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Orelha para Catatau (Argentina)

A fusão de palavras da língua inglesa entre si e com outras de muitos outros idiomas é um dos traços que faz de Finnegans Wake, de James Joyce, 1939, o divisor de águas, que afasta a prosa realista como única alternativa para a narração literária. Jacques Lacan considerava esse livro a própria representação do inconsciente. Catatau, de Paulo Leminski, 1975, faz René Descartes vir aos trópicos brasileiros para, digamos, reencontrar seu inconsciente ao percorrer a selva, sob forte calor e efeito de marijuana, abandonando ou questionando o racionalismo, matemático, consciente. O livro foi escrito em uma época que vários autores buscavam a experimentação, a especulação com a linguagem. Instigado por Galáxias de Haroldo de Campos, que se iniciou em 1963, Catatau toma outros rumos, porque coloca mais duramente a questão da leitura como desafio. “Vai me ver com outros olhos ou com os olhos dos outros? AUMENTO O TELESCÓPIO na subida: lá vem ARTYSCHEWSKY. E como? São joãobatavista! Vem bêbado, ARTYSCHEWSKY bêbado como polaco que é. Bêbado, quem me compreenderá?”. De passagem, anoto aqui que o interesse por Descartes moveu um cineasta da grandeza de Roberto Rossellini, que lançou filme homônimo em 1974. Conheci Leminski no longínquo 1975, eu com 20 anos e ele 11 anos mais velho. Pude perceber o trauma que Catatau lhe causou. Ele falava com orgulho da obra mas ao mesmo tempo dizia ter se libertado de literatura hard core. Sua primeira resposta foi criar poemas curtos, com temas contraculturais, bem legíveis. E fazer letras para canções compostas por ele e ou por outros. Entretanto, lançou outros livros de alto nível em prosa, com o mesmo tom culturalista, mas igualmente bem legíveis. A radicalidade construtiva de Catatau me lembra a de En la masmédula, de Oliverio Girondo. Vale a pena aceitar o desafio de lê-lo na tradução do grande Reynaldo Jiménez.

 


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.