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O negócio dos livros

           O ensaio O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você , de André Schiffrin (1935-2013), termina com a seguinte cena: o autor é convidado, no início dos anos 2000, para falar aos seus colegas da prestigiosa Universidade de Yale no encontro em celebração ao quadragésimo aniversário de formatura. Diante de advogados, médicos, acadêmicos e homens de negócio em geral bem-sucedidos, grande parte deles ricos, Schiffrin, que dedicara toda sua vida profissional à edição de livros, discorre sobre as mudanças que ocorreram no mercado editorial ao longo dessas quatro décadas. Seu raciocínio gira em torno de um eixo fundamental: a importância excessiva dada ao dinheiro e a disseminação da lógica corporativa afetam todos os âmbitos da sociedade e têm especial impacto na circulação dos livros e das ideias que eles contêm, o que, em última instância, coloca em risco a própria existência da sociedade democrática.      Encerrada a palestra, o autor recebe generalizadas manifestações de solidariedade. Médicos dizem se ocupar mais com planos de saúde, companhias de seguro e hospitais do que com a saúde dos pacientes; advogados veem seu valor ser medido pela quantidade de dinheiro que levam a seus escritórios; acadêmicos se dizem sufocados pelas pressões crescentes por lucro nos campi universitários, cujos resultados são o fechamento de departamentos e a redução, segundo os critérios do mercado, do número de aulas e de disciplinas. Pois é para estimular a discussão desse fenômeno em sua abrangência e alertar para seus perigos – evidentemente com enfoque nos impactos que ele produz no chamado mercado de ideias – que o editor Schiffrin tornou-se também ele um autor de livros em seus últimos anos de carreira, num período que se estende, aproximadamente, da época do encontro com os colegas de Yale até sua morte no fim de 2013.

          O livro de que ora nos ocupamos, publicado originalmente em 2000, é o primeiro passo dessa nova empreitada profissional, associada, registremos, a uma incansável atividade de palestrante, que fez de Schiffrin um sujeito sempre disposto a viajar o mundo para debater suas ideias, sugerir alternativas a editores acuados e confrontar seu diagnóstico, originalmente inspirado no estado de coisas do universo editorial anglo-saxão, com as realidades locais com as quais se deparava. Escrevendo na virada do século XX para o século XXI e dando conta de mudanças que remontam ao início de sua atividade como editor , ele acreditava que o processo de expansão das grandes corporações que ocorria nos mercados americano e inglês – marcado por fusões pouco criteriosas de editoras, concentração da propriedade dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos e restrição da independência editorial ante as exigências do marketing e da lógica empresarial de aumento dos lucros – configurava um padrão que tendia a se repetir nos demais países. Os exemplos apresentados de mudanças semelhantes em outros mercados editoriais europeus já davam credibilidade às previsões do autor, e hoje, quinze anos depois, quando mesmo o mercado editorial brasileiro é atingido pelo fenômeno, fica impossível não reconhecer a precisão das mesmas. O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você lê é composto por seis capítulos que resultam num interessante misto de panfleto político, ensaio e livro de memórias, com o balanço, marcado por indisfarçável e justificado orgulho, de uma vida dedicada à edição de livros – atividade, ressalta o autor, determinante para os rumos da coletividade por seu valor cultural e político, embora se encontre em uma encruzilhada no alvorecer do século. Uma vez que é impossível dar conta da riqueza de detalhes presente no livro em análise numa curta resenha, não nos deteremos em cada um dos capítulos em particular. Como ilustração, a Pantheon Books, editora americana a que Schiffrin dedicou quase trinta anos de trabalho, foi comprada, já em 1961, pela Random House. Um ano antes, a mesma Random House havia comprado a respeitada editora Alfred A. Knopf.  

          Tentaremos mapear as linhas mestras da argumentação de Schiffrin. Pode-se dizer que o ensaio em questão tem, esquematicamente, quatro partes fundamentais. Na primeira delas, o editor franco-americano mistura a memória familiar à história da atividade editorial nos Estados Unidos. Filho de Jacques Schiffrin, lendário editor francês de origem judaico-russa, André Schiffrin recupera aqui a trajetória de seu pai, que deixa o continente europeu em definitivo no entreguerras para fugir ao cerco nazista. A ascendência judaica e a ocupação com atividades intelectuais eram características de outros tantos europeus que se estabeleceram em solo estadunidense e passaram a ser protagonistas do processo de complexificação e diversificação do mercado editorial do país. Nesse contexto, surge a Pantheon Books, editora criada pelo alemão Kurt Wolff, que encontra em Jacques Schiffrin um parceiro de primeira hora. É a ela que, anos mais tarde, o filho deste último dedicará vinte e oito anos de trabalho. Estamos em um período heroico do mercado editorial, em que se quer usar os livros como armas para influir nas grandes questões nacionais e mundiais, com a confiança de que boas ideias encontrarão necessariamente seus leitores. A escalada rumo à Segunda Guerra Mundial reforça essa convicção e galvaniza a opinião pública. Desde a década de 1930, ganha especial fôlego a produção de livros de bolso – cuja tradição em solo norte-americano tem suas origens ainda no século XIX –, pois havia então “a crença de que as pessoas comuns podem ler obras verdadeiramente desafiadoras e ousadas, e deveriam ser capazes de encontrá-las em qualquer farmácia” (SCHIFFRIN, 2006, p.46)

          O entusiasmo com a dimensão cidadã da atividade editorial, que faz dos livros os melhores comentaristas de questões contemporâneas, ainda marca o segundo momento das reflexões de Schiffrin. Trata-se do período em que ele e outros jovens editores ganham autonomia para levar adiante a obra inspiradora dos fundadores da Pantheon, nas décadas de 1960 e 1970. Narrando os acontecimentos desde a perspectiva de um intelectual que se diz liberal e progressista, o autor vê no universo mental gerado pela Guerra Fria e na ebulição por que passam os Estados Unidos – com mudanças culturais, luta por direitos civis e a oposição a intervenções em países estrangeiros, como a Guerra do Vietnã – estímulos para que a Pantheon passasse por bons momentos. Havia, segundo o autor, um claro consenso de centro-esquerda no mercado editorial norte-americano, embora ele localize também nessas décadas a escalada do pensamento conservador e de forças cada vez mais organizadas contra a publicação de livros contestadores, com o reforço de movimento já realizado pelo macarthismo nas décadas anteriores. São estimulantes as iniciativas do autor, que datam desse período, no sentido de romper com o notório isolacionismo intelectual americano, aproveitando-se de contatos no mercado editorial europeu, em especial o inglês, e abrindo os olhos para reflexões estimulantes provenientes da América Latina e da Ásia. Por outro lado, o editor acreditava que era tarefa sua buscar autores para livros ainda não escritos, o que fez com que propusesse uma série de projetos a colaboradores cuidadosamente escolhidos, dando conta de questões até então recalcadas pelo debate público – como a íntima conexão entre raça e pobreza nos EUA. Para Schiffrin, num ponto que nos parece crucial, os catálogos da Pantheon e de algumas outras editoras, mais do que se beneficiar de mudanças no espírito da época, foram capazes também de produzi-las. Segue-se a isso o terceiro grande momento do ensaio, quando as seguidas trocas de comando nos controladores da Pantheon fazem com que a atividade editorial da casa, desenvolvida até então com relativa independência, passe pelo crivo implacável dos contadores e planejadores de marketing, processo que é acompanhado também pela tentativa de despolitização do catálogo. Schiffrin reconhece, num olhar retrospectivo, que demorou demais a perceber que o avanço da lógica de mercado sobre suas atividades condenava, em última instância, a própria sequência do trabalho que tocava com seus colaboradores. Embora tenha tentado se adequar, num primeiro momento, às exigências cada vez mais absurdas que lhe eram feitas, as primeiras tensões caminharam, ao longo da década de 80, para a completa incompatibilidade entre a equipe editorial e os gestores aos quais ela era submetida, o que resultou numa demissão coletiva, no início do ano de 1990. Essas exigências são relatadas em detalhe. Assim como canais de TV a cabo e grandes jornais, as editoras teriam que apresentar taxas de lucro de 12 a 15%, quando o mercado editorial costumava funcionar com taxas muito menores; cada livro deveria dar lucro individualmente, o que se chocava com uma das regras básicas da edição, que vê em grandes sucessos a possibilidade de compensar as perdas com livros que precisam de mais tempo para atingir o seu público; a editora deveria colaborar para os custos cada vez maiores da corporação a que era submetida; seria considerado um fracasso o desempenho anual se não houvesse expansão significativa da fatia de mercado ocupada, o que estimulava processos de fusão nada criteriosos. Schiffrin vê nessas mudanças a semente de um processo que tende a reduzir drasticamente a bibliodiversidade e conduzir a atividade editorial à irrelevância, com a alteração drástica na equação que tendia a equilibrar o imperativo de ganhar dinheiro e a necessidade de lançar livros importantes. É para reagir a elas que o editor funda, ainda em 1990, a New Press, editora sem fins lucrativos e ainda em atividade, o que configura o último dos quatro momentos a que nos referimos. Com fôlego de principiante, Schiffrin corre atrás de potenciais doadores e os encontra na figura de fundações, que garantem o capital inicial para a montagem de uma equipe mínima e de um primeiro catálogo. Isso só é possível, diga-se, graças à fidelidade de muitos dos autores da Pantheon que, em solidariedade à equipe demissionária, recusaram-se a continuar na antiga casa – feito admirável em época marcada por leilões e competição cerrada no mercado editorial. Utilizando instalações emprestadas pela Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) e a rede de distribuição da editora W.W.Norton, com a qual Schiffrin tinha muitas afinidades, deu-se início a uma nova saga, que, à época do ensaio que analisamos aqui, já gerava livros bem aceitos pela opinião pública e com boas vendas, embora muitos deles fossem considerados inviáveis pela lógica reinante. Para concluir, registremos que essa mudança de rumo representada pela New Press e pela posterior publicação de seus livros de intervenção, cujo primeiro exemplo é O negócio dos livros, não é estranha se se conhece o pensamento do autor em questão. Ainda que tingido pela melancolia que lhe causa o cenário contemporâneo da circulação de ideias no mundo, seu discurso nunca descamba para uma lamentação estéril. Schiffrin é quase sempre propositivo. No fim do ensaio, evocando as editoras que ainda resistem ao domínio das grandes corporações – as sem fins lucrativos, as universitárias, as religiosas, as ligadas às fundações, além de raras e pequenas editoras comerciais –, lembra que a experimentação e a descoberta ocorrem normalmente em pequena escala, onde há espaço para o risco e o entusiasmo. Esse lugar estará sempre fora do alcance das grandes corporações, que se utilizam da atividade editorial para atingir objetivos estranhos a ela, e precisa ser ocupado pelos editores que estiverem à altura da missão que lhes cabe.

 

SCHIFFRIN, André. O negócio dos livros: como as grandes corporações. decidem o que você lê. Tradução de Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.