Além de um livro mais solto do que os dois anteriores, Mastodontes na sala de espera, nova série de poemas do mineiro Bruno Brum, publicado em 2011 pela Editora Crisálida, assume riscos maiores. Desde esse título meio estranho e também um pouco engraçado, sem jeito mesmo, não se sabe – o título não seria também, a sua maneira, uma imagem ou um eufemismo do próprio ato (inconsequente, inoportuno) de escrever poesia? Afinal, não se trata de um mastodonte apenas, mas de vários! –, o novo livro de Bruno não se presta a facilidades, mas ao mesmo tempo não quer fechar-se dentro de uma proposta hermética, especializada; em poucas palavras, eu diria que Bruno não escreve segundo os bons modos da escrita literária.
Ao contrário, Bruno mimetiza e se apropria de discursos prontos e até mesmo descartáveis, às vezes como um ready-made, manipulando com criatividade e rigor, e quase sempre com ironia, formas de escrita não poéticas, como os discursos jurídicos e científicos, a mentira, a falsidade, e até mesmo, curiosamente, noventa e nove clichês literários; eles estão presentes na parte do volume intitulada “Noventa e nove blefes”, momento importante do livro, em que se tornam eles também possibilidade de escrita. Aliás, nessa parte, não é possível saber se Bruno apenas copia as frases feitas de outros lugares, de alguns de seus pares, como um colecionador – afinal, há muitos clichês espalhados por aí –, ou se o autor inventa seus próprios blefes, traindo a si próprio, em um exercício deliberado e muito libertário de escrever mal. “Atravesso a rua. A rua me atravessa”, diz um dos noventa e nove clichês, em um jogo meio infame com a sintaxe.
Há momentos também em que, pela banalidade e pela falta de qualquer sentimento sublime, o poema se parece com uma crônica, semelhança que, aliás, se torna explícita em “Crônicas do homem-rã”, por exemplo, mas que pode ser percebida principalmente nos quatro pequenos poemas da série “Postais”, como este: “Os passantes ainda não/ se decidiram se vão, se ficam,/ se atravessam a rua, se fazem/ uma pausa para o café,/ se atendem o celular”. Ou seja, trata-se mesmo de uma poesia que não se ressente tanto da banalidade quanto do improviso, mas também não aceita suas imposições de maneira gratuita; antes, mantém com a banalidade um acordo ambíguo, provisório. O livro de Bruno Brum, também pela repetição e certa monotonia, poderia ser comparado com uma máquina que quebra sempre; uma peça falsificada, sem garantia.
Portanto, ao invés de uma série de poemas simétricos entre si, ao invés da procura por uma voz reconhecível, voz que nos daria a referência de uma subjetividade segura, enfim, ao invés da organização – versos curtíssimos ainda se misturam com versos mais longos e mais narrativos, às vezes com a prosa e também com poemas visuais, diferentes gêneros textuais etc. –, o gesto de Bruno investe justamente na dispersão, em uma variação radical de registros. Daí o improviso; é como se não fosse possível saber o que vem depois. E a forma do improviso, como se sabe – pois é capaz de durar pouco e quase nada concluir –, é contrária ao manifesto. Seja como for, o improviso oferece pelo menos duas consequências para a escrita de Mastodontes: a anotação e principalmente a repetição.
Em “Seis improvisos”, por exemplo – espécies de “mantras pessoais”, como se lê no título de outro poema (ou uma educação pela repetição) –, os poemas adquirem a forma de pequenas notas sem valor, como se elas próprias fossem objetos que não servem mais. “Nenhuma rodoviária é feliz”, diz um dos improvisos. Em outro, como acontece em diversos poemas do livro, os versos se encadeiam pela repetição: “Minhas roupas estão ficando velhas./ Meus chinelos estão ficando lentos./ Já não me lembro onde deixei meus retratos”. Os poemas de “Postais” também são feitos de notas. A repetição, de fato, um dos procedimentos mais repetidos do livro – recordo também do poema feito quase todo com perguntas –, aparece talvez como tentativa de reter algo: provavelmente uma experiência perdida ou uma ideia que teima em desaparecer.
Os poemas de Mastodontes não são sutis nem vagos, muito menos complicados; pelo contrário, são precisos e diretos, às vezes literais mesmo – por isso carregam certo peso e lentidão –, como explicita o poema “Interessante”, provavelmente o mais literal do livro: “Você mostrou./ Você acha bonito./ Você acha interessante./ E por isso acha que deve ser mostrado./ Você colocou lá./ para que todos vissem/ porque decerto supôs/ que seria bonito,/ que seria interessante/ que todos vissem”. A sintaxe e o léxico são simples, quase nunca há metáfora ou qualquer espécie de alusão; e há quem diga também que não haja poesia. Aliás, grande parte dos versos termina com ponto final, o que não deixa de ser também uma marca – no mínimo, um desejo – de definição, recorte. As inúmeras referências aos números também aparecem como tentativa de precisão. Enfim, nada deve sobrar. Mesmo quando aparece certa dúvida e hesitação, parece haver também a busca por uma clareza: “A ideia era dizer algo/ sobre os desertos de sal”.
Depois, o livro de Bruno parece dar-nos seu testemunho particular sobre um tema recorrente em grande parte da literatura moderna: a perda de lugar e experiência. Há diversos poemas que descrevem justamente a distância entre um sujeito e um objeto que, de qualquer maneira, parece não lhe pertencer mais, como é o caso de “Recorte”: “Afastar-se de um objeto qualquer/ até que se possa vê-lo por inteiro.// Afastar-se mais/ até que se confundam as suas formas.// Afastar-se ainda mais,/ até que se torne pequeno, quase invisível.// Afastar-se, afastar-se/ até que suma por completo.// Continuar se afastando/ e desaparecer lentamente”. Um dos improvisos, por sua vez, abre com o seguinte verso: “Esse mundo não é meu”. De maneira geral, o sujeito jamais aparece implicado nas cenas que descreve.
No entanto, eu também diria que Bruno dá um tratamento diferente ao assunto, pois já não há qualquer lamento diante do objeto perdido, e sim certo humor e até mesmo algum cinismo, que poderiam ser resumidos nos seguintes versos: “Nessas ocasiões, apenas me lembro/ que tenho um pinto enorme e tudo/ parece um pouco melhor”. Enfim, a imagem dos mastodontes em uma sala de espera, presença estranha e inoportuna, bizarra mesmo, mas que também deve provocar-nos o riso, como já foi dito – afinal, Bruno nos fala também sobre a importância de aprender a rir de si próprio –, talvez agora deva ficar mais clara. Seja como for, os mastodontes ainda continuam lá.
Victor da Rosa é doutorando em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Em parceria com Ronald Polito, organizou as antologias 99 poemas e Escutem este silêncio, ambas de Joan Brossa. Em 2010, ganhou o Prêmio Rumos, de Crítica Literária, do Itaú Cultural. Mantém uma coluna semanal no Diário Catarinense.