1.
“Meus quatro avós vieram da Rússia”. Era a frase padrão que eu usava para explicar a origem do meu nome e a minha própria origem, demandada quase que invariavelmente assim que me apresentava a alguém. Mas meus avós não vieram da Rússia.
Uma das primeiras contradições surgiu com minha avó paterna, que mal disfarçava um esgar de desdém salpicado de aversão quando perguntada se era russa, tanto pelo nome quanto pelo português carregado de sotaque. “Eu não serr russa!”. Ela não “serr” russa porque era judia, eu pensava (e por ser judia temia os russos, ou seja, seu histórico e difuso antissemitismo, aliás comum aos ucranianos; isso mudaria depois da Segunda Guerra Mundial). Mas ser judeu não é uma nacionalidade. E se ela não era russa, qual era então minha origem, digamos, geopolítica?
Eu sabia a resposta: União Soviética. Mas dizer “Meu sobrenome é soviético”, quando perguntado sobre ele, não soava convincente.
Não soava convincente porque “União Soviética” não se referia a uma nação, a uma etnia, a um povo, a uma cultura, a uma origem, mas a uma entidade de caráter imperial. Eu não pensava nestas palavras quando criança. Mas sentia que meu nome não podias ser “soviético”. Portanto, russo, sinônimo de soviético nas bocas da minha família, dependendo do texto e do contexto (com a exceção mais do que explícita da minha avó). Em suma, meu nome era russo porque soviético. Apesar de, na verdade, ser ucraniano.
Por que, afinal, a resposta não era então simplesmente “ucraniano”? Porque a Ucrânia era parte da União Soviética. E se “russo” podia servir de sinônimo de “soviético”, “ucraniano” não.
“Meus quatro avós vieram da Rússia”. Ainda que, na verdade, da Ucrânia. Mais exatamente, de Kiev e Odessa.
Minha resposta infantil a uma pergunta que devia ter uma resposta fácil, porque clara, ou clara porque fácil, mas que não era clara nem fácil, é um microcosmo das relações históricas e geopolíticas entre a Ucrânia e a Rússia.
2.
César, em russo, se diz Czar. O Czar era o César do império russo. E seu título, na verdade, era “Czar de Todas as Rússias”. De início eu não entendia a que isso se referia ou podia se referir. Havia mais de uma Rússia? Ou a Rússia era tão grande que não podia ser contida ou compreendida em um mero singular? Havia mais de uma Rússia. Uma era tão grande que se chamava simplesmente Rússia, e tinha por apelido “Mãe-Rússia”, a terra-mãe do povo russo, da alma russa, fosse lá isso o que fosse, considerando que, desde pequeno, sempre fui ateu (porque assim criado por meus pais idem). As outras Rússias eram a Rússia Branca e a “Rússia Fronteiriça”. A primeira é conhecida por Bielo-Rússia (hoje, Belarrus). A segunda, Ucrânia.
A “questão histórico-existencial” sobre a Ucrânia, que Vladimir Putin manipula de forma grosseira em seus discursos idem, refere-se apenas à independência política da Ucrânia ao longo da história. O que não se confunde com a existência étnico-linguística da nação ucraniana.
A Ucrânia existe desde sempre. Ao menos no que se refere à história russa. Porque todas as Rússias nasceram na Ucrânia, mais exatamente, em Kiev, primeira cidade e primeiro centro cultural e geopolítico dos eslavos do norte (os do sul são – ou eram – conhecidos como “eslavos do sul”, ou iugoslavos).
A Ucrânia moderna tornou-se um Estado-nação independente em 1991, no contexto do estabelecimento e reconhecimento internacional de outras dezenas de Estados-nação nascidos da fragmentação do império soviético após a queda do Muro de Berlim (como Belarrus, Cazaquistão, Geórgia etc.).
À exceção das exceções, como Estônia, Letônia e Lituânia, parte importante desses novos Estados não se tornaram democracias, segundo o modelo ocidental, mas autocracias, seguindo o modelo russo. Não, obviamente, por não haver outros modelos à disposição, mas por não haver disposição da Rússia, a madrasta de todas as Rússias, de permitir sua adoção.
A Rússia jamais teve um governo eleito, um governo representativo. Depois da queda dos Romanov em 1917, e de sua monarquia absolutista, sucederam-se no poder, ao logo do século XX, Lênin, Stálin, Kruschev, Brejnev, Andropov, Gorbatchev, Yeltsin e Putin (com um pequeno intervalo de meses, entre fevereiro e outubro de 1917, do governo Kerenski).
Putin, há décadas no poder, não é, portanto, o presidente da Federação Russa (nome oficial do país), mas seu ditador. O fato de ser um ditador referendado, ou seja, que se “submete” a eleições periódicas, enquanto não-periodicamente caça seus opositores e censura a mídia, não altera seu status: ser um ditador referendado, sucessor direto do último líder soviético, que governa ditatorialmente a Federação Russa desde o século XX.
O marxismo vulgar – a vulgarização da obra de Marx – e os marxistas vulgares creem que tudo se resume à economia e que nada se centra na vontade de um homem. A primeira asserção não é verdadeira, porque existe a política (e porque Estados possuem valores, além de interesses); tampouco é verdadeira a segunda, ao menos enquanto existirem Estados autocráticos.
A Síria de Assad não vive nem depende apenas da vontade de Assad. Mas a Síria de Assad vive e depende mais da vontade de Assad que de qualquer equivalente na liderança de países com governos representativos. É da própria natureza do governo representativo a divisão (e o enfraquecimento) do Poder uno em poderes múltiplos e, portanto, menores. A Síria é governada por um Poder uno, o de Assad e seu pequeno grupo. A Rússia é governada por um Poder uno, o de Putin e seu pequeno grupo.
Putin não representa, em nenhum sentido, a vontade política da população russa. Tal população jamais foi consultada, de fato, a respeito. A Rússia é hoje governada por uma máfia, por um grupo mafioso, no sentido literal (incluindo o roubo como uma das principais atividades – daí ser dita uma cleptocracia), formado por ex-altos oficiais da KGB e pelo famosos e infames oligarcas, liderado por um general da mesma polícia política soviética chamado Vladimir Putin.
A atual situação no Leste europeu, ou seja, a guerra de escolha, de agressão e de conquista da Rússia contra a Ucrânia, pode ser resumida de muitas formas, e uma delas é esta: trata-se do resultado da existência de uma poderosa autocracia (poderosa dentro da Rússia e poderosa porque russa) em um tempo e em um mundo cuja complexidade não permite mais conviver com autocratas, que eventualmente podem se comportar como um rinoceronte em uma loja de louças.
Nesse sentido tanto mais amplo e geral quanto mais verdadeiro, as “razões” alegadas pelo autocrata russo não pedem rechaço, porque não comportam consideração: em primeiro lugar, são falsas (a Ucrânia jamais ameaçou ou poderia ameaçar a Rússia, em qualquer sentido, mesmo entrando eventualmente para a OTAN, por causa do armamento nuclear russo; tampouco a Ucrânia é uma ameaça aos russos étnicos do Donbass, protegidos pela grande mãe-russa – e cuja rebelião foi criada, fomentada e mantida pela Rússia); em segundo lugar, ainda que fossem verdadeiras ou, no mínimo, críveis, tais “razões” não justificariam a enormidade da agressão russa à Ucrânia e à ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial. Há outros meios (mais uma vez, a mentira russa de que foram tentados, e tentados por tempo suficiente, é uma mentira; basta dizer que o tempo não foi suficiente, se não levou a qualquer resultado, restando então a guerra).
O atual confronto provocado pela Rússia inclui vários confrontos. Entre eles, o da Rússia contra a Ucrânia, visando sua submissão; o da Rússia contra a Europa, visando aumentar o que o grupo governante russo vê ou via como sua fraqueza crescente; o da Rússia contra a ordem internacional, idem; o da autocracia como modelo contra o modelo da democracia representativa. Por fim, o confronto entre a contemporaneidade “líquida” de Bauman e o atraso compacto do “despotismo oriental” russo.
A Rússia deve ser derrotada da maneira cabal, seja por que meio for, excluída, infelizmente, a via militar, por impedimento nuclear; porque a derrota russa significará a vitória de todos os elementos a ela contrapostos nesses pares antagônicos.
O melhor e mais completo final para esse drama histórico é uma nova Revolução Russa. Não a de outubro, mas a de fevereiro; eliminando não apenas mais um autocrata russo do comando do país, mas a autocracia russa de sua história. O que não exclui, ao contrário, a morte do último autocrata.
PS. Em meio à mais completa vulgarização dos termos fascista e neonazista, a começar pelo próprio Putin, que fez as acusações mais estapafúrdias sobre o presidente eleito da Ucrânia, o judeu Volodimir Zelenski, faz-se necessário registrar que o principal ideólogo de Putin, notadamente em política externa, Alexandr Dugin, é, de fato e assumidamente, neofascista:
[Dugin] se inspira em sua ideia de “quarta teoria política”: a ideia de que a democracia liberal (considerada por ele como a “primeira teoria”) seria uma ferramenta de dominação estadunidense. E para enfrentá-la, seria necessário conciliar a segunda e terceira teoria (socialismo e fascismo), fundando assim um novo modelo de fascismo adaptado ao século XXI.[1]
[1] “Alexandr Dugin: o guru tradicionalista que influencia Vladimir Putin”. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/alexandr-dugin-o-guru-tradicionalista-que-influencia-vladimir-putin/. Acesso em 03-03-2022.