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Encontrar seu lugar: De Boris Vargaftig a Italo Calvino

Foi agora em abril deste ano (2024), no espaço da Tapera Taperá em São Paulo, com a presença de alguns dos principais representantes da esquerda nacional, que o argentino-francês-brasileiro Bernardo Boris Vargaftig (nascido em 1937) apresentou o livro Encontrar seu lugar (Usina Editorial) que, além de ser um curso de História Contemporânea, é também sua autobiografia.

O que logo impressiona é a formação de Boris (assim ele gosta de ser chamado): graduado em Medicina pela USP (1963); Docteur-ès-Sciences pela Universidade de Paris (1972); Professor e Membro do Conselho Diretor do Instituto Pasteur de Paris (1978-2002); Professor Titular do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (2007); Doutor Honoris Causa pela UNICAMP (1991), honraria que devolveu por haver sido concedida igualmente ao Coronel Jarbas Passarinho e “não fosse pelo plágio de suas descobertas por um grupo de pesquisadores ingleses pouco escrupulosos teria merecido o Premio Nobel de Medicina” – diz Michael Löwy no prefácio do livro.

Seu pai, de uma localidade fronteiriça entre Polônia e Rússia, emigrou, em 1920, para a França, onde encontrou sua futura esposa (1930), como ele de origem judia e original da Letônia, e trabalhou com importação e processamento da cortiça. Em 1933, prevendo a invasão de Hitler, partiu com a mulher, primeiro para Nova York, onde tinha parentes, e depois para a Argentina, onde nasceu Boris (na época, a Argentina outorgava sua nacionalidade ao estrangeiro que tivesse um filho nascido lá). Depois de nova estada em Nova York, quando Boris tinha três anos de idade, a família desembarcou em Santos (maio de 1940) e se estabeleceu em S. Paulo. Boris frequentou a Escola Britânica, e depois o Colégio Rio Branco (até o fim do colegial) onde fez amizades importantes para sua vida futura.

O pai, junto com o irmão, fundou o bem sucedido Instituto Universal Brasileiro, que contou com 500 funcionários e, mais tarde, o muito popular Instituto Monitor, que – entre outras técnicas – ensinava a construir radinhos por correspondência. A mãe acabou se divorciando e se casando novamente com um libanês, dono de uma tecelagem, que a levou novamente para a França.

Boris teve o consentimento do pai para estudar em Paris, e – entre 1950 e 1952 – frequentou o Lycée Janson de Sailly, tornando-se um leitor apaixonado e muito motivado pela Ciência (foi nessa época que leu os livros do biologista Jean Rostand, filho de Edmund Rostand, autor de Cyrano de Bergerac).

Como o pai de Boris temia que a Guerra da Coreia (1950-53) desencadeasse novo conflito mundial, pressionou o filho a voltar para o Brasil. Justamente nessa época começou a experiência política de Boris. No Colégio Rio Branco havia sido colega de Hersch Basbaum, filho de Leôncio Basbaum, dirigente do PCB (que ingressara no “Partidão” em 1924 e escrevera um livro famoso: História Sincera da República). Hersh havia aderido à União da Juventude Comunista e mantinha um centro cultural na garagem de sua residência. Boris passou a fazer parte da UPES de São Pulo, enquanto secundarista, e quando ingressou na Faculdade de História Natural na USP, em 1957, já havia “entrado” na   UJC.

A partir daí, é intensa a atividade política de Boris que conheceu pessoalmente figuras que vieram a ser importantes na cultura e na política nacional (Fernando Henrique Cardoso, Maurício Tragtemberg, os irmãos Fausto, Flavio Império, Gabriel Labat e dezenas de outros)  e que culminou com o ingresso, em 1958, no POR ( Partido Operário Revolucionário), no qual militava Leôncio Martins Rodrigues – antes de ingressar na carreira acadêmica – uma das referências de Boris e responsável por sua entrada no POR, fundado por Mário Pedrosa e dirigido, na época, por Juan Posadas. O partido era de tendência trotskista e criticava, entre outros, o “ reformismo” do Partidão e o lema staliniano de “socialismo em um só país”. Até hoje Boris é militante trotskista, tendo, recentemente, traduzido Minha Vida, de Leon Trótski, para o português ( Usina Editorial), vida esta que Antonio Candido – que, como ele, lera o livro em francês em 1956 — considerou “ exemplar” e que, para Boris, “abriu um portão da compreensão da realidade” e se tornou para ele um guia de ação.

Nos começos de 1964, já diplomado médico pela USP e residente em clínica médica, Boris é convidado por Oswaldo Vital Brasil (filho do herpetologista Vital Brasil) a ser seu assistente na Faculdade de Ciências Médicas de Campinas (parte da futura UNICAMP). Boris estava ministrando o curso de farmacologia cardiovascular quando, no dia 14 de julho deste ano, (ele estava operando um cão na frente de um grupo de alunos), a polícia o deteve. Depois de três dias em cela individual foi levado para Santos e conduzido ao navio-prisão Raul Soares onde permaneceu 53 dias. O relato da estada e das ocorrências, os novos (e velhos) amigos que lá encontrou, etc., constituem um capítulo da História Nacional.

Impossibilitado de voltar a lecionar em Campinas (o Conselho Estadual de Educação recusara terminantemente sua contratação), e temendo de ser preso novamente, só lhe restava sair do país. Graças a uma rota considerada segura e indicada por Maurício Segall, que havia conhecido na casa de Elisa Abramovitch, chega a Paris em novembro de 1964. No dia seguinte à sua chegada, começa a procurar emprego. A consistência de seus conhecimentos e o rigor de sua conduta levam-no, conforme foi exemplificado no começo desse escrito, a ocupar cargos cada vez mais importantes e a realizar descobertas científicas de valor reconhecido, (descritas em detalhe, inclusive as “roubadas” pelo grupo inglês) sendo modelos de atuação e de vida, também, pois Boris, em seu livro, alterna episódios profissionais e episódios pessoais (amizades, casamento, paternidade, família, viagens, leituras etc.) de modo a tornar a leitura, além de instrutiva, extremamente agradável.

Entre os vários aspectos que essa autobiografia apresenta, vale a pena, por sua urgência mais do que por sua atualidade, focalizar algumas considerações de ordem política do autor, que dialogam com as expostas por Italo Calvino em seu ensaio “A ANTÍTESE OPERÁRIA” (in ASSUNTO ENCERRADO, escrito em 1980 e publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2006 ) e que sintetizamos a seguir.

Desde a I até a II Guerra Mundial – diz Calvino — a classe operária entrou para a História das ideias como personificação da antítese: por um lado, como objeto da desumanização do sistema industrial e – por outro — como sujeito da libertação e da reumanização do sistema. Na cultura ocidental desse interregno houve duas maneiras de se considerar a antítese operária, a saber: a – como força motriz de uma revolução dentro e fora do indivíduo: b – como que englobando todos os valores positivos (cognoscitivos, morais, estéticos, etc.) deixados para trás pelas classes dominantes e pela burguesia, sendo, portanto, ao mesmo tempo, o operariado, revolucionário e conservador. Hoje, por um lado, a cultura tem seu eixo nas metodologias técnico-científicas que tendem para a construção de modelos de estrutura do real, (sem interesse imediato numa “ transformação do mundo” e sem uma particular preocupação de salvar valores obliterados) e – por outro – graças ao impulso da Antropologia, da Psicologia, da História das Religiões etc., a cultura busca “configurações da vida individual e coletiva diferentes daquelas que uma ideia racional de ‘progresso’ pareceria implicar”, de modo que, a carência de sentido da História, coincide com a carência de sentido dos valores.

Diante disso – pergunta Calvino –como é que a presença da antítese operária se configura e quais são as implicações disso no discurso cultural geral? Aqui, também, há várias implicações a considerar. A saber: a subordinação do homem à máquina reduz a classe operária a simples engrenagem do sistema. Mas, a coerção do sistema sobre o operariado não se dá apenas no trabalho nas fábricas e estabelecimentos, mas continua fora, no operário enquanto consumidor, obrigado a satisfazer suas necessidades, inclusive as necessidades criadas artificialmente, de modo que, a um certo momento, a consciência de classe não consegue se desgrudar da cultura de massa. Aqui está uma das interpretações daquele fenômeno que Boris aborda no livro com o rótulo de “servidão voluntária”.

                E, diante da ampliação da cultura de massa em affluent society, a classe operária e suas reivindicações se tornam um elemento necessário à própria dinâmica produtiva. O desequilíbrio mundial tende a se acentuar na medida em que o nível de vida dos países mais pobres tende a se rebaixar. “Socialismo ou bárbarie”, pergunta Boris.

Mas Calvino é mais drástico:

A ameaça de o planeta Terra se encontrar numa “era final” coloca os próprios conceitos de Trabalho e de Produto numa nova perspectiva. Contra um inimigo total, como a destruição da espécie, não há soluções como a “ revolução social”, é preciso uma revolução moral geral. Diante disso, a estratégia da luta de classes fica subordinada às tratativas de cúpula entre os “grandes”, ou, em caso de fracasso, se descai a pressupor o gênero humano obrigado a recomeçar sua História com os utensílios da pedra lascada.

Já Rodrigo Nunes, autor citado por Boris em seu livro, começa, em vídeo disponível na internet, inspirando-se nas “Melancolias da esquerda” para se referir à dificuldade de elaborar o luto do desmoronamento dos ideais, mencionados por Calvino (os de 1917 e os de maio de 1968), que culminou com o fim da URSS e com a pergunta: “Finda a disputa entre os dois modelos, haveria uma alternativa para o capitalismo? Qual poderia ser um novo modelo para a esquerda que não repetisse as falhas do passado?” É a pergunta que se fazem os três autores e é a pergunta que todos nós nos fazemos.


 

 

Prefácio

Encontrar seu lugar – autobiografia de Bernardo Boris Vargaftig,

Michael Löwy

Conheci Boris Vargaftig há muitos anos: 1958!

Se tivesse que resumir em uma palavra o personagem que escreve esta autobiografia, diria integridade. Judeu não judeu – o famoso termo inventado por Isaac Deutscher – cientista, historiador renomado e militante trotskista. Cosmopolita franco-brasileiro, Vargaftig é um homem de convicções, que não cede, não recua e não faz concessões em relação aos seus princípios éticos e políticos. Um belo exemplo desta integridade é o episódio de seu doutorado Honoris Causa da Unicamp, uma distinção recebida em 1991, que lhe deu muita satisfação como reconhecimento de sua contribuição científica e pedagógica. Ora, quando anos depois, o Conselho Universitário da Unicamp recusou (por uma voz de diferença) retirar do Coronel Jarbas Passarinho, sinistro ex-ministro da Educação da ditadura militar, o título de doutor Honoris Causa, Vargaftig não hesitou e devolveu seu título à Universidade. Entre parênteses, só recentemente, em 2022, o mesmo Conselho Universitário corrigiu esta vergonhosa decisão, retirando o título do Coronel em questão.

Somos então amigos há dois séculos? Como relata neste livro, ele era na época militante do Partido Operário Revolucionário (POR), seção brasileira da Quarta Internacional (fundada em 1938 por Leon Trotsky), enquanto eu militava na Liga Socialista Independente (LSI), de obediência luxemburguista. As duas organizações eram minúsculas, mas continham militantes de grande valor, que discordavam, mas se respeitavam mutuamente. Herminio Sacchetta, o velho revolucionário que dirigia a LSI, considerava o jovem Vargaftig como um grande quadro. Ele era conhecido na época como « Borisinho », para distingui-lo de outro Boris mais velho, Boris Fausto que, com seu irmão Ruy, era um dos principais dirigentes do POR. Eu sempre o chamei, e continuo até hoje, de « Borisinho », devo ser o último a utilizar esta expressão?

Quando fui estudar em Paris em 1961 nos perdemos de vista. Só viemos a retomar contato bem mais tarde, no fim dos anos 1990. Boris se afastou da militância no curso dos anos 1960 e eu aderi à Quarta Internacional em 1969: destinos cruzados. Mas nos últimos anos voltamos a nos encontrar, tanto do ponto de vista pessoal como do político: Borisinho como militante da corrente trotskista « Resistência » do PSOL, e eu, como simpatizante (vivendo na França) das várias correntes do PSOL próximas da Quarta Internacional. Nossas companheiras, Eleni e Ana Maria, também simpatizaram e tivemos vários encontros pessoais e/ou políticos, tanto em São Paulo como em Paris. Tentamos montar juntos uma Conferência Antifascista Internacional em São Paulo: até agora não conseguimos, devido à pandemia, mas a ideia era boa.

Não posso opinar sobre a parte científica do livro, sou completamente ignorante em medicina, biologia e farmacologia. Sei que Boris merecia um Prêmio Nobel de medicina, mas suas descobertas foram plagiadas por um grupo de cientistas ingleses pouco escrupulosos. Seu itinerário como professor universitário e como pesquisador foi sem dúvida bastante excepcional.

Como velho marxista não arrependido, compartilho muitas das ideias políticas de meu amigo Borisinho, Leon Trotski é também para mim uma referência fundamental. Partilho da alergia de Boris pelo stalinismo, tanto na sua versão soviética como em sua cópia brasileira. Mas discordamos sobre a religião: contrariamente à Boris, dou muita importância ao papel dos cristãos brasileiros que se engajaram no movimento dos trabalhadores do campo e da cidade; a religião se revelou aqui um fator de luta contra a ditadura militar e mesmo contra o capitalismo. Outro desacordo é sobre a ecologia: para mim, a crise ecológica, e em particular a mudança climática, é o maior desafio político para o marxismo em nossa época; acredito que é necessária uma nova concepção do socialismo – o que chamamos de? ecossocialismo? – para dar conta deste novo fator, que muda bastante a concepção que temos do próprio marxismo.

Mas esta autobiografia não é um tratado de teoria política: embora o marxismo, e as ideias de Trotsky estejam bem presentes no itinerário de Boris Vargaftig, o livro é sobretudo um testemunho pessoal, que começa com o destino trágico dos judeus da Europa oriental, e termina com a luta antifascista no Brasil de hoje. Um testemunho onde a vida familiar e profissional, os amores e as amizades, os encontros e os desencontros, ocupam o lugar central. Mas também um documento que revela seu autor como personagem de alta estatura intelectual, científica e política, cuja vida sempre foi, e ainda é, coerente com os princípios em que acredita. Não é pouco?

 

Confira o debate ocorrido no lançamento do livro:


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.