Antoni Tàpies [1923-2012]*
João Cabral de Melo Neto e o meio artístico de Barcelona
Foi muito interessante conhecer João [João Cabral de Melo Neto, 1920-1999], porque isso se deu em um momento em que havia muita discussão em torno de poesia e arte. Questionava-se muito se os poetas e os pintores deviam fazer um trabalho social e político. As opiniões de Cabral eram muito acertadas. […] Para mim, ele era alguém um pouco mais velho que, naquela época, foi como um modelo, um exemplo muito interessante dentro dessas polêmicas.
João Cabral foi de grande ajuda para os jovens. Ele chegou a me apresentar, junto com outros artistas [Joan Ponç, 1927-1984, e Modest Cuixart, 1925-2007], em uma exposição no Instituto Francês de Barcelona [1949]. Escreveu um texto muito bonito do qual sempre me lembro. Mas foi importante sobretudo porque nos dava a oportunidade de ir à sua casa para, em plena ditadura [o franquismo, desde 1939], discutir diversos temas, inclusive a situação política da Espanha.
Um pouco mais tarde tive a oportunidade de revê-lo quando o governo francês me deu uma bolsa para viver em Paris [1950]. O reencontro com João também foi muito útil para mim. Eu não conhecia Paris, mas ele sim, e me apresentou às livrarias importantes para os temas que discutíamos com ele – naquela época, principalmente sobre marxismo. Ele conhecia muito bem todos os problemas do marxismo. Talvez não de um ponto de vista plástico, mas de formação de meu espírito, ele foi muito interessante, me ajudou muito.
Os encontros com Cabral
Na maioria das vezes, eu ia à casa dele, na calle Montaner. Normalmente, quando íamos lá, ele nos recebia em uma salinha onde ficávamos conversando. Nós nos demos muito bem. Ele esteve metido no mundo artístico de Barcelona, mas selecionava muito. Era aberto a toda classe de tendências, mas tinha senso crítico e selecionava bem as pessoas.
Conversávamos principalmente sobre temas profundos, de certa relevância. Temas humanísticos, digamos. Também filosóficos e estéticos. Ele tinha uma grande preocupação com o homem, e nisso coincidíamos muito. Sempre falava que mesmo na pintura abstrata deve-se introduzir algum elemento humano que dê uma certa visão do mundo. Ela não devia ser gratuita, mas dar ao espectador uma pista, nem que fosse muito pequena, no sentido humanista.
Cabral, Miró e a Galerie Maeght
Pouco tempo depois de chegar a Barcelona, Cabral escreveu um livro sobre Joan Miró [1893-1983] que fez muito sucesso na França [Joan Miró. Barcelona: Edicions de l’Oc, 1950. Tradução para o francês por Henri Moreu], onde foi publicado por uma galeria de Paris [Galerie Maeght]. Anos mais tarde, fui parar na mesma galeria, que também era a galeria de Miró.
Brasil e Catalunha
Cabral sempre nos falava e me incentivava a ir ao Brasil. Sempre me dizia: “Você precisa ir ao Brasil fazer uma exposição”, mas naquela época eu tinha medo de fazer uma viagem tão distante quanto essa. Também nada sabia sobre a situação cultural do Brasil. Depois soube que tinha um museu interessante e cheguei a expor alguns quadros com outros artistas catalães e espanhóis no Brasil, em uma missão artística espanhola.
João Cabral gostaria mesmo que tivéssemos ido viver no Brasil. Dizia que seria um país que nos estimularia muito. Falava da grande riqueza das diferentes culturas e que era um povo muito imaginativo. Tinha umas ideias muito concretas.
Mas aquela era uma época em que o importante para um artista era ter sucesso em Paris, então a meca dos artistas. Preferi ficar em Paris um tempo e, assim que pude, fui morar em Barcelona. Estou muito ligado, tenho raízes muito profundas em Barcelona.
Cabral – grande inteligência e sensibilidade
Guardo ainda lembranças de quando o conheci. Parece que ainda o vejo. Era uma pessoa muito frágil, mas, quando começava a falar, era muito convincente. Prendia a sua atenção e falava com grande inteligência e sensibilidade. Era um homem muito sensível para a poesia e para falar. Vejo Cabral como uma pessoa muito discreta. Não se exaltava muito, mas seus argumentos, ao contrário, eram muito convincentes. Com seus argumentos ele convencia com muita facilidade. Tinha o dom do discurso. Falava muito bem, mas sempre com muita calma e tranquilidade. Não se irritava nunca.
*Depoimento inédito a Bebeto Abrantes, 2003