, tem a camisa aberta por causa dos 33ºC. É moreno, veste chinelos e segura um copo de cerveja gelada, enquanto prepara sua erva-mate. Trabalha à noite de garçom, limpa banheiros, serve amendoins. Faz malabares. Anda de moto. É traficante, lutador e poeta. Usa ayahuasca e rapé. Apaixonou-se pela filha do fazendeiro, do líder indígena, do prefeito paraguaio. Frequenta inferninhos, onde senta-se rodeado por toda a fauna de meninas perfumadas e gente ansiosa para saber como foi fumar ópio no Oriente. Conta histórias em portunhol. Selvagem.