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JOYCE SEGUNDO UMBERTO ECO

Apesar de ser um grande apologista do close reading dos textos literários  para a descoberta da obra em si, tal como  preconizavam os Formalistas Russos, no caso de Joyce (1882-1941) Umberto Eco abre-se para a imanência e diz textualmente: “Em Joyce,  para se compreender o desenvolvimento de sua poética, é necessário remontar continuamente  ao seu desenvolvimento espiritual – ou melhor dizendo –  ao desenvolvimento daquele personagem autobiográfico que retorna constantemente em suas obras, seja ele Stephen Dedalus, Bloom ou H.C. Earwicker”. Isso significa que a poética de Joyce não pode t(s)er um método de análise fora da obra para se compreender a obra, mas que sua poética é explicada pela própria obra nas  diferentes fases de desenvolvimento.

Será, porventura, a obra de Joyce a história dialética de diferentes poéticas opostas e complementares? Vejamos, esquematicamente, as fases de sua biografia intelectual segundo o livro de  Umberto Eco, que acompanharemos, Le Poetiche di Joyce. Dalla Summa al Finnegans Wake. Milano: Bompiani, 1966.

 

1.Sua formação pré-adolescente com os padres jesuítas, em Dublin. Influência contra-reformista de Santo Ignácio de Loyola e seus exercícios espirituais.

2.Enquanto adolescente: estudos da escolástica de São Tomás de Aquino e absorção da “ nova moral” de Ibsen.

3.Já na Faculdade (University College): Estudos de Giordano Bruno,  leitura dos romances de D’ Annunzio (particularmente Il Fuoco – Joyce conhecia italiano  e francês), dos Poetas Malditos (Verlaine, Flaubert, Huysmans), do Movimento Simbolista na Literatura  e  de suas poéticas.

4,. Em Paris, aos 21 anos: De Anima, Metafísica e Poética  de Aristóteles, Dujardin  ( Les lauriers sont coupés) e o monólogo interior.

Nessa época já se delineiam as grandes linhas de influência que serão sentidas em sua concepção de arte e em suas obras, a saber: a influência de Tomás de Aquino, colocada em crise mas não demolida pelas leituras de Giordano Bruno; Ibsen e a relação mais estreita entre arte e empenho moral; a influência das poéticas simbolistas, com todas as seduções de decadentismo e o ideal estético de uma vida dedicada à arte, a  arte como substitutivo da vida e – principalmente – o impulso para resolver os problemas do espírito através da linguagem.

 

Essas influências irão marcar a formação sucessiva de Joyce. Em suas grandes obras, Ulisses (1922) e Finnegans Wake( 1939), só para citar os dois exemplos mais conspícuos, o máximo expoente da verdade é a linguagem e a história das palavras nos faz conhecer a história dos homens. Eco salienta  que a ossatura de Finnegans Wake é fornecida pela interpretação da história de Gianbattista Vico: a visão dos ciclos se insere nos planos pânicos e cabalísticos da sensibilidade joyceana. “Minha imaginação cresce quando leio Vico, quando leio Freud ou Jung, isso não ocorre” teria dito Joyce em uma entrevista citada por Richard Ellmann (James Joyce, Oxford University Press, 1959).

 

A linha de indagação que Eco elege enquanto hipótese operativa é a oposição que ele encontra em Joyce entre uma concepção clássica da forma e a exigência de uma formulação ( expressão) mais aberta, mais dúctil, tanto da obra quanto do mundo, numa dialética da ordem  e da aventura,  num contraste entre o mundo das summae medievais e o da ciência e da filosofia contemporâneas. Sua análise das poéticas de Joyce tentará ser também a análise de um momento de transição da cultura contemporânea. Abandonada a fé, a obsessão religiosa de Joyce, porém, não abandona sua disponibilidade espiritual. Presenças da passada ortodoxia (fascinação pelas figurações litúrgicas) reemergem continuamente, numa forma mentis que se configura graças às cadências da linguagem. Traduzo um trecho de Eco: “Buck Mulligan abre o Ulysses com seu  Introibo ad altare Dei,  e a terrível Missa Negra se põe no centro da obra; o êxtase erótico de Bloom e sua lúbrica e platônica sedução por Gerty McDowell têm como contraponto os momentos da cerimônia eucarística celebrada na igreja vizinha à praia do Reverendo Hugues; o latim macarrônico que  encerra o Stephen Hero e volta no Retrato do Artista, aparecendo aqui e acolá no Ulysses, não reflete apenas no plano linguístico as intemperanças dos vagantes medievais; como a eles, resta em Joyce o sentido da blasfema celebrada segundo um ritual litúrgico… Joyce chega à estética através da teologia.” Em Joyce, diz Eco, a busca de uma obra de arte equivalente do mundo parte do universo ordenado da Summa ao universo que se abre em Finnegans, em contínua expansão e proliferação, o qual entretanto, segundo Eco , deve ter um módulo de ordem, uma regra de leitura uma equação que o defina: seria uma forma? É esse o caminho que repercorre Eco, desde os dezoito anos de Joyce, para  a descoberta final. Passemos mais rapidamente por esses “bosques narrativos” para determo-nos mais na última etapa.

Os temas principais da estética de Stephen (do Retrato do Artista, quando jovem) são, em síntese:

1.A subdivisão da arte nos gêneros lírico, épico, dramático;

2.A objetividade e a impessoalidade da obra;

3.A autonomia da arte;

4.A natureza da emoção estética;

  1. Os critérios da beleza e a epifania;
  2. A poesia enquanto fuga da emoção pessoal (mas não recusa de expressar emoções). A poesia torna-se discurso rítmico de uma emoção, que não seria comunicável de outra forma.
  3. A emoção estética implica uma stase, uma parada da sensibilidade diante de uma piedade e de um terror ideais, mas protraída e dissolvida pelo ritmo estético que é a primeira relação estética e formal entre o todo e as partes ou vice-versa. A piedade é o sentimento que paralisa a mente diante de tudo o que é grave e constante no sofrimento humano e o liga com o paciente humano, o terror o une à causa secreta ( Retrato do Artista , IV parte)
  4. A imaginação é a relação particular em que a mente se põe em relação com as coisas que a imaginação escolheu para vê-las esteticamente. Daqui, até Ulisses, sucedem-se as leituras e as reflexões de Joyce.

Grande leitor da obra de Mallarmé (1842-1898) que, conforme se sabe por seus intérpretes, sua “ poética da ausência” tende a remeter além do autor, para um mundo de arquétipos metafísicos. A poética de Joyce maduro visa, ao contrário, multiplicar o presente no maior número possível de níveis de vida concreta. Ou, nas palavras de Eco: “A obra impessoal de Joyce parece-nos um objeto centrado em si, mímese da vida, onde remissões e chamadas são internas ao objeto estético…” (p29)

 

A Aristóteles e Tomás de Aquino, [integritas (perfectio); proportio (consonantia) e claritas], acresce-se , agora, Kant, para elencar, segundo Joyce, os três critérios da beleza:

Wholeness: aqui a concepção de Joyce se afasta da integritas tomista. Esta era um fato de completude substancial, em Joyce é um fato de delimitação espacial. É resultado de uma focalização psicológica, é a imaginação que escolhe e põe a coisa em evidência.

Harmony: após haver percebido que a coisa é una, sente-se que é uma coisa. Percebe-se que ela é complexa, múltipla, divisível, composta por partes, resultado e soma das partes, harmônica.

Radiance: a epifania; uma manifestação improvisa e evanescente digna de se relembrada. Ela confere à coisa um valor que ela não tinha antes de encontrar o olhar do artista.

Artista, poeta, para Joyce é quem, num momento de graça, descobre a essência (quidditas, alma) profunda das coisas; (a quidditas de Tomás de Aquino é a substância enquanto susceptível de compreensão e definição; a essência é a substância enquanto sujeito do ser, do existir, e a natura o é enquanto sujeito de operação). Mas o poeta é também aquele que faz ser, existir, esta alma através da palavra poética. A epifania, nesse caso, é uma maneira de descobrir o real e, ao mesmo tempo, uma maneira de defini-lo através do discurso.

 

Se Joyce tivesse parado no Retrato do Artista, a estética de Stephen ter-se-ia facilmente podido identificar com a do próprio Joyce. Mas, de repente, surge o Ulysses com a seguinte tese: se a arte é atividade formadora, isto é,  “ disposição de uma matéria sensível e inteligível para uma finalidade estética”, o exercício de formação deve atuar sobre um material bem determinado que nada mais é do que o tecido dos eventos e relações morais, das vivências psicológicas, e de toda a cultura universal.

 

Passemos, então ao Ulisses, sem esquecer a tecla em que bate Eco: o conflito entre ordem tradicional e nova visão do mundo, o conflito do artista que tenta dar forma ao caos e vive encontrando em suas mãos os instrumentos da Velha Ordem: ele ainda não conseguiu substituí-los.

 

Ulisses se apresenta como um cadinho em que se opera a destruição das relações objetivas sancionadas por uma tradição milenar. Mas não a destruição das relações que ligam um evento ao seu contexto originário com a finalidade de refundi-lo em um novo contexto através da visão subjetiva do artista. Aqui o objeto da destruição é o universo da cultura e – através dele – o universo tout court. A operação não se realiza sobre as coisas, mas nas coisas vistas através da linguagem, portanto na, com, e sobre a linguagem.

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Cito Umberto Eco a respeito da resenha que Jung escreveu ao receber Ulysses:  “Jung salientava como “através do rebaixamento do nível mental”, através da abolição da “função do real” se confundia, ali, a dualidade do subjetivo e objetivo(…) . A primeira vista o discurso de Ulisses aparecia como o monólogo de um esquizofrênico: mas, sabendo captar a intenção que se escondia atrás da resolução da escritura, Jung percebia que a esquizofrenia assumia o valor de uma referência analógica e devia ser vista como uma operação “cubista” em que Joyce, como toda a arte moderna, dissolvia a imagem da realidade num quadro ilimitadamente complexo “cujo tom é dado pela melancolia da objetividade abstrata”.  Só que, nessa operação, o escritor não destrói a própria personalidade como faz o esquizofrênico:  ele reencontra e funda a unidade de sua personalidade destruindo a imagem clássica do mundo. O livro destrói os estratos espirituais do homem moderno (assim o livro destrói a Irlanda e seu medievo na medida em que eles têm alcance universal),  porém, sob o cinismo do Ulisses, se esconde uma grande piedade, sofre-se o mundo  que não é belo nem bom, mas antes, o que é pior, sem esperança, porque escorre por dias  comuns eternamente repetidos, arrastando a consciência humana em sua dança insana através das horas, dos  meses, dos anos”.

 

 

Ao  módulo de ordem, à regra de leitura, à equação que  defina o mundo de Joyce , Eco chama de “forma expressiva”.

 

A “forma expressiva”

 

 Os pensamentos de Stephen, personagem do Ulysses, no terceiro capítulo do livro  chamado “Proteus”, marcam  a passagem do cosmo ordenado para um cosmo fluido e aquóero, em que morte e renascimento, os contornos dos objetos, o destino humano, tudo se torna impreciso, grávido de possibilidades, de novos nexos entre as coisas. Proteus nos introduz ao centro de Ulisses, um mundo baseado nas metamorfoses que produzem novos centros de relações. Proteus, tratado de poética, funde em música marinha a filosofia de Aristóles. ( Cf. Glauco Cambon em A luta contra Proteus, Bompiani, 1963).O capítulo atua suas declarações programáticas não através conteúdos explícitos, mas na forma do discurso enquanto mensagem: é a forma expressiva, tanto do capítulo quanto da  própria palavra  que expressa sua matéria ( Cf. Walton Litz, The art of J.J., Oxford, 1961 : O momento técnico como passagem ” from  the lump of experience to the achieved content”) Ou seja: o juízo é expresso pela forma do capítulo em que são empregadas inúmeras figuras retóricas (metonímia, quiasmo, metáfora, assíndeto, epífora, onomatopeia, anacoluto, hipérbato, matátese, prosopopeia, polissíndeto, apócope, ironia, síncope, solecismo, anagrama, metalexis, tautologia, sarcasmo, anáfora,  palíndrome, anástrofe, perífrase, hipérbole etc.). Veja-se, em particular, no capítulo “ Éolo”, o uso dessas e de outras figuras juntas que denota uma ruptura: dizer mostrando (e não afirmando e julgando) faz com que o material conserve sua imediatez e sua brutalidade. O relato se torna imagem, epifania. Essa técnica “ dramática” elimina a presença  contínua do autor e substitui-lhe o ponto de vista e a atuação das personagens. Torna expressivo o modo em que as personagens falam.

 

A poética do corte em largura no magma da experiência

 

Substitui a poética do entrecho, em que há um fio lógico e de verossimilhança e a eliminação dos atos insignificantes.  Ora, em Joyce, essa perspectiva é invertida: pequenas coisas, no fluxo incoerente de seu aparecimento ocupam o lugar central, ou melhor, se nivelam com os fatos importantes. Toda sua narrativa converge na poética do corte em largura e do  monólogo interior e na poética do ponto de vista: a transferência dos fatos  da ação da causa externa (fatos exteriores) ao ânimo dos personagens: o desparecimento de um escritor onisciente e a aberturas para um universo  narrativo que pode ser visto em maneiras diferentes, adquirindo significados diversos e complementares. No uso do monólogo interior (stream of consciousness) Joyce não registra todos os eventos psicológicos de um personagem, mas o monólogo é fruto de uma seleção do autor, o que pressupõe uma redução do universo real, e – ao mesmo tempo – implica o critério tradicional da escolha narrativa. O monólogo interior joyceano atua uma identificação vida-linguagem que deriva das poéticas simbolistas mas que é expressão original de uma tensão.

 

A poética da ordem retórica

 

O  tempo, no Ulísses, se fragmenta. Ele é experimentado como mudança, mas a partir de dentro do fluxo: “se existe uma lei do decorrer dos acontecimentos, ela não pode ser procurada fora, e a proposta já está determinada pelo particularíssimo e individual ponto de vista, no interior do desenvolvimento, no qual nos encontramos situados. Só que, no fluxo das percepções que se acavalam, os limites entre dentro e fora são extremamente lábeis. Com isso, o narrador se encontra diante de uma crise do tempo narrativo e de uma crise do personagem. Curiosamente, o mesmo não ocorre com o leitor: ele, graças ao estilo de cada monólogo interior de cada personagem , um diferente do outro, consegue reconhecê-los, caracterizá-los e até julgá-los.

 

Cheguemos ao ponto: uma vez aceita a dissolução do conceito tradicional de consciência individual, Joyce nos dá personagens-consciências, fato que implica a ação de alguns elementos de coesão que devem ser levantados. Mais:  o tipo de niilismo que apresenta Joyce (lembre-se de Jung: Joyce destrói o mundo) e a declaração e a desordem como essência do livro implicam—para que possam se manifestar em medida tão evidente—justamente, uma ordem. Levantar a totalidade das possibilidades simbólicas que se cruzam no universo cultural contemporâneo, eis a empresa desesperada em que Joyce ( já não mais Stephen) adverte o terror do Caos.

Nesse momento o que faz Joyce?

Diz Eco: “ Joyce pede à autoridade da Ordem Medieval de garantir a subsistência do novo mundo que ele descobriu e que ele escolheu. (…) As características de um organismo ordenado segundo os mais rigorosos critérios de um formalismo tradicional se encontram naquela Summa ao contrário que é o  Ulisses: cada capítulo corresponde a um episódio da Odisseia, a cada capítulo corresponde uma hora do dia, um órgão do corpo, uma arte, uma cor, uma figura simbólica, uma técnica estilística” etc. etc. A interpretação dada por T.S. Eliot ( Cf. Ulysses, Order and Myth, 1923) continua válida: Joyce recusa a substância do ordo escolástico, mas tenta reduzir as aporias do mundo contemporâneo encaixando-o justamente nas formas do ordo posto em dúvida

Após uma exemplificação exaustiva do douto Eco, chega-se ao seguinte: com uma densa trama de artifícios, Joyce obtém justamente aquilo que o poeta medieval quisera conseguir com os mesmos meios: um relato entretecido de símbolos e alusões cifradas, piscadelas à inteligência douta de outra inteligência douta para que se encontre, sob cada véu, sob cada palavra, uma realidade ulterior, ao mesmo tempo  contígua e diferente.

Justamente por essa sua natureza medieval é que a obra adquire eficácia simbólica e pode ser vista como possuindo, além de um sentido literal, também um moral, um alegórico e um anagógico: a odisseia do homem comum num mundo quotidiano e desconhecido, a alegoria da sociedade moderna e do mundo através da história de uma cidade; mas também a referência à cidade celeste, o supersentido, a alusão à Trindade. A alusão à realidade celeste serve ao Ulísses para dar corpo e “direção” aos eventos concretos. O esquema trinitário é uma ordem que nos permite compreender os fatos literais e dar um significado concreto à balbúrdia de eventos que se desencadeiam sob nossos olhos. 

Mais uma vez, os nexos linguísticos e as estruturas narrativas tradicionais não servem ao autor para expressar e amarrar ideias novas: são as ideias velhas, ligadas pela velha tradição que lhe servem para fazer surgir novos nexos, novas ideias, graças a aproximações significativas. O esquema trinitário (teológico) é usado livremente por Joyce, para dominar um material que lhe foge.

As personagens de Ulisses expressam uma dissociação total. Stephen recusou seu universo religioso, a família, a pátria, a igreja e procura algo que ainda desconhece. Bloom não tem uma verdadeira relação com a cidade por ser hebreu, nem com a mulher, pois ela o trai, nem com o filho, pois Rudy está morto.

Molly, enfim, gostaria de reunir-se com todos, porque não é o desejo que lhe falta, mas é bloqueada por sua preguiça e pela carnalidade pura de suas relações.  Esse mundo dissociado se reconhece como tal, mas não consegue encontrar módulos internos de organização.

O que faz Joyce? Procura um módulo externo: faz de sua história a alegoria do mistério trinitário: Um pai que só se reconhece no filho, Um filho que só se reencontrará em relação ao pai, uma terceira pessoa que atua a relação numa caricatura – numa inversão – do amor consubstancial.

   Quando Joyce diz a Budgen que ele quer: ”   que o leitor compreenda através da sugestão e não através de afirmações diretas “(Cf. Frank Budgen Further recollections on J.J. in Partisan Review, IV, 1956 e, do mesmo autor, James Joyce em Two Decadesof Criticism, New York, 1948), ele  refere-se , explicitamente, à poética de Mallarmé, e suas sugestões têm muito a ver com os artifícios do simbolismo: analogias sonoras, onomatopeias, associações de ideais, símbolos, etc.. Mas cada uma desses artifícios não se segura na pura magia evocadora da palavra, do som ou do espaço em branco, como ocorria com Mallarmé; o artifício de Joyce funciona se há uma direção, se a sugestão encontra um apoio no esquema referencial geral. Essa direção para onde a sugestão remete permanece , porém, ambígua, e o significado – múltiplo; o que dá o esquema referencial é uma série de direções possíveis”

Paradoxalmente, através da sobreposição de uma ordem clássica ao mundo da desordem, aceito e reconhecido como o mundo do artista contemporâneo, vai tomando forma um universo que tem muitas afinidades como da cultura contemporânea. (Ver, de  Edmund Wilson, Axel’s Castle, 1931 p.177-78).

Com Ulysses pode-se falar de grande epopeia de molde clássico. Baseada em Dublim, como se o tempo o fora em Florença, entra no livro um amontoado grandioso de experiências e uma totalidade de problemas do homem contemporâneo, de modo a fazer com que a qualidade das reminiscências culturais, que também desempenham seu papel, é superada pela vitalidade das “ presenças” que o povoam.

A Weltanshauung que domina o livro,  é que o real não mais será sórdido (veja-se, em particular,  o capítulo IV,  em que Bloom está  no W.C.), “ nesse universo em que caiu qualquer possibilidade de uma ‘primeiridade’ necessária e definida uma vez por todas. A epopeia é a epopeia do não significante, do não selecionado, porque o mundo é o horizonte total de eventos insignificantes, que se ligam em constelações contínuas, cada um início e fim de uma relação vital, centro e periferia, causa prima ou efeito último de encontros e oposições, parentelas e discórdias. Bom ou ruim, este é mundo com o qual o homem contemporâneo acerta suas contas, na ciência abstrata como na experiência viva e concreta; o mundo ao qual está aprendendo a habituar-se, reconhecendo-o como sua pátria de origem”.


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.