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Poesia completa de Yu Xuanji

Entrevista de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao a Ronald Augusto

 

Ronald Augusto: Falem um pouco sobre a biografia da poeta Yu Xuanji.

Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao: Yu Xuanji é uma personagem controversa. A primeira impressão que dá, quando a gente começa a se relacionar com ela, com sua poesia, é de que encontramos a versão feminina e chinesa clássica de Rimbaud… Estou fazendo aqui uma comparação obviamente exagerada e um pouco jocosa – ao mesmo tempo em que carinhosa, quanto a ambos os poetas, que amo como a dois bons amigos que me perdoariam este excesso… –, mas não de todo inadequada. Como Rimbaud, ela teve a genialidade precoce e a capacidade de usar a tradição em um sentido novo e sensualista, indo mais longe dentro de tendências que já se verificavam na literatura da época. Também a relação vivencial com a poesia – e nisso ela é uma curiosa precursora da modernidade –, a fusão da poesia com a autobiografia. Como mulher, ela experimentou os diferentes papéis sociais reservados a seu sexo e posição social na época em que lhe tocou viver – esposa (ou “segunda esposa”, concubina), cortesã, monja taoísta – e viveu-os intensamente, até o “limite”, isto é: com a consciência extremada de quem escolheu explorar as possibilidades daqueles papéis como caminhos para a realização do prazer e do desenvolvimento pessoal. Em suma, sendo sempre, antes, poeta, em todos esses lugares sociais. E que poeta! Seu domínio formal, profundidade semântica e abrangência na referência aos conhecimentos da tradição cultural são “de gente grande”, em uma época de poetas enormes. Infelizmente, sua biografia relaciona-se a uma vida curta (20 e poucos anos) e uma produção remanescente não muito numerosa – quarenta e poucos poemas. Dos poetas que alcançaram a notoriedade em sua época e que viveram mais tempo – Wang Wei, Li Bai, Tu Fu… – salvaram-se obras muito mais extensas.

 

RA: Além das qualidades poéticas da autora, é possivel admitir que questões relativas a uma necessidade de reparação ou de resgate das singularidades do feminino foram levadas em conta no projeto de tradução?

Tradutores: Certamente. Yu Xuanji é muito mulher! A condição feminina é um dado essencial de sua poesia, um eixo semântico: ela parece estar sempre afirmando a mulher, seu discurso, seu ponto de vista como uma das vias da condição humana… contra uma tradição que a conforma, por milênios, a um papel acessório e lateral na existência do homem-macho, cuja experiência falaria pela humanidade, pela história, pela nacionalidade toda. De certa forma, ela tem um traço “autoafirmativo” em sua poesia. Mas o desconcertante (até hoje, eu diria, para muitos chineses, porém não só eles) é que esse traço aparece como absolutamente natural, sem pedir licença, sem nada que signifique “eu estou aqui afirmando a voz da mulher”… Não, ela simplesmente faz o que qualquer poeta faria, mas com um olhar de mulher, mostrando que ali, naquele tema, naquele assunto, com os mesmos recursos formais, uma mulher diz assim… Penso, por exemplo, em um poema como “Passando por E’Zhou”. É poesia de viajante, na qual o poeta que escreve está passando de barco por uma cidade onde aconteceram episódios históricos notáveis e há uma paisagem característica. Ela escreve assumindo a mesma independência, a voz solitária, silenciosa e contemplativa, que assumiria um outro grande poeta em viagem, como Li Bai, Wang Wei, Basho, Murilo Mendes, João Cabral, Pound… Ela exibe domínio da história e da geografia, com uma voz “douta”, conhecedora, autoritativa. Mas aí ela se apega à lenda de uma heroína da região, uma mulher cuja história é conhecida há séculos, e começa a fazer uma metáfora de sua própria vida a partir da identificação com essa outra mulher. E o poema termina grandiosamente, com o rio levando a todos e tudo, a morte e o tempo reduzindo mulheres e homens, suas falas (seus versos, explicitamente) a sombras. É um poema sensacional, de uma grandiosidade clássica, e só uma mulher poderia tê-lo escrito! Essa grandiosidade de temas e de dicção parece afirmar a condição feminina a partir de fora do “papel feminino regulamentar”, que seria mais adequado ao espaço íntimo, interno à casa e às relações humanas próximas… e que dá excelentes poemas de grandes poetisas também, inclusive da própria Yu Xuanji. Nesse aspecto, então, ela se irmanaria a outras poetas que assumem com desenvoltura uma dicção grandiloquente, como Sophia de Mello Breyner Andresen, Cecília Meireles… E sua contribuição à poesia chinesa tem muito a ver com uma elevação do discurso feminino (fálico, não é?), em uma literatura na qual a voz feminina costuma ser um gueto. Isso, em qualquer cultura, não é pacífico, e menos ainda o é na China. O fato de ser mulher mas não ser “boa-moça” também influencia no fato de que pouco de sua obra chegou a nossos dias… As pessoas não sabem muito bem o que fazer com ela, onde enquadrá-la.

 

RA: Em sua época, Yu Xuanji era uma artista “à margem da margem”?

Tradutores: Nem tanto. Ela possuía um papel, digamos, secundário ou subalterno, porque este era o lugar da mulher. Mas era conceituada como poetisa, encarada, inclusive, como gênio precoce. Suas habilidades como poeta eram reconhecidas e afamadas desde muito cedo. Mas acabou por ser inviável uma voz tão íntegra e forte, para cada um dos seus lugares sociais – de monja, poetisa, cortesã, (ex-)esposa.

 

RA: Falem sobre aspectos diferenciadores de sua linguagem em relação ao pano de fundo da cultura poética em que a poeta se situava.

Tradutores: A grande contribuição de Yu Xuanji foi a voz feminina explicitamente sensual e autobiográfica. Ela era discípula de Wen Tingyun, poeta notável principalmente como lírico-amoroso. No mais, seguia os modelos da poesia clássica chinesa, em uma época cuja ideologia dominante era o taoísmo. Há estudos interessantes que descrevem aquele período – Dinastia Tang tardia – como caracterizado por um “taoísmo feminino”, ou de importante presença feminina. O lado monja taoísta de Yu Xuanji a inseria socialmente, também, entre as expoentes intelectuais femininas daquela corrente religiosa, cuja proeminência era uma das características da época.

 

RA: Yu Xuanji é ainda uma voz poderosa no presente?

Tradutores: Sim, e nunca deixou de incomodar, exatamente por “dizer o que diz” sendo uma poetisa excelente. Recordo um episódio que me contaram: uma alta autoridade chinesa visitou, há poucos anos, a Biblioteca Pública de Pequim, herdeira de um acervo imperial, e que guarda originais de obras antiquíssimas. Então lhe mostraram uma preciosidade desse acervo: os originais de um livro de uma grande poetisa da Dinastia Tang – um skroll da Dinastia Song! Ele leu um poema, corou, riu e disse, para constrangimento de todos: “esta moça era mesmo muito romântica!”… Esse livro era de Yu Xuanji.

A China de hoje atravessa um período conturbado, no qual a cultura tradicional confucionista, recebida via Dinastia Qing e nunca suprimida pelas revoluções do Século XX, sobretudo no que tange à delimitação das relações sociais e afetivas, está sendo questionada e modificada em grande escala, a partir do processo de modernização e industrialização mais veloz e intensivo da história e da abertura cada vez maior para o exterior que esse processo engendra, em plena globalização. Não se sabe aonde isso vai dar – é uma cultura forte, de bases muito sólidas, que já demonstrou sua capacidade de variar a partir de seus próprios fundamentos por momentos históricos diferentes; certamente será capaz de adaptar-se também a estes novos tempos. É possível que a China estabilize rapidamente uma cultura de relações pessoais ao mesmo tempo aberta e “liberal” (no sentido moral), sob vários aspectos, mas também conservadora em outros. Em qualquer sentido, o ponto de apoio estará nas correntes e possibilidades presentes na tradição. Vozes como a de Yu Xuanji comprovam que a tradição chinesa tem o seu “lado louco”, desregrado, apaixonado, vitalista… em uma palavra: taoísta (porque o taoísmo tem esse aspecto maravilhosamente criativo e vital do “desregramento dos sentidos”, da entrega, da aceitação das forças da natureza, que possibilitou a existência de mestres bebedores de vinho e amantes da festa, cujas vidas eram exemplos de singularidade, de afirmação de uma via excêntrica e individual no mundo). Yu Xuanji atualiza esse manancial de inquietude, paixão, curiosidade pelo novo e ousadia, coragem pessoal impulsionada pelo amor à vida, que está disponível nessa cultura riquíssima, cada vez mais presente.

Mas ela incomoda! Por exemplo, recentemente, um intelectual chinês colocou, em seu blog, uma crítica virulenta ao fato de tantos ocidentais ficarem fascinados pelas poetisas da Dinastia Tang, como Yu Xuanji, Xue Tao, Li Ye…. poetisas que são apenas vistas “en passant” na escola. Diz ele que “nosso” (nós ocidentais; ele não sabe da tradução brasileira…) fascínio por esses “nomes de importância secundária” vem de um apego à ideologia liberal-burguesa; que devíamos traduzir poetas maiores, como Wang Wei, Li Bai – esquecendo-se de que esses poetas “maiores” já contam com inúmeras traduções para línguas ocidentais, e de que Yu Xuanji e aquelas outras poetisas são também grandes nomes, e estão entre as maiores da China na tradição específica da poesia feminina. Em suma, o cavalheiro está um pouco mexido… O engraçado é que, se alguém dissesse algo assim no Brasil (“por que tantos estrangeiros querem traduzir Cecília Meireles, quando Drummond é tão mais importante…” ou alguma bobagem do gênero), ia ser tachado de machista no dia seguinte por um monte de gente (ou, ao menos, eu quero crer que o seria). Na China, ainda há quem ache natural esse tipo de visão e até concorde.

Mas está mudando. Por exemplo, no Baidu, espécie de Google chinês, o maior search engine do mundo em língua chinesa, há um forum da Yu Xuanji, bastante concorrido. As pessoas conhecem, discutem, estudam Yu Xuanji cada vez mais.

 

 

Yu Xuanji sobreviveu um milênio

 

RA: Qual o conceito da tradução que orientou o trabalho de vocês?

Tradutores: Estamos estudando mais a teoria da tradução. Só mais recentemente entramos em contato com um trabalho como o de Lawrence Venuti, que é muito interessante. Nosso referencial teórico é poundiano. A partir, primeiro, dos ensinamentos que nos foram repassados pelos tradutores concretistas, influência incontornável em poetas de nossa geração (lembro que o Leminski chamava a poesia concreta de “serviço militar obrigatório da poesia brasileira”). Mas, a partir daí, estudamos modelos e discussões de tradução de poesia direto na fonte, em inglês, no próprio Pound e teóricos da literatura poundianos. Também temos como referência as traduções de François Cheng, em francês, que se caracterizam sobretudo por uma aguçadíssima intuição poética, rigor linguístico e profundo conhecimento de cultura chinesa; François Cheng é um grande mestre, sempre fascinante.

 

RA: Por que, vertidos para o português, os versos de Yu Xuanji são dodecassilábicos? Esse metro mimetiza a cadência poética de que se serviu a poeta em seu idioma?

Tradutores: A métrica fixa da poesia clássica chinesa é de 7 ou 5 caracteres. Vertemos para o português os versos de 7 caracteres como de 12 ou 11 sílabas; os de 5 ficaram decassílabos. Pretendemos, primeiro, apoiar-nos nos ritmos clássicos de nossa tradição, e, segundo, reproduzir mesmo o número de palavras (de monemas), de unidades de sentido lexicais dos versos. O chinês é uma língua não flexional e contracta; as palavras latinas são muito maiores, por causa, principalmente, das flexões.

 

RA: A distância (aparentemente grande) entre os idiomas tende a inibir a tradução ou a torna mais estimulante?

Tradutores: Inibe, porque o resultado é praticamente “inverificável”; quero dizer: as diferenças que existem entre as diversas traduções de um poema, em uma mesma língua, são tão grandes, que você frequentemente fica tateando no escuro, só você e o texto chinês, sem poder se basear muito no trabalho de outros tradutores (no caso de Yu Xuanji, a maioria das traduções para línguas ocidentais são em inglês, e são, frequentemente, bastante questionáveis…). Mas estimula também, claro, porque é fascinante “redescobrir” o poema em português, vê-lo recriar-se a partir de sua feição antiga e estranha.

 

RA: O que importa mais: traduzir a língua ou a linguagem do poeta?

Tradutores: Não dá para traduzir poesia sem traduzir forma. Irritam-me a quase perder o sono certas traduções de poesia chinesa clássica que são apenas conteudísticas e “frouxas”, com versos enormes, espalhados, estendidos, sem métrica… Acho válida a opção pelo verso livre, mesmo em se tratando de um original com métrica fixa. Mas verso livre não é verso lasso, balofo. Uma tradução de Ezra Pound de poesia chinesa clássica é feita em verso livre, mas disciplinado, condensado, sem gordura sobrando sobre o cinto. Poesia é condensação da linguagem, e isso é, antes de mais nada, forma. Em poesia, o conteúdo é uma função da forma. Lembro sempre do Maiakovsky, parodiando Lênin: sem forma revolucionária, não há poesia revolucionária.

 

RA: Tradução-divulgação ou tradução-arte?

Tradutores: Tentamos uma conciliação. Em princípio, é tradução-arte, mas buscamos recriar a poesia de maneira a funcionar para o leitor culto de nossa época. Que os poemas possam ser lidos e fruídos por quem vive hoje; e que a força titânica da poesia desta menina bonita, extraordinariamente corajosa e vital, que foi capaz de atravessar um milênio, possa enriquecer com fatos, ritmos e percepções de sua época a vida e a linguagem de quem hoje lê poesia em português.

 

RA: Na tradução está implícita uma dinâmica onde se perde aqui para ganhar acolá, e em sentido inverso vale o mesmo princípio; mas, na opinião de vocês, o que é inegociável nessa tarefa?

Tradutores: Encontrar o signo, que recria a voz de um poeta, alguém que esteve ali, que foi um olhar vivo e presente. A maravilha de traduzir poesia, para mim, acontece quando a gente consegue sentir a construção desta persona.  Quero dizer: quando traduzi Yu Xuanji, muitas vezes veio-me o sentido de que um poema é um signo, ele todo manifestando um sujeito lírico, substituindo, representando esse sujeito. Não um referente, um assunto (ou menos esse terceiro/exterior). O poema é o poeta, recria-o, é signo desse sujeito lírico; é ele/ela que está ali. Isso faz parte da força de sortilégio desta linguagem, algo do seu mistério. Recriar o signo não é recriar um conteúdo; é muito mais. “Vai, livro natimundo…”.

 

RA: Como se apresenta o panorama da poesia contemporânea chinesa?

Tradutores: Sem querer dar uma resposta “politicamente conveniente”, não nos sentimos autorizados a falar do panorama atual da poesia chinesa, simplesmente porque não conhecemos o suficiente, não temos a oportunidade de acompanhá-la tão de perto quanto gostaríamos. Somos tradutores de poesia clássica. Creio que é mais indicado para falar do assunto um importante poeta chinês da atualidade, que conheça e se relacione com seus pares, como o Yao Jingming (Yao Feng, um dos editores da Sibila, tradutor, poeta e professor da Universidade de Macau, que fez o livro Um barco remenda o mar junto com o Régis Bonvicino). O pouco que tenho podido acompanhar, tanto em Pequim e Xangai como, agora, em Cantão, mostra-me que existem poetas bastante ativos nas grandes cidades chinesas, diria que até mais do que verifico no Brasil. Há grupos de poetas atuantes, escrevendo, reunindo-se, fazendo performances, editando revistas independentes. Espero que cada vez mais.

Veja, minha sobrinha chinesa, de sete anos, recitou-me de cor um poema de Wang Wei, que aprendeu no jardim de infância… O poema é lindo, ela é uma gracinha, e este é um país onde a poesia é um bem cultural antiquíssimo, associado aos usos da língua diária, profundamente arraigado. Não sei se é possível a língua chinesa – e a China – sem a função poética da linguagem… Bem, creio que o Brasil e Portugal também não.

 

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 Sobre Ricardo Primo Portugal

Escritor e diplomata, graduado em Letras pela UFRGS. Está completando sete anos vivendo e trabalhando na China, primeiro em Pequim, depois em Xangai e, a partir de 2010, em Cantão (Guangzhou). Publicou: DePassagens (Ameop, 2004), Arte do risco (SMCPA, 1992), entre outros. Foi co-organizador da edição bilíngue chinês-português Antologia poética de Mário Quintana (EDIPUCRS, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido para o chinês, com o apoio do Consulado Geral do Brasil em Xangai. Em junho passado, saiu, pela UNESP, Poesia completa de Yu Xuanji, edição bilíngüe da obra da poetisa clássica chinesa (Dinastia Tang), com traduções suas, em parceria com a esposa, Tan Xiao, primeira obra completa de poeta daquele país editada no Brasil, traduzida diretamente do original chinês. (ver: http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=1267).