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Os poetas brasileiros estão vivos

Uma nova antologia de poesia brasileira reúne as vozes de poetas contemporâneos que lançam um novo olhar sobre o mundo, sobre o Brasil, e oscilam entre a graça e a desgraça.

Há algo de fascinante em qualquer antologia poética. Este volume bilíngue reúne trinta e três poetas brasileiros nascidos no século XX. O mais antigo e mais famoso deles, João Cabral de Melo Neto, abre o livro com cinco poemas da mais absoluta originalidade, afiados como facas (ver “Uma faca só lâmina”, onde se encontram seus temas obsessivos, as suas “ideias fixas”: o relógio, a faca, a bola). A antologia se encerra com um poema de Lorena Martins, escrito em 2021:

 

Os gatos são infelizes
eu não saio de casa eu poderia

Aprender a tricotar

Para me livrar da covid

 

Entre esses dois poemas, o leitor pode seguir a ordem cronológica e descobrir poetas, homens e mulheres (muito presentes aqui, especialmente entre os mais jovens), muitas vezes ainda desconhecidos na França, ou abrir o volume ao acaso e se deter, por um momento, em poemas que o atingem sobretudo por sua liberdade. Será que, como afirma Wlademir Dias-Pino, “a liberdade é sempre experimental“? A iconografia abundante, a disposição gráfica de certos poemas, as pinturas, os desenhos, as fotografias, as letras ora minúsculas, ora enormes, parecem ultrapassar, para muito além do verso livre, os limites da escrita poética. Como se o próprio poema quisesse sair da estrutura estreita do livro, viver em outro lugar, de outra forma.

 

É o que demonstra a obra de Eduardo Kac, com sua poesia holográfica, ou holopoesia. Mas ele não está sozinho. Com Marília Garcia, com Arnaldo Antunes, com Augusto de Campos e com tantos outros, o poema quer ser dito de outra forma. Em um país que viveu tantos anos de repressão, ele pode ser visto como uma forma de resposta ao sufoco? Talvez, tanto quanto um grito, tenha sido uma grande gargalhada que fez Paulo Leminski dizer, em 1982:  “na minha opinião o grafite é o limite  ” (o poema é escrito com uma lata de aerossol).

O humor está, portanto, muito presente nessas páginas. É com surpresa que encontramos um poema de Paula Glenadel sobre tardígrados; um outro de Eduardo Sterzi intitulado “Unicórnios e chimpanzés”, composto apenas de perguntas. E Ricardo Aleixo, que diz “rir alto e não morrer“… O riso, seja como resposta à repressão ou simplesmente como expressão da existência, parece ser um dos elementos importantes da poesia brasileira contemporânea (esse também é um legado dos concretistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos).

 

Lendo estas páginas, também nos impressiona a dimensão reflexiva dos poemas. Muitos poetas, seguindo João Cabral (“Antiode”, poema cujo subtítulo é “contra a chamada poesia profunda”), interrogam-se sobre o fato poético. Ney Ferraz Paiva em “Mesa de Trabalho”, Simone Brantes em “Coisas que um Poeta Pensa”, Ricardo Aleixo em “Só o Anomal Fala no Poema”, entre muitos outros. Citações e discursos animam vários poemas: Baudelaire, Rimbaud, Anna Akhmatova, Ezra Pound, T. S. Eliot, Hölderlin… A poesia brasileira contemporânea também dialoga com poetas de outros lugares e épocas.

Se o poema olha para si mesmo, se critica a si mesmo, também critica seu lugar no mundo. Vários poemas contêm reflexões sociais, às vezes até políticas. Para dizer o mundo, também enquanto poeta. Assim, os poemas de Regis Bonvicino, onde a violência urbana é transcrita através de sua visão dos rebaixados, mendigos, marginais e prostitutas (nascido em 1955, Bonvicino publicou muitos de seus poemas pela primeira vez de forma oral, em streamings, o que demonstra a clara aspiração da poesia contemporânea de ir além do âmbito do livro). Em “Álibi”, ele critica fortemente os poderosos desse Brasil onde a desigualdade ainda é brutal:

 

Oh, Pai, tende piedade

dos zilionários, dos vendedores legais de armas

dos lobistas, do dinheiro farto dos narcos

dos unhas de fome, dos gigolôs dos cassinos

dos traficantes de iguanas, rim e fígado

 

E termina com um verso áspero:  “Oh, Pai, sobretudo, tende piedade do nosso honrado boss” (o poema foi publicado em 2019, quando Bolsonaro era presidente do Brasil). Coincidência? Em outro poema, “Tarde”, alguns versos de Bonvicino descrevem um mendigo, como tantos outros que encontramos ao andar pelas ruas de São Paulo (onde ele mora) do Rio ou do Recife:

 

dorme

estirado a uma certa distância da entrada

cabeça sobre a garrafa vazia de água

o sol de inverno bate direto em sua cara

roupas do corpo,

sem sapatos,

não tem mais nada, não tem spleen

só tem porrada

 

 

Em Diana Junkes, a crítica social também é muito forte:

 

A miséria exposta à gangrena atrai moscas mesmo
sob o azul do céu, mesmo
que homens encapuzados amputem
membros doentes;

 

Ou ainda Izabela Leal, que dedica um poema a Davi Kopenawa e outro a Marielle Franco, ativista feminista e política assassinada em 14 de março de 2018, símbolo da luta contra o fascismo.

 

Voz que se levanta em luta dura,
preto
sua cor que resiste à
mulher
o rosto que abala o mundo

 

Toda antologia diz algo sobre seu autor. Inês Oseki-Dépré, que escolheu e traduziu todos os poemas que a compõem, lança um olhar singular sobre o Brasil contemporâneo e sua poesia. Como não admirar esse trabalho? É com prazer que percorremos o caminho que ela propõe. Seria possível dizer que, neste livro, a ênfase recai sobre uma forma de poesia urbana contemporânea, aberta ao mundo exterior? Um outro olhar sobre a poesia brasileira contemporânea teria destacado poemas voltados para o interior do país, para o sertão? Pensa-se em João Cabral, por exemplo, que também é o poeta de Pernambuco, dos canaviais, da seca e da mineralidade.

Outro fato notável é que essa poesia contemporânea, com exceção de alguns poemas gráficos, se deixa ler perfeitamente em francês (e às vezes até parece ter sido escrita nessa língua). Embora a alta qualidade das traduções, sem dúvida, tenha muito a ver com isso, pode não ser a única razão. Também pode ter a ver com algo próprio da poesia contemporânea, cuja relação com a linguagem não é mais a mesma das décadas anteriores. Um poema clássico não é necessariamente mais difícil de traduzir (tudo depende de como é traduzido), mas a ausência de rimas (para a maioria dos poemas aqui presentes), a grande presença de versos livres, sem dúvida contribuem para facilitar a transição entre as duas línguas.

 

Uma língua não é algo que
se constrói,
ela está mais perto do mar do
que de um barco

(Ana Martins Marques, “Volapük”)

 

Este livro, que percorremos [folheamos] com alegria, é a prova de que a poesia brasileira tem seu lugar no mundo, que ela é original, vigorosa. É um Brasil que não vemos com tanta frequência, muito distante dos clichês dos cartões-postais, e também da imagem deplorável dos últimos anos.

 

Resenha originalmente publicada em https://www.en-attendant-nadeau.fr/2023/08/07/les-poetes-bresiliens-sont-vivants/

 

Tradução do francês: Érica Gonçalves de Castro

 

Anthologie internationale de poésie contemporaine:

  1. Brésil – Poésie intraitable

Editada e traduzida por Inês Oseki-Depré


Edité par Inês Oseki-Dépré.
Avec João Cabral de Melo Neto, Wlademir Dias-Pino, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Francisco Alvim, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Lu Menezes, Horácio Costa, Carlos Ávila, Regis Bonvicino, Josely Vianna Baptista, Nelson Ascher, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Nuno Ramos, Carlito Azevedo, Eduardo Kac, Ney Ferraz Paiva, Antonio Moura, Simone Brantes, André Vallias, Paula Glenadel, Marcos Siscar, Izabela Leal, Patrícia Lavelle, Diana Junkes, Angélica Freitas, Eduardo Sterzi, Ana Martins Marques, Marília Garcia, Lorena Martins.

 


Para adquirir

 

https://materiaprima.pt/detail.php?id=71000

 

https://www.amazon.com.br/Anthologie-internationale-po%C3%A9sie-contemporaine-intraitable/dp/2378963165

 


 Sobre Mathieu Dosse

O tradutor, professor e pesquisador Mathieu Dosse é Mestre e Doutor em Literatura Comparada pela Université Paris VIII - Vincennes-Saint-Denis (2005/2011). Em sua tese, intitulada Poétique de la lecture de la traduction: Nabokov, Guimarães Rosa, Joyce, Dosse faz reflexões sobre o ofício da tradução e suas dificuldades, refletindo sobre as implicações de se transpor autores de estilos de escrita tão particulares para outros idiomas, e discutindo também a forma com que a poética do texto original incide nas respectivas traduções. A sua tese deu origem à sua última publicação, o livro: Poétique de la lecture des traductions: Joyce, Nabokov, Guimarães Rosa (Editora Garnier/2016). O seu trabalho como pesquisador e tradutor de Guimarães Rosa o alçou à condição de especialista deste autor brasileiro no cenário internacional. O jovem tradutor trabalhou em obras de autores consagrados da literatura brasileira como Graciliano Ramos (Vidas secas/Vies arides - 2014), Luiz Ruffato (Estive em Lisboa e lembrei de você/A Lisbonne j’ai pensé à toi - 2015) e, também, João Guimarães Rosa (Estas estórias/Mon oncle le jaguar et autres histoires - 2016), todos publicados na França pela Editora Chandeigne.