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Covid 19: uma doença da civilização

Entrevista com a Professora Marisa Dolhnikoff*

* Professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, na área de patologia pulmonar. Coordenadora dos Estudos em Autópsia da COVID-19 no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Responsável pelos Estudos da COVID-19 por Autópsia Minimamente Invasiva Guiada Por Ultrassom na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Patologista responsável pelas biópsias pulmonares de pacientes do complexo HC-FMUSP. Responsável pelo treinamento de residentes de Anatomia Patológica do HC-FMUSP em Patologia Pulmonar. Graduação em Medicina pela Universidade de São Paulo (1985), doutorado em Medicina (Patologia) pela Universidade de São Paulo (1993), pós-doutorado pelo Meakins-Christie Laboratories, McGill University, Montreal, Canadá (1995), Livre Docência pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2007). Coordenadora do Programa Tutoria Acadêmica da FMUSP. Coordenadora do Conjunto de Projetos. Responsável pelas Disciplinas de Graduação: Patologia Especial do Sistema Respiratório, Sistema Respiratório I e II (UC5) da FMUSP.

 

Sibila: Já se conhece a causa da mutação específica do novo coronavírus que o tornou transmissível para humanos? Promiscuidade entre animais selvagens em mercados orientais, experimentos em laboratório, contato humano com animais silvestres raros? Qual a mais provável, em sua opinião?

Dra. Marisa Dolhnikoff: O vírus causador da COVID-19, o SARS-Cov-2 (nome oficial do “novo coronavírus”), é o sétimo coronavírus conhecido por causar doença em humanos (num universo de mais de 3 mil tipos de coronavírus). Outros dois, o SARS-CoV e o MERS-CoV, foram responsáveis por epidemias anteriores, respectivamente em 2002, na Ásia (SARS) e em 2012 no Oriente Médio (MERS). Estas foram epidemias limitadas, que atingiram um número muito menor de pessoas. Mas o quadro pulmonar, responsável pela insuficiência respiratória e pelo óbito, apresentava muitas semelhanças com o que vemos agora. Os reservatórios mais prováveis para o SARS-CoV-2 são os morcegos, mas acredita-se que o vírus ultrapassou a barreira da espécie em direção aos humanos a partir de um animal hospedeiro intermediário. O hospedeiro intermediário pode ser um animal doméstico utilizado para consumo, um animal selvagem ou, ainda, um animal selvagem domesticado, que não tenha sido identificado. Alguns estudiosos sugerem que o pangolim possa representar o elo entre morcegos e humanos.

Não existem evidências de que o vírus possa ter sido criado em laboratório, pelo contrário, todas as evidências apontam que esta não é uma possibilidade razoável.

 

Sibila: Essa pandemia tem semelhanças com a da Gripe Espanhola?

M.D.: A Gripe Espanhola foi causada pelo vírus Influenza H1N1, o mesmo tipo de vírus que causou a epidemia de influenza H1N1 de 2009. A pandemia de 1918 foi a mais grave da história recente, estima-se que 500 milhões de pessoas, um terço da população da época, foram infectadas, resultando em 50 milhões de mortes. Apesar de influenza e coronavírus serem classes diferentes de vírus, existem sim semelhanças. Ambos causam doenças respiratórias e, portanto, transmissão direta de pessoa a pessoa pelas vias aéreas. O quadro grave também pode ser parecido, ou seja, uma lesão pulmonar que causa insuficiência respiratória em indivíduos mais suscetíveis e com doenças crônicas de base. Classicamente, a gripe por influenza e as doenças infecciosas respiratórias em geral atingem de forma mais severa os extremos de idade, ou seja, crianças abaixo de 2 anos e idosos. No caso da COVID-19, não estão ainda esclarecidas as razões pelas quais as crianças maiores são menos afetadas.

Sibila: A Terra tinha 2 bilhões de habitantes em 1918/1920 e seus biomas estavam bem mais preservados. Hoje tem 8 bilhões e biomas destruídos. Esses dados demográficos e ecológicos explicam algo?

M.D.: Há evidências de que a preservação de habitats naturais reduz o risco de doenças que se propagam da vida selvagem. Estudos recentes mostram que os ecossistemas usados em excesso por humanos são os que contêm um número maior e uma maior variedade de vida selvagem, que carrega patógenos capazes de infectar pessoas. Há também evidências de que espécies selvagens sob estresse ambiental apresentam maior possibilidade de excretar cargas virais mais altas, o que aumenta tanto o risco de uma epidemia nessa população animal como o risco de propagação a humanos. Degradação da natureza, tráfico e aproximação de animais selvagens são fatores certamente associados ao maior risco de novas epidemias.

 

Sibila: A gestão da COVID-19 tem sido díspar no mundo e no Brasil. Por que tantos modelos e/ou modos heterogêneos em disputa? Em termos estritamente científicos há um consenso?

M.D.: Existem alguns consensos. Medidas sanitárias já se provaram altamente eficientes para conter a disseminação do vírus, como higiene das mãos, uso constante de máscaras de forma adequada e distanciamento social. Infelizmente, existe um descrédito em relação a isso em grande parte da população, tanto no Brasil como em outros países. No início da epidemia, teorias díspares diziam respeito principalmente a duas visões opostas; havia, por um lado, a proposta de confinamento como medida de interrupção do contato e da disseminação da doença; por outro, apresentava-se a possibilidade de exposição de indivíduos jovens, que apresentam menor risco de doença grave, com o objetivo de induzir uma proteção coletiva, como foi feito inicialmente na Inglaterra. Atualmente, prevalece o conceito de que o distanciamento é necessário para diminuir a taxa de contágio; entretanto, é muito difícil fazer um distanciamento efetivo por tempo muito longo. O que vemos são “idas e vindas” dos números de contaminados, como acontece agora em vários países que mostram novos aumentos no número de casos.  

 

Sibila: Infectologistas e sanitaristas falam em uma vacina e/ou várias em cerca de dois anos. Os russos afirmam que chegam antes, mas a comunidade científica internacional desconfia. O que está acontecendo?

M.D.: Cientistas de todas as áreas se mobilizaram para estudar a e tratar da COVID-19: nunca havia ocorrido um fenômeno parecido. Provavelmente, a última mobilização semelhante da comunidade científica aconteceu no início da ocorrência da AIDS, mas naquela época a comunicação era bem mais lenta. Hoje as pesquisas acontecem aos milhares, envolvendo grande contingente de pesquisadores, de forma acelerada e globalizada. Existem mais de 100 vacinas sendo desenvolvidas paralelamente ao redor do mundo. É muito provável que várias delas sejam aprovadas e fiquem disponíveis em períodos próximos, o que deve começar a acontecer em meados de 2021. Mas é necessário que todas elas passem pelas etapas de avaliação de eficácia e segurança. Após os estudos em laboratório para trabalhar a composição da vacina e os testes in vitro e em animais, há 3 etapas clínicas de testes. Na primeira fase clínica, a vacina é aplicada em um número pequeno de voluntários, poucas dezenas de pessoas, principalmente para avaliação da segurança. Na segunda fase, um número maior de pessoas recebe a vacina; essa fase tem como principal objetivo estabelecer a imunogenicidade, ou seja, a eficácia da vacina em produzir anticorpos. Na terceira e última fase, milhares de pessoas recebem a vacina e são acompanhadas para avaliação de segurança (efeitos colaterais dos mais simples aos mais graves) e de eficácia. Em todas as fases há o grupo controle, indivíduos que recebem placebo. É um trabalho complexo, que envolve a avaliação contínua de muitas variáveis de um número grande de pessoas. Mas em geral as duas primeiras fases são um bom indicativo da eficácia e possibilidade de efeitos colaterais. O ceticismo da comunidade científica em relação à vacina russa é justificável, uma vez que a vacina foi registrada sem cumprir essas etapas e sem a publicação dos resultados iniciais. Posteriormente ao registro, os resultados condensados das fases 1 e 2, referentes a apenas 76 voluntários, foram publicados (sugerindo uma boa resposta).

 

Sibila: Acredita que, com a vacina, a COVID 19 será erradicada, como foi a varíola, ou ela se tornará endêmica, ou seja, “crônica” (como a malária, a AIDS etc.), e apenas controlada?

M.D.: Acredito que teremos uma situação semelhante àquela da influenza, ou seja, existe a vacina, mas ela tem que ser renovada a cada ano. O vírus continua circulando e mutando, um número pequeno de pessoas morre todos os anos pela doença.

 

Sibila: Seu grupo foi o primeiro a fazer autópsias de pacientes mortos por COVID 19 no Brasil, e fez a descoberta de microtrombos na circulação dos pulmões, uma das principais causas da falência pulmonar. Recentemente, vocês mostraram na revista Lancet Child and Adolescent Health a ação deletéria do vírus no coração de uma criança. Qual o significado prático desses achados? As crianças apresentam um quadro diferente de COVID-19? Devemos nos preocupar com isso?

M.D.: Felizmente, casos graves de COVID-19 em crianças são raros, e casos fatais são exceções, acontecem em geral na vigência de sérias comorbidades, por exemplo um câncer. Entretanto, desde o final de abril, surgiram na Europa relatos de um tipo específico de acometimento em crianças, possivelmente relacionado à infecção pelo Sars-Cov-2, a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica. Até agora, houve notificação global de pouco mais de 1000 casos de crianças com a síndrome, que se caracteriza por um estado inflamatório sistêmico que pode acometer vários órgãos. Esse quadro é potencialmente grave, as crianças necessitam de internação, na maioria das vezes em UTIs. Nos casos que têm má evolução, há sinais de insuficiência cardíaca.  Acreditava-se que a síndrome representava uma resposta inflamatória inespecífica e exagerada após o contato com o vírus. Mas demonstramos que o Sars-Cov-2 pode infectar o coração e causar uma miocardite grave. Não sabemos ainda quais fatores predispõem algumas crianças a essa forma grave da doença, mas entender os mecanismos desse processo pode ajudar no tratamento de novos casos.