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Um guisado de meias ideias sobre o Manifesto antropófago

Benedito Nunes[2] no texto II “A metafísica bárbara”, que integra a sua larga introdução à obra Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, começa por considerar os propósitos de Oswald de Andrade quanto ao uso da palavra “antropofagia” mais como se fosse uma espécie de diatribe ou provocação do que qualquer outra coisa. Nunes, inclusive, custa a se referir à expressão “antropofagia” propriamente como um conceito, ainda que em algum momento a nomeie pelos termos “metáfora”, “diagnóstico” e “terapêutica”.  De todo modo, através desse expediente o teórico ameaça retardar uma interpretação mais efetiva sobre as intenções de Oswald. Por outro lado, Benedito Nunes talvez prefira observar, como forma de preparação do terreno, outras implicações ou vislumbre outras veredas para o entendimento que se tem a respeito do funcionamento de um conceito. Avento essa possibilidade porque em outro texto onde Nunes investiga as relações entre filosofia e poesia[3], encontro a afirmação de que os filósofos são, na verdade, grandes criadores de metáforas ou imagens.

Fugindo ao lugar comum segundo o qual uma das tarefas da atividade filosófica seria a de criar e/ou rever conceitos, o comentarista reivindica para os pensadores um caráter poético: Heráclito defende que tudo muda através da imagem do movimento das águas de um rio; Platão inventa a metáfora da caverna para debater o conhecimento verdadeiro; Descartes, através de meditações que, segundo ele, servem para entreter o leitor, suspeita que o real é a criação de um demônio enganador. Em suma, a tradição filosófica ocidental, em diversos momentos do seu percurso de sentido, se aproximaria dos limites do imagético, do literário. Portanto, se eu quiser dar crédito às considerações de Nunes, Oswald estaria pensando por imagens ou dando seguimento a esse esforço filosófico comprometido com o analógico, pois elege a metáfora e o paródico como eixos de um discurso metafísico nada normativo que pretende explicar determinados modos de ser e estar no mundo, formados independentemente e a contragosto dos modelos europeus de vida e conhecimento.

Se o Manifesto antropófago estivesse a serviço de uma falação de caráter conceitual em sentido estrito, sua estrutura seria mais lógica e circunspecta; e ao menos o texto não seria acusado de traição a certas formas filosóficas tradicionais. O crítico Benedito Nunes, graças ao apetite paródico incrustado ao Manifesto, admite que o autor de Serafim Ponte Grande (1933) teria usado a metáfora da antropofagia antes de tudo como “pedra de escândalo”, com o intuito de ferir a sensibilidade do leitor preso ao senso comum e, por consequência, levando à sua lembrança a desagradável imagem do canibalismo.

O comentador, felizmente, depois se redime desse começo um tanto desconfiado (estratégico parece ser o termo mais justo) com o gesto de vanguarda oswaldiano. No entanto, Benedito Nunes graças a isso talvez tenha fixado uma senha, um dispositivo de suspeição com relação aos limites e chances tanto das interpretações dos analistas, quanto do pensamento do poeta que, de resto, jamais se esquivou de reconhecer sua gana burlesca nem sua condição de polemista reativo, pois, em muitos casos, se dava em espetáculo disparando, a torto e a direito, provocações levianas surgidas no calor do debate. Em outras palavras, tomando todos os cuidados exigidos pelo respeito crítico da análise, as hipóteses sobre a antropofagia do escritor e poeta Oswald de Andrade não devem ser objeto nem da cerimoniosa caridade interpretativa nem da irritadiça suspeição intransigente. Talvez o poeta, em sua aventura ensaística, não tenha dimensionado muito bem as consequências de suas intuições – o que não é nenhum problema, afinal, “um lance de dados jamais abolirá o acaso” (Mallarmé dixit) –, é possível que esse carnavalizado pensamento antropófago, desentranhado de outros âmbitos epistêmicos seja, quem sabe, mais revolucionário do que o próprio sujeito empírico Oswald de Andrade; pode mesmo tê-lo ultrapassado largamente. Com efeito, Oswald, apesar de, aqui e acolá, ter se comprometido com a autocrítica e a autoironia acerca de sua atividade intelectual como representante da elite do seu tempo, não logrou abandonar com firmeza nem seus privilégios nem seus enjoamentos de classe. Em que pese o apetite pela alteridade, princípio do antropófago, e a defesa de um resgate revolucionário do matriarcado, o poeta protagonizou episódios de racismo antinegro e de machismo explícito.

As contradições e a elasticidade da ideia de antropofagia, presentificada no discurso do poeta – dublê de filósofo canibal –, hesitam ou oscilam entre a tradição totêmica e a blague moderna, e, aqui e ali, são sublinhadas na introdução de Nunes. Aos poucos o que é descrito como mero sarcasmo – não obstante tal visada não seja inteiramente despropositada –, isto é, o espicaçamento das negações da moral burguesa hipostasiado numa só negação, a da prática do canibalismo, misto de insulto monstruoso e sacrilégio, vai se organizando em crítica pertinente à instrumentalização colonial da esfera político-religiosa fundadora de nossa sociedade patriarcal e sua repressão sexual seletiva ou de fachada. Para chegar até esse estágio do problema a retórica do Manifesto antropófago, objetivando a perturbação da audiência e suas convicções, reforça os temores do senso comum relativos ao banquete antropofágico. Benedito Nunes ressalta que a palavra “funciona como engenho verbal ofensivo, instrumento de agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo, que distende, quando manejada, as molas tensas das oposições e contrastes éticos, sociais, religiosos e políticos, que se acham nela contidos”.

Oposições e contrastes. Assim se organiza o singular logos antropofágico de Oswald de Andrade. Oposições e contrastes conjugados segundo a analógica do trocadilho. O centro irradiador das forças semânticas do Manifesto tem sua origem na célula verbal Tupy or not tupy, that is the question, isso de acordo com a interpretação de Benedito Nunes. O dilema ontológico-existencial hamletiano é vertido na forma dessa alternativa jocosa. Se todo o arcabouço estético e especulativo (em sentido amplo) da revolta antropófaga deriva dessa divertida torção de linguagem, parece razoável admitir que a filosofia oswaldiana se dá a contrapelo da necessidade de satisfazer a razão. Como um típico nietzschiano – ou dando um passo mais arriscado à frente –, Oswald, antes esculhamba a razão do que a coloca sob suspeita. Como afirma Nunes, qualquer tentativa de exposição do “conteúdo do Manifesto antropófago, que é o avesso do discurso lógico”, precisa ser conciliada com as imagens e os trocadilhos constitutivos de sua forma discursiva ou literária.

Ao encarecer os insumos poéticos ou literários no pensamento antropófago de Oswald de Andrade, não defendo uma análise menos rigorosa ou menos atenta no sentido em que esses predicados de leitura deveriam ser reservados exclusivamente a empreendimentos tributários de vertentes filosófico-científicas nas quais o encanto e a fruição, a princípio, ficam em segundo plano. O fato de o Manifesto antropófago ser formalmente mais poético ou coisa que o valha não é indicativo de qualquer tipo de vantagem ou de desvantagem; esse fato apenas lhe confere uma característica em detrimento de outras. Portanto, sua leitura envolve um espaço de performance onde o analista hesita constantemente entre a seriedade e o riso, entre a inquietação ontológica e a galhofa dadaísta, entre o eu que se reinventa enquanto paródia do outro e as identidades fronteiriças. O Manifesto antropófago requer uma interpretação que não tema a suspensão dos juízos; um ceticismo de ordem menos moral do que estética.

Essa estratégia de abordagem cética ou não caridosa é aplicada por Benedito Nunes quando ele revela que Oswald procede a uma generalização indevida no que respeita a antropofagia ritual. O poeta tinha conhecimento de que “nem todo canibalismo assume esse aspecto e nem é o canibalismo uma prática universal entre as sociedades”. No entanto, Oswald cria a hipótese explicativa de um “estado de natureza” antropófago com o objetivo de justificar sua revolução caraíba. Essa revolução, de pressupostos canibalescos, haure suas significações, segundo o Manifesto, no paganismo tupi e africano, na medida em que rompe com as interdições morais tanto do patriarcado quanto do capitalismo e põe em ação a chance de outra sociedade brasileira.

A nova sociedade perde homogeneidade progressivamente através da prática da rebeldia individual que quer se atualizar no reconhecimento do outro como uma instância comunal de si. A perspectiva utópica contida no Manifesto antropófago exigiu de Oswald a generalização ou a universalização da metáfora da antropofagia como se fora uma vontade de poder ou uma potência de vida de que a humanidade viria se servindo desde sempre com vistas a expiar e purgar todas as formas de violências e repressões (individuais e sociais) perpetradas pelas experiências culturais e políticas ao longo da história.

O Manifesto antropófago é poético por tomar partido, por escolher um lado e ser dissensual; toda crítica é parcial de acordo com Baudelaire. Em termos contemporâneos, o Manifesto antropófago é filosófico por inventar novos conceitos, por não desprezar os jogos de linguagem na economia da investigação especulativa. Analogamente a Wittgenstein – ou forçando um pouco a barra –, Oswald de Andrade também concebeu a filosofia como uma atividade divertida. O legado desse divertimento canibal para a cultura brasileira teve consequências importantes justamente por ter negado, em alguma medida, a noção – a condenação – de que somos o resultado do encontro de três raças tristes. Entretanto, a máxima pau-brasil segundo a qual “a alegria é a prova dos nove” é muitas vezes deprimida quando confrontada com a nossa história. A galhofa e a gargalhada bárbara do Manifesto antropófago não se configuram como a superação dialética dessa aparente tristeza originária, mas servem apenas como hipótese alternativa de leitura do nosso processo civilizatório. O futuro é uma conquista. A utopia da cultura canibal despreza todo e qualquer tipo de essencialismo que esbarra em si mesmo, que se basta a si mesmo. Nem a tristeza nem a alegria definem exclusivamente o pensamento antropófago.

Leia mais

http://sibila.com.br/english/anthropophagic-manifesto/2686

http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/a-ultima-entrevista-de-oswald-de-andrade-a-flavio-porto/3635

http://sibila.com.br/novos-e-criticos/morte-e-vida-da-antropofagia/2948

 

[2] Andrade, Oswald de. Obras Completas VI (introdução de Benedito Nunes). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.  pp xxv-xxxv

 

[3] “Poesia e Filosofia: uma transa”, publicado em Ensaios filosóficos (organização Victor Sales Pinheiro), São Paulo, Martins Fontes, 2010.


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com