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SOBRE IVAN JUNQUEIRA

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Não sei onde foi, nem sei quando aconteceu. Sei que aconteceu. O lugar não era grande, tampouco pequeno. O número de participantes terá sido, provavelmente, maior do que posso imaginar. Sei que aconteceu, porque tem de ter acontecido. Trata-se, afinal, de um pressuposto lógico: não existe efeito sem causa. E certos efeitos, por suas características peculiares, pressupõem causas igualmente peculiares. O efeito em questão é o fato — que está além do campo da coincidência — de 99 em 100 comentadores de poesia escreverem hoje do mesmíssimo modo. Daí eu ter concluído, por dedução reversa, haver ocorrido uma reunião secreta sobre a maneira mais fácil e indolor de comentar sobre poesia. Porque só isso pode explicar a impressionante homogeneidade e a ainda mais impressionante hegemonia do método (vá lá): eles seguem à risca as instruções aprovadas nessa reunião. O resultado é o que venho descrevendo reiteradamente há algum tempo, em função da infindável reiteração desse fenômeno — reiteração que, afinal, fez-me deduzir sua causa. Trata-se, em suma, da paráfrase dos versos somada à ilustração da paráfrase pela interpolação dos versos parafraseados. Fórmula magistral, porque fácil, muito fácil de ser compreendida e reproduzida, o que garante o resultado desejado: levar enfim a crítica de poesia à era da padronização (outra dedução minha, agora quanto aos motivos da reunião e de seu resultado).

Finalmente, não me espanto mais ao pegar de um livro de poesia brasileira contemporânea e, seja em “orelhas”, contracapas, prefácios ou posfácios, prontamente dar de cara, e sempre dar de cara, e somente dar de cara, com a paráfrase dos versos somada à ilustração da paráfrase pela interpolação dos versos parafraseados. Trata-se, afinal, de uma norma adotada pela “classe”. Como, porém, não fui convidado para a famosa reunião deliberativa, não me sinto obrigado a segui-la. Sinto-me, outrossim, inclinado a demonstrar minha esperteza, de haver sozinho descoberto, se não o “método”, que é evidentíssimo, a secreta reunião que o formulou, sagrou e consagrou. E o faço demonstrando a ubiqüidade insofismável do fenômeno.

Antes, uma questão pertinente: qual, afinal, a relevância disso tudo? Se a questão é pertinente, sua resposta é evidente (com o perdão da rima): assim como ter havido a reunião explica a existência do “método”, a existência do “método” (que absolutamente não se limita a “orelhas”, contracapas, prefácios e posfácios) explica em parte a falência ou ausência da crítica de poesia (ao menos no sentido de análise). E a falência ou ausência da crítica ajuda a explicar a anomia e a anemia dominantes na poesia brasileira, de que é causa e conseqüência.

Voltando, portanto, à demonstração da ubiqüidade do “método”, eis que tenho em mãos a última antologia de Ivan Junqueira (O outro lado — poemas, 1998-2006, RJ, Record, 2007, 111 pp.), e eis que basta virar o livro, sem sequer a necessidade de abri-lo, para reencontrá-lo. Assim, diz na contracapa Antônio Carlos Secchin: “Se, ‘rumo ao nada’, ‘a tênue luz vai-se apagando’, pareceria perdida a aposta que o poeta fez ‘no infinito e na beleza’: de um lado a vida vã; de outro, a dissipação e a morte. O verdadeiro artista, porém, sabe que dois lados não são bastantes. Daí Ivan querer alojar-se ‘na sóbria embriaguez de um terceiro’. Declarar-se ‘apenas um poeta’ é recusar-se a tudo que não se arrisque à combustão criadora”.

Isso me lembra uma formulação mais detalhada que fiz alhures do “método”, ainda no tempo da ingenuidade, ou seja, antes de deduzir a famosa, apesar de secreta, reunião: parte-se do princípio — para ser gentil — pré-moderno (e pré-pessoano, pré-poeano, pré-poundiano, pré-tudo, enfim), de que os versos do poeta revelam, manifestam ou traduzem o que o poeta deveras pensa. É o pensamento do poeta que será, assim, através da paráfrase dos versos que o carregam, o objeto original da “esclarecedora” paráfrase — a ser, por sua vez, devidamente interpolada pelos próprios versos que carregam esse pensar: “O verdadeiro artista, porém, sabe que dois lados não são bastantes. Daí Ivan querer alojar-se ‘na sóbria embriaguez de um terceiro’. Declarar-se ‘apenas um poeta’ é recusar-se a tudo que não se arrisque à combustão criadora”. Talvez o verdadeiro artista de fato saiba que dois lados não são bastantes: eu, do meu lado, o que sei é não saber o que seja um “verdadeiro artista” (além de um verdadeiro clichê). Também não sei o que seja a “combustão criadora”. Penso num artista de circo, num cuspidor de fogo, e então percebo que se trata de uma metáfora, pois é da combustão da alma, ou coisa parecida, que se fala. O poeta é aquele que mergulha no próprio espírito etc. Estranho é que meu calendário marca estarmos no século XXI, não no XVIII ou no XIX. Além do mais, se o espírito for uma espécie de fluido etéreo, como imagino, não se corre o risco de apagar a combustão ao nele mergulhar?

Não sei. Não entendo nada de “verdadeiros artistas” ou de “combustões criadoras”. Mas entendo bem de paráfrases de versos diversos interpoladas pelos próprios, já que é praticamente impossível ler um livro de poesia sem dar por elas. Portanto, eis que a elas voltamos sem sequer sair do lugar, ou seja, o lado externo do livro de Ivan Junqueira, que, além do texto de contracapa, traz ainda “orelhas” assinadas por Eduardo Portela: “Desde o ‘Prólogo’ até o ‘Testemunho’, toma corpo e alma a trajetória inóspita e altiva daquele ‘a quem Deus deu voz e verso’, e que, escrevendo o mesmo, escreve o outro também, certamente induzido pelo espanto existencial de ‘uma viagem para dentro de si próprio e do que há além da vida e da morte’”. Alguém aí falou em paráfrases dos versos interpoladas pelos próprios? Mas, a bem da verdade, as “orelhas” do livro não se limitam a elas. Pois além das inevitáveis paráfrases, também têm muitos (e muito nobres) adjetivos. “Este novo livro de Ivan Junqueira […] é o corolário de um processo atilado e severo. […] O livro é áspero, talvez mesmo ríspido, sem supérfluas cortesias ou falsas aparências. Não se espere dele nenhum pranto e nenhuma resignação”. De fato, não espero. Ainda menos do que espíritos em chamas, não consigo imaginar livros chorando. Talvez tenhamos, afinal, uma alma divina (eu, na minha enorme pequenez materialista, sou, tristemente, um ateu), mas livros, com certeza, não têm olhos — apesar mesmo de ter “orelhas”. E “orelhas” que falam. Estas, portanto, seguem afirmando: “Nenhum arroubo despedaçado ou qualquer desperdício verbal. Sóbrio e incisivo, ele às vezes nos leva, isto sim, a escutar a voz do silêncio. Mas tudo isso de maneira muito polida”. Afinal! Afinal a maneira, o modo como se realiza essa poesia: “de maneira muito polida”. Trata-se, portanto, de um parnasiano, que segue assim à risca a profissão e a profissão de fé de Bilac:

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Ou talvez não seja afinal o caso: “É possível perceber o corte classicizante, seduzido pelo ‘enigma do que chamam ars antiqua’. Pode ter chegado perto do precipício pós-decadentista ou do canto da sereia do neoconservadorismo Mas sem nunca resvalar por qualquer deles”. Não imagino o que seja, no início do século XXI (estamos mesmo nele, não?), o “precipício pós-decadentista”. Pois para que existisse deveria haver por perto algum “decadentismo”, de modo que pudesse haver então seu “pós” e seus pós. Mas decadentismo houve no fim do século XIX e no início do XX — tendo sido em seguida, a partir de 1914, com confirmação em 1939, substituído pela barbárie. E como não existe pós-barbárie — ou a barbárie não seria o que é —, o livro não poderia mesmo “ter chegado perto do precipício pós-decadentista”, por longínquo, ou do abismo pós-barbárie, por inexistente. Tão inexistente quanto qualquer descrição minimamente objetiva da poesia do livro, pois a “orelha” não se livra, nos longos parágrafos pelos quais ainda prossegue, de recitar adjetivos: “versos crispados e contundentes, em meio ao léxico enérgico e voluntarioso…”. Livremo-nos portanto dela, e vamos afinal aos poemas.

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Poemas que não têm versos crispados e contundentes, muito menos um léxico enérgico e voluntarioso. Pois seus versos são, na verdade, medidos e comedidos, enquanto seu vocabulário é, digamos, “poético”: “A mão que escreve é aquela / cujas linhas, babélicas, / descumpriram o périplo / que lhes previa a esfera / de um trimegístico Hermes, / e que, por dolo e inércia, / deixou rolar a pérola / que arrancara ao pélago” (“A mão que escreve”, p. 19). Mas este poema, ao menos, nos ajuda a demonstrar do que é feita, objetivamente (se a objetividade ainda tem algum valor), a poesia de Ivan Junqueira: versos metrificados — neste caso, em hexassílabos —, vocabulário “poético” e rimas toantes. A respeito disso, diz Secchin, en passant, na contracapa: “Este livro confirma, em dimensão superlativa, o patamar a que se alça a poesia de Ivan Junqueira, tanto no irretocável domínio técnico do verso, exemplificado na soberba utilização da rima toante, quanto na elaboração de um denso e doído juízo sobre a existência”. De fato, tudo isso é muito doído. O que rima com duvido: duvido que a utilização da rima toante por Junqueira seja “soberba”. Não porque Junqueira não a conheça, não porque não a domine. Mas porque, na poesia brasileira contemporânea, houve há pouco um poeta cujos versos eram crispados e contundentes, cujo léxico era enérgico e voluntarioso, e cujo domínio da rima toante era, de fato, soberbo. Seu nome era João Cabral de Melo Neto. Mas se tais adjetivos se aplicam com precisão (e necessidade) a Cabral, não podem ser aplicados com pertinência (ou rigor) a Junqueira. Ele usa bem a rima toante, mas bem não é, nem de longe, sinônimo de soberbamente. Pois entre o correto e o superlativo medeia a mesma distância que existe entre o esforço e o talento, ou entre o talento e o gênio.

Entre as características objetivas da poesia de Junqueira demonstradas por esse poema faltou, porém, referir a temática. Neste caso, ela é metalingüística, como, portanto, em vários outros poemas do livro. Poemas, então, sobre a poesia, sobre o fazer poético e sobre a condição do poeta. Temática que não poderia ser mais déjà vu. Nenhum problema a priori nisto: se alguns poetas poderosos, como o mesmo Cabral, criam os próprios temas, além da própria linguagem, isto não vale absolutamente para a maioria, sequer para a maioria dos poetas mais poderosos. Camões, por exemplo, escreveu sobre o amor que consome assim como o fizera Safo milênios antes. O problema não está então tanto no tema em si como em seu tratamento — ou melhor, no seu retratamento, em mais de um sentido. Comparar aclara. Comparemos, portanto, esse “A mão que escreve” de Junqueira com o que escreveu a mão de Drummond a respeito, em “O lutador”:

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.

Creio, então, que seria o caso de levar em conta precedentes (incontáveis) como este. E levando em conta precedentes como este, os poemas metalingüísticos de Junqueira (“Prólogo”, “Elogio de Plínio”, “O mesmo: o terceiro”, “O testemunho”) nada acrescentam ao tema, muito menos à forma de tratá-lo. Ao contrário. Seu tratamento, tanto conceitual quanto formal, parece ser anterior a muitos poemas que lhe são muito anteriores. Logo, mais do que mero déjà vu, trata-se de verdadeiro anacronismo — que se traduz na quantidade e, principalmente, na “qualidade” dos clichês que permeiam o livro, e não são exclusivos dessa ou daquela temática: “regresso às ermas praias da infância”, “mas eis que essa nesga azul de oceano” (p. 33); “Ó rios de minha vida” (p. 48); “já se perdeu nas brenhas da memória” (p. 63).

Não computo, porém, em tal anacronismo, o uso em si das formas e das medidas fixas, incluindo o próprio soneto. Pois passado o momento vanguardista, e com o fim concomitante das utopias, o único ismo sobrevivente é o historicismo. Umas das faces menos percebidas da “sociedade da informação” é que tal informação inclui o passado. O historicismo da cultura contemporânea implica, portanto, numa espécie de presenteísmo — tudo ao mesmo tempo agora. No caso particular da poesia brasileira contemporânea, três poetas muito diferentes mas a seu modo igualmente relevantes, Glauco Mattoso, Bruno Tolentino e Nelson Ascher, de certa forma verdadeiros antípodas, voltaram-se consistentemente para o soneto, o primeiro com um viés escatológico-pop, o segundo com matizes a um só tempo classicistas e modernistas, o terceiro com um caráter marcadamente sintático de origem experimentalista.

No caso de Junqueira, porém, é o anacronismo que prevalece (e não, portanto, porque congênito ao uso em si das formas fixas). Logo, o mesmo vale para os outros dois temas dominantes do livro ao lado da metalinguagem, o tempo e o amor. Com uma única exceção. Antes de abordar a exceção, porém, abordemos a regra.

A regra, no caso do tema do amor, está bem exemplificada pelo soneto “Eu te amo tanto” (p. 69). Sim, o título é mesmo este. Não bastasse ser este o título, este também é seu primeiro verso, acrescido ainda, como se não fora o suficiente, da palavra peito: “Eu te amo tanto que não pode o peito…”. E o que não pode o peito? “Conter dentro de si amor tão vasto”. O soneto segue então nesse diapasão para culminar, coerentemente, não com uma chave de ouro, mas com um chavão de ouropel: “E assim é porque a mim tocou-me a sina / deste amor que me cega e me ilumina”.

A exceção quanto ao tema do amor, que é também uma exceção quanto ao conjunto do livro, por ser um poema em que tudo funciona, chama-se “Duas ou três coisas” (p. 23). Não é a primeira vez, aliás, que me deparo com tal fenômeno, de um poema que se constitui num caso de exceção em seu próprio livro. Não se trata de vício de leitura ou predisposição do crítico. Índice disso é uma observação feita a mim pela poeta Josely Vianna Baptista, segundo a qual ela tem relativa dificuldade de conceber, hoje, uma antologia rigorosa de poetas contemporâneos que não fosse muita magra, sendo então mais factível pensar numa antologia de poemas. Nesse poema, em todo caso, tudo funciona, a começar da própria forma soneto. Pois um soneto é, de certa forma, um grande silogismo, em que a primeira estrofe funciona (não por acaso) como premissa, a segunda como desenvolvimento, e os tercetos como corolário. Essa também é uma forma adequada, portanto, para a descrição, o retrato, que não deixa de ser um silogismo descritivo, ou uma síntese verbal-imagética da personagem em questão. E aqui se trata de uma descrição. E como se trata da descrição de uma mulher, ela (a descrição) é, ao mesmo tempo, comum e rara, como há de ser a mulher que valha ser descrita. Comum, pois se não o fosse não teria as características definidoras de uma mulher; rara, pois do contrário não possuiria as características delineadoras de uma mulher em especial. Daí o poema ser todo estruturado em apenas duas rimas, que se alternam, uma muito comum, em ela, outra muito incomum, em ume. A raridade da segunda, porém, não compromete sua fluência, sua eufonia e sua beleza leve. Tampouco as comprometem as images/stories gráficas, como “o tempo além do tempo que só nela / navega mais que o peixe no cardume”, ou as recorrências internas, como a grande quantidade de palavras em u (que ecoam a rima em ume) e em f (que sibilam a tessitura sonora do soneto), duas, seu, flutua, duende, ampulheta, sofreu, infundiu etc., e mesmo uns poucos arcaísmos explícitos como alfanje:

São duas ou três coisas que eu sei dela,
e nada mais além de seu perfume.
Sei que nas noites ermas ela assume
esse ar de quem flutua na janela,
como o duende fugaz que em si resume
um tempo que a ampulheta não revela:
o tempo além do tempo que só nela
navega mais que o peixe no cardume.
Sei que ela traz nos olhos esse lume
de quem sofreu e a dor tornou mais bela,
pois o naufrágio lhe infundiu aquela
vertigem que do alfanje é o próprio gume.
Sei que ela vive no halo de uma vela,
e queima, sem consolo, em minha cela.

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Em contraste, o tratamento dado ao terceiro tema dominante do livro, o tempo — incluindo os subtemas do envelhecimento e da morte —, não comporta outro qualificativo que não constrangedor. Veja-se, por exemplo, o final, logo, a culminância, de um poema relativamente longo intitulado, explicitamente, “O outro lado” (pp. 91-3): “Diz-me: o que haverá do outro lado? / A eternidade? Deus? O Hades? / Uma luz cega e intolerável? / A salvação? Ou há o nada?”. Não tenho a mínima idéia, mas em compensação tenho a plena certeza de que poucas vezes vi tantos clichês em tão pouco espaço. Para piorar, este é o poema-título do livro. Para piorar ainda mais, tudo nele, a começar da própria explicitação do tema, passando pelo modo interrogativo, faz lembrar o mais famoso monólogo da literatura, o de Hamlet na primeira cena do terceiro ato, que começa com “To be ore not to be, that is the question”, e cujo objeto, despercebido por grande parte do público, é o suicídio, ou seja, a ida para “o outro lado” (aqui em tradução parcial de minha humilde lavra, e por acaso na mesma medida, o octossílabo, do poema de Junqueira):

Morrer, dormir. Dormir! Talvez,
Sonhar. Eis a dificuldade.
No sono da morte que sonhos
Virão, solto o tufão da vida,
Então cismamos: e a desgraça
Desta longa vida está feita. […]
Quem traria tão grandes cargas,
Gemer, suar a dura vida,
Se não temesse um além da morte —
Terra indescoberta, da qual
Nenhum viajante retorna —,
A perder a vontade e impor
Sofrer nosso mal a lançar-nos
Noutro de que sabemos nada?

Por falar em Hamlet, outro aspecto constrangedor do livro é sua insistência em se utilizar das mais insuportavelmente conhecidas images/stories e personagens da literatura ocidental, o mar de Ulisses, a ilha de Calipso, o tecer de Penélope etc., e sempre de modo “ingênuo”, ou seja, “ignorando” o fato de que se trata de coisa tão conhecida quanto o andar ereto, que não pode, portanto, ser retomado de maneira realmente ingênua. Logo, trata-se de uma falsa ingenuidade, de uma falsa “naturalidade” de seu uso, que é verdadeiramente kitsch: “Não é Ítaca o que avisto / no espelho das águas vítreas, / nem tampouco o mar de Ulisses / ou de Penélope a linha / com que, sem trégua, tecia / sua tela, e a desfazia. / Não é, também, de Calipso, / aquela outra, a de Ogígia, / onde o Odisseu sucumbiu / aos sortilégios da ninfa” (“A ilha”, p. 41); “dos ventos do mar vinhoso, / onde Ulisses, no retorno, / viu porcos, ciclopes e ogros” (“O novo”, p. 96); “Sobre o Arno, o grave e humilde / Ponte Vecchio se equilibra. / Ali, Dante viu Beatriz” (“O rio”, p. 50); “Vai a passo Dom Quixote / em seu magro Rocinante. / Sancho Pança o segue a trote” (“Dom Quixote”, p. 71); “ao que restou de sua alma / que um dia vendeu ao diabo, / como na lenda de Fausto” (“O náufrago”, p. 45).

Kitsch também é, muitas e muitas vezes, o vocabulário, fato que, aliás, já referimos em outros termos. O que justifica retomá-lo é o exemplo cabal encontrado nesse mesmo poema que fala, ai, da alma vendida ao diabo por Fausto (eu venderia tranqüilamente a minha, se alguém pagasse algo por ela, em troca apenas de não ter de ler certas coisas): “Sem bússola ou carta náutica, / leme, sextante, astrolábio, / nada em direção ao nada, / ao que restou de sua alma…”. Aqui, o kitsch do vocabulário não está tanto em seu “preciosismo” explícito (como nos casos de pélago, estruge, hirto, nesga, panegírico, fastígio, anfractuosa etc.), mas em sua completa extemporaneidade: bússola, sextante, astrolábio, quando até telefones celulares têm GPS? Depois reclamam que o público, esse ilustre desconhecido, não se interessa por poesia.

Insistência em se utilizar das mais insuportavelmente conhecidas images/stories e personagens da literatura ocidental, dissemos: pois há, paradoxalmente, algo verdadeiramente original nesse livro. Trata-se de uma nova categoria do kitsch, o kitsch por ausência. Nova e inovadora, pois o kitsch costuma se caracterizar, ao contrário, pelo excesso. O kitsch por ausência se consubstancia, aqui, por um certo mundo de naftalina que habita a poesia de Junqueira, ou que essa poesia habita. Desse “mundo” está ausente tudo que marca o mundo contemporâneo. Pense-se em algo, e esse algo não estará no livro, nem nas entrelinhas, nem mesmo como ausência (o que dá a seu título ressonâncias imprevistas). Há, portanto, a própria ausência da ausência do mundo. Por exemplo, se refiro o terrorismo internacional, como tantos eufemisticamente fazem, há aqui a presença, apesar de sua ausência, do adjetivo islâmico, aliás a razão de ser do eufemismo, porque não existe de fato um terrorismo internacional, e sim um terrorismo islâmico internacionalmente atuante. Pois o mundo contemporâneo, incluindo o terrorismo islâmico em particular e o islã em geral, e qualquer aspecto ou manifestação da globalização, a crise ambiental, a crise da esquerda, a crise energética, a crise da utopia, a crise da razão, a crise da modernidade, a crise do verso, qualquer crise, a barbárie, a história recente, o Holocausto, a sociedade multicultural, o multiculturalismo como ideologia, o binômio segurança versus liberdade, o medo, qualquer medo (real, pois há no livro os velhos medos “metafísicos”), as novas mídias, as novas epidemias, as novas tecnologias, a nova física, o princípio da incerteza, o fim das certezas, ou outra coisa qualquer, material, circunstancial ou conceitual, que por acaso faça parte do mundo real, a fragmentariedade, a morte das cidades, a ascensão da China, a subida dos mares, inexistem completamente no livro, que flutua, portanto, numa espécie de limbo além do tempo e do espaço (fato tanto mais surpreendente por ser Junqueira um tradutor de Eliot, o autor de The waste land). Não deixa, em todo caso, de ser uma espécie de feito.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).