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Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette)

Eixo temático: O desenvolvimento da técnica na sociedade do capital tende a aparecer como desenvolvimento tecnológico, com objetos complexos assumindo formas estranhadas, que sob certas circunstâncias sócio-históricas podem assumir alto potencial destrutivo. Na medida em que se amplia, o fetichismo da mercadoria imprime sua marca indelével na sociabilidade humana, constituindo formas complexas de fetichismo social, criando a aparência de uma tecnologia onipotente e malévola. O fetiche da técnica através dos objetos tecnológicos tende a ocultar a verdadeira dominação do capital como relação social a serviço da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata. Na medida em que a tecnologia assume novas formas materiais, instaurando novas técnicas de virtualização de base bioinformática de intenso cariz manipulatório, tal fetichismo da técnica alcança maior intensidade e amplitude, principalmente no plano do imaginário social. O problema da tecnologia é o problema do controle social capaz de abolir o fetichismo da matrix tecnológica. Na medida em que tais contradições do capital se acirram, explicita-se a necessidade do controle social dos objetos tecnológicos complexos, sob pena do aprofundamento da barbárie social, tendo em vista que eles são utilizados, em si e para si, como nexus de intensificação da manipulação e da produção destrutiva do capital.

Temas-chaves: técnica e tecnologia, capital e processo civilizatório, fetichismo e controle social, capitalismo manipulatório e novas tecnologias da virtualização.

Filmes relacionados: Blade Runner, de Ridley Scott; Metropólis, de Fritz Lang; O Show de Truman, de Peter Weir; GattacaA Experiência Genética, de Andrew Nicoll; Simone, de Andrew Nicoll.

 

Análise do filme

Giovanni Alves

Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica (1948), um dos clássicos do cinema neorrealista italiano, possui uma trama narrativa singela: um desempregado, Antonio Ricci, consegue uma vaga de emprego como colador de cartazes. Mas a exigência para a obtenção da vaga é possuir uma bicicleta. Ricci a possui, mas ela está empenhada. Maria, sua mulher, decide empenhar os lençóis da cama e retira, na mesma loja de penhores, a bicicleta. Antonio Ricci consegue o emprego e começa a trabalhar numa manhã de sábado. Entretanto, enquanto colava cartazes, Ricci tem a sua bicicleta roubada. Desesperado, ele tenta encontrá-la com a ajuda do filho Bruno. Ele busca apoio da polícia e dos amigos. Mas é procurando por conta própria, ao lado de Bruno, que Antonio Ricci se encontrará imerso numa experiência de dor e angústia com a perda do meio de trabalho.

Ladrões de Bicicleta trata da condição de proletariedade extrema. É o caso de Antonio Ricci, desempregado há anos (talvez há cerca de três anos, isto é, desde o final da Segunda Guerra Mundial em 1945). Na abertura do filme De Sica expõe o drama social do desemprego de longa duração que atinge larga parcela do proletariado italiano no pós-guerra. A Itália é um país capitalista de economia desestruturada pela derrota na guerra mundial. Não há geração de vagas de trabalho e um amplo contingente está imerso na pobreza. É o que consideramos uma situação de proletariedade extrema.

Na primeira cena, homens se dirigem para um local de um condomínio de proletários na periferia de Roma, onde um funcionário público da agência de empregos, provavelmente ligado ao Ministério do Trabalho, chama nomes para preencher vagas disponíveis. A primeira frase é: “Há três semanas que venho aqui…”, o que demonstra a dificuldade de colocação no mercado de trabalho.

O que se percebe é que as vagas ofertadas exigem algum grau de qualificação e os proletários desempregados, em geral, são uma força de trabalho semiqualificada. Por exemplo, oferecem-se vagas para torneiros. “Há duas vagas para torneiros”, diz o funcionário público. Mas alguém retruca: “Mas aqui não há torneiros”. Outro diz: “Só porque não sou torneiro vou ter que esperar?”. Enfim, não se encontram na multidão homens com qualificação de torneiro mecânico. “Tenho que morrer de fome só porque sou pedreiro…”, diz um dos desempregados. O que significa que o mercado de trabalho é seletivo, exigindo, naquelas condições sociais do capitalismo italiano do pós-guerra, determinadas qualificações vinculadas a indústrias mais dinâmicas. Torneiro mecânico é a profissão da indústria metalúrgica em ascensão e colador de cartazes, a vaga de emprego que Ricci conseguiu, é ligada à indústria de entretenimento.

O que significa que, sob certas condições históricas, um contingente do proletariado pode não encontrar lugar no mercado de trabalho em virtude da inadequação do seu perfil profissional às demandas do mercado de trabalho capitalista. Por ser força de trabalho como mercadoria, o proletário possui uma vulnerabilidade particular: a superfluidade de suas habilidades profissionais, tornando-o invendável no mercado de trabalho.

A profissão é um lastro construído pela força de trabalho no decorrer de uma carreira de vida. Inclusive, pode ser um bem de família, herdado de gerações passadas. O proletário investe tempo de vida e esforço de trabalho, acumulando experiências e desenvolvendo habilidades técnicas. Como observa Richard Sennet, a palavra “job” [serviço, emprego], em inglês do século quatorze, queria dizer um bloco ou parte de alguma coisa que se podia transportar numa carroça de um lado para o outro. As pessoas fazem “blocos”, partes de trabalho, no curso de uma vida. Um bloco é rígido e pesado e torna-se difícil trocá-lo no decorrer de uma carreira.

Num certo momento, na chamada de oferta de empregos, o funcionário do governo observa que um pedreiro não pode assumir a vaga de um torneiro: “É de outra profissão!”. Alguém sugere: “Então mude de profissão”. Ele diz: “Não é possível”. Outra oferta de emprego que observamos nesta primeira cena do filme é: “2 dias de trabalho no estaleiro Tufello”. Talvez seja uma atividade como estivador ligada à circulação de mercadorias no porto de Roma. Um detalhe: o funcionário público que oferece as vagas de emprego procura dar alento aos desempregados. Diz ele: “Um pouco de paciência e vamos tentar dar trabalho para todos”.

Como observamos, Ricci está imerso no desalento. Ao ser chamado, ele está distante, sentado num canto, quase sem esperanças de conseguir uma vaga de emprego. Ele está desempregado há dois anos, o que significa desemprego de longa duração. Na medida em que o proletário é força de trabalho como mercadoria, sua angústia dilacerante é não conseguir realizar o desejo íntimo de toda mercadoria: ser consumida. Eis a sua condição essencial (e contingente) da corporalidade viva e do trabalho vivo enquanto força de trabalho como mercadoria no sistema do capital.

Antonio Ricci vive uma situação de proletariedade extrema, por isso a oferta do emprego como colador de cartazes é a realização plena de um sonho. O curioso é que como colador de cartazes, Ricci vai divulgar o produto-mercadoria da indústria dos sonhos, Hollywood, como verificaremos. Por isso, mesmo não tendo ainda bicicleta, Ricci não quer perder a vaga de emprego (como diz ele: “Tenho uma e não tenho. Posso conseguir uma dentro de poucos dias”). Inclusive se oferece para fazer o serviço a pé nos primeiros dias – mas o agente público é taxativo: “Se você não tiver, o emprego vai ser de outro”.

Para explicitar a concorrência que marca a condição de proletariedade, nesse momento, da multidão de desempregados ecoam vozes: “Eu tenho uma bicicleta!” ou ainda “Se você tem uma bicicleta, eu também tenho!”. O agente de empregos pergunta: “Então, Rici, esta bicicleta existe ou não?” E Ricci, finalmente, assevera: “Existe sim. Esta manhã, eu me apresento”.

O que percebemos é que a bicicleta é o objeto sine qua non para a obtenção do emprego de Ricci. É o meio de trabalho para a ocupação de colador de cartazes. Nesse caso, temos a coisa interpondo-se entre o homem e sua atividade vital, o trabalho. A bicicleta é mais importante que o homem e suas necessidades vitais. É preciso tê-la para ter acesso ao trabalho assalariado. O filme Ladrões de Bicicleta expõe um homem alucinado pela coisa (ou fetiche) e sua perda contingente. Talvez a bicicleta seja a metáfora das coisas que determinam nossa vida e que, num certo dia, por obra do acaso, podemos perdê-las e, desse modo, nos perdemos junto com elas (como aconteceu naquele domingo com Antonio Ricci).

Como a qualificação profissional requerida, a bicicleta é uma coisa que se pode transportar de um lado para o outro. Entretanto, ao invés da profissão, que não se pode mudar ao sabor das idiossincrasias do mercado de trabalho, a bicicleta é portátil, podemos tê-la e podemos perdê-la como ocorreu com Ricci. E ao perder a bicicleta, Ricci perdeu a chance de ter um emprego assalariado capaz de lhe abrir as portas para o mercado de consumo e para os mundos das coisas e da vida digna na sociedade burguesa.

O filme Ladrões de Bicicleta trata de situações extremas que são capazes de exprimir com clareza e intensidade os elementos constitutivos da condição de proletariedade em sua forma primordial. A contingência é uma delas. Poderíamos dizer: a contingência é o principal elemento da condição de individualidade de classe. Marx e Engels em A Ideologia Alemã asseveravam: “Esta contingência apenas é engendrada e desenvolvida pela concorrência e pela luta dos indivíduos entre si. Assim, na imaginação, os indivíduos parecem ser mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque suas condições de vida parecem acidentais; mas, na realidade, não são livres, pois estão mais submetidos ao poder das coisas”.

A contingência persegue Antonio Ricci em suas formas trágicas, porque, através do furto de sua bicicleta, Ricci perde, num ato infraordinário ou ato pré-político, seu instrumento de trabalho que é furtado não pelo capitalista que o expropria, nem por um outro indivíduo concorrente de classe, mas por um lumpemproletário, proletário excluído – é o que iremos ver adiante.

Na verdade, a proletariedade em sua fase primordial, com traços da primeira modernidade em dissolução e de um capitalismo desorganizado (no caso, o capitalismo italiano, desorganizado pela Segunda Guerra Mundial), está imersa na barbárie social com seus elementos de tragédia pessoal, como é o caso de Ricci.

Antonio Ricci, no decorrer do filme, está sempre imerso em questões existenciais. Primeiro, ter ou não ter – eis a questão. Diz ele para a mulher Maria: “Arrumei trabalho e não posso aceitar”. Ele tem e não uma bicicleta. Como salientamos, é um personagem trágico submetido à extrema contingência. Está diante do “paraíso”, o vislumbra, mas parece não poder alcançá-lo, por causa de uma coisa (a bicicleta).

Como observamos, outros proletários desempregados, que não possuíam qualificação de torneiro, não conseguiam o emprego devido à inadequação de suas qualificações profissionais. Nesse caso, a figura da qualificação profissional é uma coisa impalpável que se colocava entre eles e a colocação no mercado de trabalho. Entretanto, o que obstrui Ricci de conseguir o emprego não é uma qualificação profissional propriamente dita, mas sim um simples objeto de trabalho (que é meio de transporte também), isto é, uma bicicleta, que ele tinha, mas que fora empenhada para satisfazer as carências extremas da família Ricci (empenharam a bicicleta para poder comer).

O que se coloca para o casal Ricci é como resolver esse problema. “Preciso de uma bicicleta imediatamente. Se não me apresentar, o emprego fica para outro”, diz ele. Ele está quase desesperado. Exclama: “Maldito dia em que nasci!”; ou ainda: “Vale mais a pena eu me matar”. Ora, Ricci é um homem trágico. Lamenta-se em demasia. Mas Maria, a mulher de Ricci, possui um sentido prático, buscando uma solução imediata para o problema. Aliás, em sua primeira aparição no filme, Maria está trabalhando: carrega dois baldes d’água (só depois Antonio se atenta a ajudá-la). Por outro lado, em sua primeira aparição, Ricci está desalentado, sentado no meio-fio, à espera de uma vaga de emprego.

O modo de aparecimento expressa a forma de ser desses personagens no filme. É claro que o árduo trabalho doméstico de Maria dá-lhe um sentido prático à vida. Ela é representante de um gênero oprimido: o gênero feminino, obrigado ao trabalho do lar, cuidar dos filhos e da casa. Na ótica do fordismo clássico, o lugar da mulher era o lar, executando múltiplos trabalhos domésticos. Por exemplo, logo que consegue o emprego, Ricci observa: “Há trabalho até para você”. E arremata: “Tem que apertar o boné que está largo”. Isto é, caberia a Maria apenas cuidar do homem provedor. A seguir, Ricci mostra a ela o local da nova empresa. Exibe a ela a empresa como se fosse um troféu. Diz ele, observando, com ela, da rua, através da janela. “Cada um tem o seu compartimento. Vê como é grande”. Alguém fecha a janela, impedindo que Maria veja o interior do local de trabalho. É um gesto simbólico de uma intercessão social. À mulher caberia apenas observar a domesticidade. Estamos diante de uma sociabilidade fordista primitiva, e, é claro, de uma cultura popular italiana machista.

As relações de Antonio Ricci com a mulher contêm elementos de carinho e opressão cultural masculina. Ele a recrimina não apenas no caso da vidente, mas, logo ao perder a bicicleta, não se dirige a casa, para contar à mulher, mas sim ao amigo Baiocco. Ao ver Maria, Ricci diz: “Não venha com lamentação. Não fui em casa para não ouvir lamentações”. E ela diz: “Quem está se lamentando?” A partir de certo momento, Ladrões de Bicicleta é o filme de um homem desesperado que busca seu meio de trabalho. Maria não aparece mais. Estamos diante apenas de Antonio Ricci e seu filho Bruno imersos na selva da proletariedade italiana do pós-guerra.

Mas Maria não é apenas uma mulher de sentido prático, imersa na domesticidade, mãe de dois filhos pequenos, que aceita a servidão machista. Ela é uma mulher de necessidades religiosas no sentido amplo. Maria é supersticiosa, possuindo crenças na magia. Talvez seja a expressão da alienação proletária no plano espiritual. É através da crença religiosa (ou mística) que ela organiza seu mundo interior. O marido a recrimina por procurar a vidente. Ela tinha pedido à vidente que o marido encontrasse emprego. O marido a recrimina por apelar a uma vidente: “Mas não é possível. Uma mulher como você, que tem dois filhos e a cabeça no lugar, acredita nestas bobagens, nestas besteiras?” E diz: “Jogando dinheiro fora. Não sei mesmo o que tem na cabeça. Não poderia gastar melhor?”. Mas a magia era o último recurso espiritual de Maria.

Na verdade, a magia era uma resposta emocional a uma situação dramática: a situação do desemprego de longa duração, com a família Ricci imersa na carência extrema. Além disso, o casal estava com um filho recém-nascido. Enfim, era preciso transformar o mundo. Observa Sartre: “Quando os caminhos traçados se tornam muito difíceis ou quando não vemos caminho algum, não podemos mais permanecer num mundo tão urgente e tão difícil. Todos os caminhos estão barrados, no entanto é preciso agir. Então tentemos mudar o mundo, isto é, vivê-lo como se as relações das coisas com suas potencialidades não estivessem reguladas por processos deterministas, mas pela magia”.

O que significa que o apelo à vidente, um recurso mágico, era uma resposta emocional da mulher e, mais tarde, do homem desesperado à situação da proletariedade extrema. Diante da aguda contingência da vida, mulheres e homens se lançam a uma nova atitude não consciente, pois não foi objeto de uma reflexão, mas sim a captura de relações novas e de exigências novas. A alienação mágica, como a alienação religiosa, decorre de situações sociais precárias e de individualidades de classe imersa na contingência.

A proletariedade de Maria possui um intenso lastro emocional e suas demandas à vidente tinham um conteúdo social: ela se dirigiu à vidente não para lamentar um amor frustrado ou um imbróglio familiar, mas sim para pedir um emprego para o marido desempregado. Mais tarde, Ricci, desesperado, iria consultar a vidente sobre o paradeiro de sua bicicleta, que não era só uma bicicleta, como salientamos, mas sim meio de trabalho, passaporte para a inclusão social e o acesso à sociabilidade burguesa.

Ao chegar em casa, sem saber o que fazer, Antonio Ricci senta-se desalentado na cama. Precisa de uma bicicleta para conseguir o emprego como colador de cartazes. Enquanto ele está paralisado pela frustração, após lamentar que não devia ter empenhado a bicicleta, maldizer o dia em que nasceu e que valia mais a pena se matar, Maria, sua mulher, age. Como salientamos, ela possui um sentido prático e encontrou uma solução para o problema do marido: vai empenhar os lençóis da cama do casal. Diz ela: “Podemos dormir sem lençóis, não acha?”. Enfim, Maria decide empenhar o enxoval do casal.

São lençóis do enxoval do casal Ricci, lençóis de linho e algodão com um valor sentimental. Decide empenhá-los para depois, com o dinheiro do penhor, resgatar a almejada bicicleta. Ao resgatar a bicicleta, Ricci constata que será obrigado a pagar juros. Talvez ele tenha empenhado por 6.000 liras a bicicleta, e vai resgatá-las a 6.100 liras. Na verdade, a loja de penhor é um negócio capitalista, que oferece crédito às classes proletárias através do empenho de bens pessoais de valor, cobrando, depois, juros pelos resgates dos bens empenhados.

O proletariado é uma classe social despossuída dos meios de produção da vida material. Talvez o que possa possuir são bens pessoais de valor, com um lastro afetivo e sentimental, receptáculos de memória de vida, que, diante de situações de carência extrema, podem ser alienados na loja de penhor. Ao empenhar um bem de valor afetivo para satisfazer necessidades da existência material, os proletários submergem noutro tipo de alienação. Aliás, a existência proletária é um complexo de múltiplas alienações ou perdas, isto é, perdas do meio de produção e do produto do trabalho, perdas (ou não identidade) com a atividade produtiva e perdas da relação humano-genérica consigo mesmo e com os outros (a alienação religiosa é um sintoma existencial dessa alienação da vida genérica do homem deslocada para Deus ou forças mágicas contingentes).

Mas a perda da genericidade humana ocorre também através da perda de objetos de valor afetivo e receptáculo de memória pessoal, alienados em prol da satisfação de necessidade da existência material. Ao perder um bem de valor, o proletário perde uma parte de si. Entretanto, ao empenhar um bem pessoal, o proletário não o perde no sentido preciso da palavra. Ele apenas se aliena dele por um lapso de tempo, que rende juros para a loja de penhor e que, por conseguinte, através dessa alienação, permite ao proletário ter acesso a um quantum de dinheiro que visa a satisfazer uma necessidade imediata.

É claro que depois, pode resgatar o bem pessoal e reencontra-se com seus objetos de memória pessoal. Entretanto, sabemos que a proletariedade extrema invalida ou restringe a possibilidade de resgate do objeto de valor. Desse modo, ao recorrer à loja de penhor, o proletário expõe mais um elemento de sua condição estranhada, que o obriga a alienar não apenas a força de trabalho, mas elementos compositivos de sua memória pessoal, objetos de estima com valor efetivo.

Essa passagem do filme nos leva a refletir sobre a relação do homem com seus objetos de uso pessoal. A cena da loja de penhor nos remete a discutir dimensões da alienação do trabalhador proletário desempregado, isto é, imerso na situação de proletariedade extrema. Os objetos de uso pessoal carregam em si nossa marca pessoal. É um receptáculo de memória de experiências passadas, onde objetos de uso pessoal se tornam signos de momentos de graça e afetividade. Por exemplo, o enxoval do casal Ricci, penhorado por Maria, não era um mero objeto de valor, a que a loja de penhor atribuiu o preço de 7.500 liras. Enquanto objeto de valor serviu para ser penhorado e o casal Ricci pôde, desse modo, resgatar a almejada bicicleta. Entretanto, ele representava algo mais: a memória de alguém que o presenteou ou de algum momento importante da vida afetiva do casal Ricci. A loja de penhor só avalia o valor de troca. Mas o objeto tem em si a marca das memórias que carregamos.

É o que Peter Stallybrass considera o fetichismo dos objetos de uso pessoal que se distingue do fetichismo das mercadorias. O fetichismo dos objetos de uso pessoal é um elemento de positividade, pois expressa a marca que imprimimos nas coisas. Isto é, os objetos carregam nossa memória pessoal. O fetiche que impregna as coisas é parte de nós e representa uma subversão do ideal do eu autonomamente determinado. Nós somos também constituídos pelas coisas que marcaram nossas experiências de vida. Na verdade, o problema é o fetichismo da mercadoria em que a particularidade material (e imaterial, isto é, afetivo-emocional) da coisa está subsumida ao valor de troca. Assim, a coisa aparece como valor suprassensível.

O fetichismo da mercadoria tende a abolir a conexão que as coisas têm com a natureza física e com as relações materiais (e imateriais) que surgem a partir disto. Ao incrementar a obsolescência planejada das coisas, dos produtos-mercadorias, o capitalismo contribui para desencantar os objetos de uso pessoal, desvalorizando não apenas o valor de troca, mas principalmente o valor afetivo e as relações imateriais que mantemos com as coisas como elemento compositivo de experiências do passado.

O que Meszáros denominou de taxa decrescente de valor de uso dos produtos-mercadorias expressa, portanto, uma dimensão da alienação do trabalhador proletário. Ele se aliena das coisas como objeto de experiência pessoal. Ao penhorar uma coisa, o proletário expressa uma alienação que hoje, com o incremento da obsolescência planejada das mercadorias (e vivemos num mundo de mercadorias), é mais ampla que nunca. As coisas não mais carregam nossas memórias, ou, pelo menos, somos obrigados a não nos fixarmos nela. Tudo se desmancha no ar e se desmaterializa. A civilização do capital impede que o sujeito se fixe em objetos pessoais que se tornam meras mercadorias descartáveis.

Ao retirar a bicicleta na loja de penhor, uma bicicleta da marca Fides (por ironia, em latim, significa “fidelidade”), Antonio Ricci e sua família encontram um passe para a inclusão social. Por alguns momentos, a família Ricci está feliz. No dia seguinte, ao se apresentar no emprego, Ricci carrega literalmente a bicicleta (ou será que é o contrário – é a bicicleta que o carrega?). Um empregado diz: “Coloque-a no chão. Está com medo?”. Parece até que se prenuncia algo com a bicicleta de Ricci. O chefe da seção diz a ele: “Desça essa bicicleta”. Enfim, a bicicleta é o troféu de cidadania salarial de Antonio Ricci (na manhã seguinte, antes de sair para trabalhar, o filho Bruno limpa a bicicleta com carinho especial e descobre inclusive que ela está com um pequeno amasso. Diz ele: “Sabe-se lá como cuidam delas. Eu teria falado. E depois não pagam para o conserto!”).

Ao sair da empresa, a mulher o espera. A satisfação do casal é visível. Ele tem que se apresentar amanhã, sábado, às 6h45min. Ele sai da empresa com uniforme e boné da ocupação de colador de cartazes. “Há trabalho até para você”, diz para Maria. “Tem que apertar o boné que está largo”, expressando a cultura da domesticidade que o macho italiano imputa à mulher proletária. Como discutimos, nesse momento, coloca-se, nas entrelinhas, uma questão de gênero. Ora, pode-se dizer que não é necessariamente uma cultura da domesticidade, tendo em vista que a mulher proletária poderia ser obrigada, por força da necessidade, a sair de casa para trabalhar. Entretanto, ela estaria imersa na dupla jornada, pelo menos, pois os trabalhos domésticos, em geral, na cultura machista, seriam atribuídos a ela.

Naquele momento, Ricci levanta a esposa para que ela observe, pela janela aberta, a sala de escritório da empresa de cartazes que ele representa. Está orgulhoso. Diz ele: “Cada um tem seu compartimento. Vê como é grande?”. O proletário empregado, de certo modo, no plano da consciência contingente de classe, identifica-se com a empresa. Ele torna-se parte dela. E nas condições de crise social, com a disseminação da proletariedade extrema, torna-se mais intensa a projeção fetichista do eu na representação da empresa capitalista.

Nas condições de aguda crise do mercado de trabalho, o proletário empregado, como Ricci, adquire um status privilegiado que tende a afastá-lo da percepção proletária do mundo. Por isso a dificuldade objetiva de passagem da consciência de classe em si para a consciência de classe para si. Num certo momento, Ricci diz para Maria: “Antes davam até sapatos”. O que significa que a categoria de colador de cartazes dessa empresa sofreu um processo de precarização, isto é, ocorreu uma perda de benefícios salariais. Mas a precarização não atinge Ricci, empregado recém-contratado que considera o emprego como uma “dádiva dos céus” (pelo menos, Maria irá, logo a seguir, agradecer à vidente a graça alcançada).

Nesse caso, Ricci não viveu a experiência de precarização da categoria profissional de colador de cartazes. No plano da objetividade da sua consciência de classe não está posta a experiência vivida e percebida da precarização. Ele entra num novo estatuto de precariedade que garante a ele boné e uniforme, mas não sapatos para a nova atividade profissional. Para ele é o bastante. E diz, com orgulho: “Mas a quinzena é boa. Seis mil mais o abono familiar e umas horas extras…”. Ricci iria depois, mais uma vez, fazer os cálculos do ganho salarial do novo emprego.

Antonio Ricci é um homem que calcula. A condição de proletariedade exige constantes cálculos para que possamos aferir os ganhos salariais, buscando uma compensação íntima pela interversão da atividade vital em atividade estranhada. Ricci calcula para “sonhar” com uma vida digna de cidadão do mundo burguês. Mas ele calcula para dizer para si que aquilo vale a pena. O salário é um elemento exterior à atividade do trabalho que “valida” o estranhamento do homem no interior do processo de trabalho. É um elemento exterior que dá sentido à atividade do trabalho estranhado (por exemplo, no processo de trabalho fordista-taylorista costumava-se dizer que “ganha-se a vida, perdendo-a”).

Por isso, cada vez que Antonio Ricci calculava seus ganhos salariais, é como se ele nos dissesse que aquele emprego o fascina e o atrai não pelo que é em si, mas pela sua determinação exterior, isto é, pelo salário pago, representação do fetiche do dinheiro que o atrai e o seduz, na medida em que expressa sonhos de consumo e de inclusão social no mundo social degradado pelo desemprego. Ricci é uma individualidade de classe junto a fetiches sociais.

Em Ladrões de Bicicleta, o mundo do trabalho proletário devassa todos os homens. Pela manhã, o filho Bruno acompanha o pai que o deixa no local de trabalho. O pequeno Bruno trabalha como engraxate de rua. Ladrões de Bicicleta é um filme do mundo do trabalho que aparece de diversos modos, isto é, como emprego público e emprego privado, empregos de carreira e empregos precários, desemprego de longa duração e exclusão social através da presença insistente do lumpemproletariado. Por todos os lados, afirma-se o mundo do trabalho estranhado como condição da humanidade do capital nas condições históricas da Itália devastada do pós-guerra.

O filme Ladrões de Bicicleta expõe com vigor a condição de proletariedade em sua dimensão extrema. Todos são proletários no filme de De Sica, mesmo os funcionários públicos ou artistas que aparecem por alguns momentos. Como são proletários, despossuídos da propriedade dos meios de produção, são obrigados a se vender para o capital privado ou para o Estado; ou então, a assumirem uma atividade de trabalho por conta própria (o que não deixa de ser atividade proletária, comum tanto ao lumpesinato, incapaz de se integrar no mercado de trabalho, quanto aos artistas da “troupe” de Baiocco, amigo de Ricci).

O que ocorre com Antonio Ricci em Ladrões de Bicicleta é um ato infraordinário, isto é, um evento infra-histórico que está nas páginas policiais, mas não nos livros de história. A tragédia pessoal de Ricci possui uma dimensão kafkiana. Joseph K., personagem do romance O Processo, de Franz Kafka, busca de forma desesperada a sua absolvição. Antonio Ricci busca de modo obsessivo a sua bicicleta, a coisa que lhe permitirá ter acesso ao mercado de trabalho, isto é, tornar-se um proletário incluído no emprego formal, saindo do mundo nebuloso do desemprego de longa direção, que conduziu alguns para o campo da criminalidade e do inferno social.

Qual o significado oculto do furto da bicicleta de Antonio Ricci em Ladrões de Bicicleta? Primeiro, ele não é vítima do capitalista que o expropria ou do sistema do capital. Pelo contrário, a sociedade do capital lhe concede uma oportunidade de emprego, convocando-o num ato de sorte. Na verdade, Antonio Ricci é vitima de sua própria classe. É vitima do lumpemproletariado, isto é, a fração andrajosa de sua classe social. Este é o primeiro elemento que queremos destacar.

Depois, o ato do furto ocorre no interior do processo de trabalho e não fora dele. Por alguns segundos, antes, quando Maria visita a vidente pela primeira vez, temos a impressão que o furto da bicicleta iria ocorrer naquele momento. Mas não ocorre. Ele acontece enquanto Ricci está entretido, colando cartazes. Talvez o furto da bicicleta tenha ocorrido porque Ricci tenha se concentrado em demasia no processo de trabalho. A atividade de colar cartazes exige do empregado certo grau de inteligência. Ao concentrar-se demasiadamente na atividade estranhada, o “lúmpen” furtou a sua bicicleta, alienando o passaporte da cidadania salarial. Esse detalhe talvez seja uma crítica sutil do processo de trabalho capitalista contido na narrativa de Ladrões de Bicicleta. O empregado que se concentra em demasia no processo de trabalho tende a perder seu instrumento de trabalho, isto é, sua condição de ingresso na sociedade do trabalho assalariado, privilégio em tempos de barbárie social.

Além disso, é interessante analisarmos a ocupação de Antonio Ricci: colador de cartazes. Ele trabalha na divulgação de espetáculos da sociedade da mercadoria, espetáculos-mercadoria com destaque para a fábrica de sonhos, os filmes de Hollywood. A comunicação mural é intensa na Roma de 1947, onde se divulgavam não apenas filmes de Hollywood, mas também comunicados os mais diversos. A atividade de colador de cartazes é socialmente reconhecida (ele trabalha uniformizado para uma grande empresa do ramo). A bicicleta de Ricci é furtada enquanto colava, de forma desajeitada, cartazes de divulgação do filme Gilda, com Rita Hayworth. Ele ainda aprendia a nova profissão que exigia certas habilidades no ato de afixar e colar os cartazes (“Para este trabalho precisa de inteligência; precisa de olhos e jeito…”, observava o instrutor de Ricci).

O filme Gilda, de Charles Vidor, com Glenn Ford e Rita Hayworth fez imenso sucesso em 1946. Tratava da história de um jogador em Buenos Aires que consegue ascender na vida indo trabalhar num cassino, tornando-se braço direito de um megainvestidor que administra negócios escusos, envolvendo-se com a mulher do patrão, a beldade Rita Hayworth, sua ex-namorada. O destaque é a relação neurótica entre Glenn Ford e Rita Hayworth, uma relação de ódio que oculta intenso amor. O que é interessante é que no filme clássico de Charles Vidor, uma trama banal, a relação amorosa sobrepõe-se a um pano de fundo político e social da maior dimensão: o domínio do mundo por um magnata monopolista (a narrativa hollywoodiana esvazia, desse modo, o caráter de classe da dominação imperialista, reduzindo-o à mera idiossincrasia de personagens ambiciosos e sinistros).

No estilo de Hollywood, dramas singulares de natureza banal se colocam num primeiro plano, tendo como pano de fundo situações históricas. Este é o estilo de Hollywood que o neorrealismo de De Sica busca contestar. Em Ladrões de Bicicleta temos uma forma narrativa que busca contrapor-se às narrativas de Hollywood. O drama de Antonio Ricci é o drama do homem comum, o anti-herói problemático (como Carlitos de Tempos Modernos, de Charles Chaplin). Na verdade, Ricci vive uma tragédia pessoal de candente conteúdo social oculto pela natureza infraordinária da sua tragédia humano-singular. Aliás, enquanto ato infraordinário, o furto da bicicleta de Ricci não desperta comoção social. É a tragédia do indivíduo de classe incapaz de se autoconstituir como individualidade contingente nas condições da sociedade civil burguesa. Ricci vive uma tragédia pessoal-singular de aguda dimensão universal-concreta. Não é um mero drama pessoal com intensa singularidade individual ou familiar (como, por exemplo, os dramas pessoais dos clientes da vidente, que tratam de desilusão amorosa ou de casos de embriaguez em família); nem muito menos, um drama social em que a singularidade dos elementos da tragédia esteja impregnada de conteúdo sócio-político de maior envergadura, como o drama dos proletários agrícolas de Vinhas da Ira, de John Ford, em que a tragédia de Tom Joad, por exemplo, é incompreensível sem vinculá-la com o drama social dos “Oakies” expulsos de suas terras pelo capital financeiro. O drama dos “Oakies” é uma questão social, mas o drama de Antonio Ricci é um drama pessoal-singular. Enfim, sua tragédia pessoal é uma tragédia pessoal vinculada a uma candente particularidade de classe. É a tragédia pessoal de um indivíduo de classe na multidão, multidão que não apenas oculta sua condição de classe, mas esmaga sua situação de singularidade pessoal (Ricci é proletário, mas nem todo proletário é Ricci e teve sua bicicleta furtada naquelas determinadas condições).

Na verdade nos perguntamos: O que existe por trás do desespero de Antonio Ricci em busca de sua bicicleta furtada? Existe o medo de perder o emprego, medo de natureza social, pois só poderia ocorrer na sociedade do trabalho estranhado e da condição de proletariedade, determinada pela contingência. Através da tragédia pessoal de Antonio Ricci podemos vislumbrar o trabalho abstrato como categoria fundamental da sociabilidade burguesa.

Ladrões de Bicicleta é um filme que expõe a indiferença do mundo para com o drama do homem proletário ou do homem comum. É um drama existencial que expõe uma existência que insiste em ser notada, buscando se destacar na multidão. Mas Ricci irá se frustrar irremediavelmente. É perceptível a indiferença protocolar da polícia para com sua tragédia pessoal. Ricci vive num universo social fragmentário onde cada homem e mulher está imerso em seu particularismo de classe, subsumidos à pseudoconcreticidade do cotidiano social.

A tragédia pessoal de Ricci possui candente conteúdo de classe. Ele é uma individualidade de classe que está subsumido, por um lado, ao reino da necessidade (ele precisa de um emprego para viver); e, por outro, ao reino da contingência (ele teve o azar de ter sua bicicleta furtada). Como salientamos, Ricci é proletário, mas nem todo proletário teve sua bicicleta furtada. Eis sua tragédia pessoal.

Portanto, a tragédia pessoal de Ricci é um fato pessoal que não assume, de imediato, dimensões de fato social ou geral, no sentido de Durkheim. É claro que o filme Ladrões de Bicicleta explicita fatos sociais, como, por exemplo, o alto índice de desemprego aberto na Itália do Pós-guerra e o crescimento da miséria social e criminalidade. Mas o que o neorrealismo de De Sica buscou destacar no interior desse fato social foram os elementos infraordinários e as tragédias pessoais-singulares de homens proletários comuns, narrativas de vida com intenso conteúdo universal-concreto, capazes de preservar a candente singularidade da tragédia pessoal a qual expressa elementos intensos da proletariedade extrema.

Como elementos constitutivos da situação de proletariedade extrema, podemos destacar a contingência, isto é, ser levado pela sorte ou pelo azar; a incomunicabilidade e a intensa solidão pessoal, que decorrem da estrutura comunicativa do mundo da mercadoria. Por exemplo: Ricci é um homem solitário, imerso na multidão. Quem consegue sentir sua tragédia pessoal? Talvez apenas o amigo artista. A solidão de Ricci é derivação da miséria social do mundo burguês e da fragmentação da sociedade civil burguesa imersa num particularismo social que isola cada individuo de classe, incluído e excluído, em seu pequeno mundo da cotidianidade instrumental. É o que constatamos, por exemplo, no caso da polícia e políticos, igreja e assistencialistas, comerciantes concorrendo entre si, como na Feira de bicicletas na Praça Vittorio Emmanuel, o mundo “autônomo” do lumpesinato e da pequena-burguesia que almoça em família em restaurantes de classe, os torcedores de futebol numa tarde de domingo, muitos deles operários e funcionários públicos indiferentes à experiência trágica de Ricci, o que expõe a singularidade de seu drama pessoal.

Outro detalhe importante é que quem furta Ricci é um excluído, um “lúmpen” (com boné de alemão), que “invade” seu processo de trabalho e aliena de si sua condição objetiva de trabalho. Desse modo, é o lumpemproletariado que expropria/aliena a posse e a propriedade de seu instrumento de trabalho, não outro capitalista, como nos filmes Vinhas da Ira e A Terra Treme. Aliás, no mundo social de Ladrões de Bicicleta é intensa a presença não apenas de proletários desempregados, como é o caso de Antonio e da multidão que busca uma vaga de emprego, logo no inicio do filme, mas de lumpemproletários. É interessante que, ao ser treinado na atividade de colador de cartazes, presenciamos uma dupla de meninos de rua, que tocam acordeão, abordando os empregados, tentando obter deles alguma esmola. É mais um elemento premonitório da tragédia de Antonio Ricci, protagonista “perseguido” pelo mundo do lumpemproletariado. Logo depois, o recém-empregado teria sua bicicleta furtada por um marginal, jovem criminoso que aborda Ricci, não mais, é claro, exibindo talentos artísticos, como a dupla de meninos de rua, mas sim talentos criminosos. Mas o jovem com boné de alemão não age sozinho, atua em equipe. Vem acompanhado com pelo menos dois homens que lhe dão cobertura, um dos quais confunde Ricci quando este tenta perseguir o ladrão de bicicleta. O que significa a atuação do crime organizado no furto da bicicleta. Talvez seja uma gangue de ladrões de bicicleta que age em Roma. Eles atacam um membro da classe do proletariado, demonstrando que a concorrência no interior do mundo do proletariado se interverte em saque criminoso. É a barbárie social inscrita nas condições da proletariedade extrema.

Após perder a bicicleta, acompanhamos o calvário de Antonio Ricci. Ele se dirige à delegacia de polícia e encontra um tratamento protocolar. A brigada policial (o “núcleo celere”) da secretaria de polícia em Roma está envolvida com o policiamento de um comício e com tarefas cotidianas. O fato pessoal de Ricci, o furto de sua bicicleta, não é objeto de interesse urgente dos policiais, mais preocupados com fatos políticos ou fatos burocráticos. O drama trágico do homem comum não lhes interessa. Ricci se interroga: “Podem fazer alguma coisa?”. O policial diz: “Se tiver tempo procure você”. E mais adiante observa: “Só faltava! Acionar a brigada móvel para procurar bicicletas”. Ricci só conseguiu fazer o Boletim de Ocorrência. Ele teria que procurá-la sozinho ou com ajuda de amigos.

Ao final do dia, sábado, Ricci retorna para casa, submetendo-se à fila do transporte coletivo. O ônibus está lotado. Ele busca, primeiro, o filho Bruno. Na volta, nada conversa com o menino. Bruno pergunta: “Papai, e a bicicleta? Quebrou?” e Ricci, introspectivo, dissimula: “Sim, quebrou”. Ricci é um homem imerso em si, não dado a diálogo com mulher e filho. Talvez tenha dificuldades em verbalizar suas angústias. Deixa Bruno em casa, mas se dirige em busca de amigos.

Em seu condomínio residencial, na periferia de Roma, Ricci entra num local onde ocorre uma reunião política. Temos o seguinte discurso: “Se não há trabalho, as pessoas não são empregadas…”. E pondera: “…Com o seguro-desemprego não se resolve nada, o seguro avilta o trabalhador; não dura e não repara para o que é preciso”. A seguir, a proposta política: “Aqui é necessário um grande programa de obras públicas”. Talvez seja um candidato do Partido Comunista conversando com sua base eleitoral. Mas Ricci não se interessa pelo debate político. As grandes questões sociais não o preocupam nesse momento. Ele está imerso em seu particularismo estranhado e em sua dramática proletariedade trágica.

Antonio Ricci busca o amigo Baiocco, chefe de uma troupe de artistas. Ricci vai para outra sala, próximo do local da discussão política, onde Baiocco dirige o ensaio de uma apresentação musical com artistas imigrantes. Observa-se que ele tenta fazê-los cantar sem o sotaque meridional. É um traço da sociedade italiana do Norte e seus preconceitos com imigrantes do Sul. Várias vezes o artista é obrigado a repetir a palavra “Gente”. Ricci diz a Baiocco, de forma direta: “Roubaram minha bicicleta. No Flórida. Enquanto colava cartazes. Tem que me ajudar. Tenho que encontrar a bicicleta”. Baiocco parece saber tratar com problemas de furto de bicicleta, ilícito bastante comum na Roma de 1947. Parece que há um negócio afluente de furtos de bicicletas. Ele diz que só resta procurar na Praça Vitório Emanuel, local da feira de bicicletas. Baiocco diz: “Não será a primeira que encontraremos”. E observa: “Os ladrões se desfazem logo da bicicleta. Não ficam com elas. É o único lugar [a Feira de bicicletas na Praça Vitório]”. De repente, a mulher de Ricci aparece no local. Ele diz com rispidez: “Não venha com lamentações”. Ricci evita conversar com a mulher sobre o ocorrido. É um homem introspectivo, não dado a comunicabilidade com mulher e filho.

Logo pela manhã cedo de domingo, Baioco e alguns assistentes, Ricci e o filho Bruno, chegam à feira de bicicleta na Praça Vittorio. Procuram uma Fides tipo ligeiro 1935. Baiocco sabe que os ladrões desmontam a bicicleta para vendê-las por parte. Por isso devem procurar as partes da bicicleta (pneus, pedais, bombas e campainhas). Caso encontrem as partes, podem remontá-la depois. A feira de bicicleta é um universo da informalidade, com uma quantidade imensa de bicicletas e peças de bicicletas em inúmeras bancas. Parece um pesadelo para Ricci procurar pelos pedaços de sua bicicleta, seu instrumento de trabalho fragmentário, indeterminado e oculto.

O filho Bruno, sozinho, vasculha as bancas da feira de bicicletas. Num certo momento, ele é assediado por um homem estranho, que busca cativá-lo. Talvez o homem estranho seja um pedófilo. Na verdade, o mundo social de Ladrões de Bicicleta é um mundo do estranhamento e de riscos constantes de derrelição e de perda. Antonio Ricci, o protagonista proletário, está imerso na sociedade do risco. Mas logo o pai de Bruno o encontra: “Não se afaste mais de mim”, diz Ricci. Porém, eles nada encontram.

Um detalhe: na feira, expostos em bancas de revistas, inúmeros pôsteres de artistas de Hollywood. Na Roma proletária de 1947, uma presença constante são os ícones da “indústria das ilusões”, pôsteres de artistas do cinema. É o que verificamos na feira de bicicletas ou na casa de prostituição aonde Ricci iria, mais adiante, encontrar o suposto ladrão de sua bicicleta. O próprio Antonio Ricci, protagonista do filme, tinha como ocupação colar cartazes.

Depois do fracasso em encontrá-la na Praça Vitório, Ricci e o filho Bruno saem pela manhã de domingo, no centro de Roma, em busca de algum indício. Num certo momento, cai um “pé d’água”. Talvez a breve tempestade de verão tenha um sentido metafórico: anunciar a entrada de Antonio Ricci e seu filho na odisseia trágica através do mundo do lumpemproletariado. Eles se abrigam da chuva repentina numa pequena cobertura de telhado numa casa de esquina. Ao correr para se abrigar, Bruno escorrega e cai. O pai nem percebe e não demonstra se importar. Ricci é um homem indiferente. É a condição do proletário em situação extrema. Mas o protagonista proletário é parte do mundo do capital. A indiferença de Ricci é expressão da indiferença do mundo social do capital. A alienação de Ricci diante dos perigos do filho é mais um elemento do complexo de alienação na qual está imerso o protagonista proletário: não apenas alienação do produto da atividade do trabalho e do processo de trabalho, mas alienação de si e dos outros. Na verdade, o protagonista proletário está alucinado por uma obsessão-fetiche: a busca de sua bicicleta.

Ricci e Bruno abrigam-se da chuva repentina ao lado de um grupo de jovens em traje de seminaristas que trocam palavras em alemão. É uma cena curiosa que traduz uma sensação de estranhamento. O pequeno Bruno e seu pai parecem ter a sensação de estarem imersos num mundo de indiferença diante da sua tragédia familiar. Logo a seguir, após o término da chuva, Antonio Ricci observa, logo adiante, que o jovem ladrão de sua bicicleta conversa com um velho indigente. Esta é a primeira aparição do ladrão de bicicleta, espectro do “lumpemproletariado” que persegue o protagonista proletário. Ricci corre para tentar alcançá-lo, mas não consegue capturá-lo. Na verdade, a indiferença do mundo social que cerca Antonio Ricci é expressa nesta cena: Ricci persegue o ladrão de bicicleta, gritando “Peguem-no! É ladrão”, mas ninguém o ajuda. Apela para os outros, mas não obtém nenhum apoio. Essa cena demonstra o que salientamos acima: o mundo social do capital é um mundo da indiferença total. Ricci nos faz perceber que está sozinho em sua busca inglória, ao lado do filho Bruno.

Ele penetra, a partir daí, num estranho mundo da lumpemproletariedade. O cenário urbano é o centro velho de Roma, com suas ruas estreitas e largas praças e avenidas, com antigas construções de décadas passadas, ausente de traços urbanísticos da modernidade do capital. A busca de Ricci é marcada pela urgência. O pequeno Bruno o acompanha. Ele o apressa. Bruno não tem tempo nem para urinar. Ao não alcançar o ladrão de bicicleta, Ricci persegue o velho mendigo, suposto amigo do ladrão de bicicleta. Ele o pressiona para dizer onde mora o ladrão de bicicleta: “Aquele moço que estava com você; preciso falar com ele. Onde posso encontrá-lo?”. O velho pergunta: “Por quê? O que lhe fez?” Ricci insiste: “Preciso lhe falar sobre um assunto particular”. O velho desconversa: “O que posso lhe dizer? Não sei. Não o conheço”. Ricci insiste, mas o velho responde: “Deixe-me ir. O que tenho a ver com isso? Não deixam em paz nem um pobre desgraçado. Como pode?”. Antonio Ricci nada consegue. O que encontra é a indiferença do velho mendigo cujo silêncio explicita uma sinistra solidariedade entre o lumpemproletariado.

Naquela manhã de domingo, o velho mendigo se dirige a uma igreja onde voluntários católicos atendem indigentes e miseráveis das ruas de Roma. Ricci o persegue e é conduzido a um local de obras de caridade da pequena-burguesia tradicional de Roma. Uma organização católica assistencialista, constituída por homens e mulheres das classes médias da cidade, utiliza nas manhãs de domingo o local da igreja, para prestar serviços voluntários ao lumpemproletariado da metrópole, isto é, cortar cabelos e fazer barba, fazer orações e servir almoço para os miseráveis (por exemplo, numa cena um advogado faz a barba do velho mendigo perseguido por Ricci). Naquele momento, o protagonista proletário está submerso no antro assistencial da lumpemproletariedade. Ele enreda-se numa teia de indiferença gritante dos múltiplos particularismos.

Desse modo, Ricci apela para o mendigo, na igreja, entre cânticos sublimes: “Tenho que encontrar aquele rapaz”. Diz o mendigo: “Deixe-me em paz. Não o conheço”. Ouvimos o cântico dizer: “… sentindo a pureza da alma”. O protagonista proletário, desesperado, tenta convencer o mendigo a colaborar. Primeiro, apelando para seus interesses egoístas: “É um negócio que interessa ao senhor também. Vai dar para ganhar um dinheirinho. Onde está?”. Mas o velho indigente resiste: “Sou obrigado a lhe dizer onde mora?”. Ricci exclama: “É sim. E se não disser, vou levá-lo à polícia”.

Mas o mundo social em que Ricci está enredado é um mundo opaco. A indiferença expõe a opacidade. Quais as provas que ele tem contra o velho mendigo? O miserável apela: “O que eu fiz? O que eu tenho a ver com ele?”. O cântico ressoa: “… as estradas da dor e da privação”. Ricci perde a paciência: “Tem que me dizer onde está e pronto”. Talvez a indisposição do velho indigente em colaborar exponha, por um lado, uma teia de sinistra solidariedade entre miseráveis do lumpemproletariado: mendigos e meliantes, excluídos do mercado de trabalho, contra operários e empregados assalariados. O que os distingue é a posse do dinheiro como capacidade aquisitiva, isto é, status e prestígio diante do mercado de trabalho.

Por outro lado, podemos também especular (é o que a estrutura narrativa do filme sugere) que Antonio Ricci está submerso num mundo de incertezas e de dubiedade delirante. Quem poderia nos assegurar que o velho mendigo conhecesse, de fato, o ladrão de bicicleta? Talvez o jovem com boné de alemão o tivesse abordado apenas para obter uma informação. Do mesmo modo, como iremos verificar mais tarde, quem poderia nos garantir que o jovem com boné de alemão, que Ricci persegue pelas ruelas do centro de Roma, é, de fato, o ladrão de bicicleta, apesar da notável semelhança? O filme nos envolve no jogo especular da tragédia de Antonio Ricci (especular no sentido daquilo que é o que é referente a espelho; que reflete; que tem as propriedades de um espelho). Ora, existe um mundo de semelhanças e verossimilhança entre miseráveis de Ladrões de Bicicleta. Um proletário (e lumpemproletário) se parece uns com os outros. O mundo da proletariedade é o mundo social da multidão – é o que nos sugere o filme de De Sica. Mas a narrativa de Ladrões de Bicicletas expõe o clima obtuso e incerto na qual está imerso Antonio Ricci. A genialidade de De Sica está em tornar o espectador tão confuso quanto o protagonista proletário do filme. Perseguimos, ao lado de Ricci, o ladrão de bicicleta, mas nos deparamos com situações dúbias, prováveis, mas incertas.

Ao dialogar com o velho mendigo, Antonio Ricci apela para seu instinto monetário: “Aliás, estou disposto a lhe dar uns trocados. Ou o levo à polícia…”. Ricci oscila entre convencê-lo através da manipulação de seus interesses egoístas – dar-lhe, por exemplo, alguns trocados para obter a informação desejada; ou apelando para a pura repressão (isto é, levá-lo à polícia). Mas o velho mendigo resiste. Diz não saber nada sobre o ladrão de bicicleta. Exclama: “Eu? Não vou a lugar nenhum. Leve-me até com o diabo. Não estou nem aí”.

O diálogo áspero entre Ricci e o mendigo durante a cerimônia religiosa na igreja assume, a partir daí, ar de gládio metafísico. Ricci diz: “Tem que acabar com isso, senão eu lhe mostro o diabo”. Ora, o diabo se coloca do lado de Ricci. Mas o velho mendigo desconversa e consegue fugir. Ao não encontrá-lo, e encontrando-se do lado de fora da igreja, Ricci faz uma observação curiosa: “Só pode ter voado”. Enfim, o velho mendigo “evaporou-se”.

Naquele momento, Antonio Ricci é um homem frustrado. Perde mais uma vez a pista que poderia levá-lo ao ladrão de bicicleta. O pequeno Bruno exclama: “Dava muito bem para esperar pela sopa!” Mas Ricci tem uma obsessão: encontrar sua bicicleta. Grita com o menino: “Fique quieto!”. Ora, Ricci perdeu a bicicleta, mas está à beira de perder algo mais importante: a atenção da mulher e do filho. É um homem proletário, homem alienado, que, aos poucos, se aliena de si e dos outros. A via crucis de Ricci é a exposição de sua aguda alienação em múltiplas dimensões. Em vários momentos do filme o filho quase se perde (por exemplo, é quase sequestrado na feira, desaparece após Ricci e ele saírem da Igreja e é quase atropelado no final do filme).

Desse modo, Ricci não é um homem alienado apenas dos meios de produção ou do instrumento de trabalho (a sua bicicleta), mas é um homem alienado de si. Em certos momentos, “perde a cabeça” e se aliena dos seus entes queridos. O exemplo de Antonio Ricci é a expressão da alienação multidimensional salientada por Karl Marx no Terceiro Manuscrito de Paris, intitulado “O Trabalho Estranhado”. Ele está imerso na proletariedade extrema, quase à beira da lumpemproletariedade (ao cometer o furto de uma bicicleta no final do filme, Ricci ultrapassa a fronteira do mundo da lumpemproletariedade).

Após gritar com o filho e imaginar que o perdeu, ele o reencontra e tenta reconciliar-se. É meio-dia de domingo. A torcida de futebol do Modena (Forza Modena) cruza o centro de Roma (jogam no domingo à tarde, no Estádio Nacional em Roma, os times do Modena e de Roma). Ricci busca reconciliar-se com o filho. É um pequeno momento de parada na odisseia trágica de Antonio Ricci. Ele diz ao filho Bruno: “Vamos, então. Estamos mortos de cansaço. Para que tanta correria? Vamos, então”. A escalada trágica de Ricci encontra um momento de parada. É como se o protagonista proletário se voltasse a si. Como num jogo de futebol, estamos no intervalo.

Um detalhe de cena: ao fundo, enquanto Ricci dialoga com o filho, ao ar livre, um casal de namorados conversa. É o contraste entre o drama da escassez proletária, que em Antonio Ricci assume uma dimensão trágica, e o drama do enamoramento, promessa da utopia afetiva num dia de domingo.

No intermezzo da odisseia trágica de Ricci, ele se dirige com o filho a um restaurante. O garçom lhe diz: “Este é um restaurante, não é uma pizzaria”, o que sugere que é um lugar de “classe média”, empregados e pequenos-burgueses. Nesse caso, uma pizzaria seria um recanto popular. Ricci diz para o filho: “Não vamos comer, vamos encher a cara”. Na alegria de Ricci há uma angústia contida. “… encher a cara” sugere buscar alienar-se, ou esquecer, a tragédia pessoal. Há em suas atitudes elementos de desespero, mas também de esperança e de consolo. É talvez um momento de esperança, buscando se recompor moralmente diante da sua tragédia pessoal.

Em certo momento, Ricci diz: “Mas nós fazemos o que queremos”. Ou ainda: “Vamos comer e pronto. Tem remédio para tudo, menos para a morte”. Um detalhe: a mesa à qual estão sentados Ricci e seu filho Bruno é a única sem toalha. O que é perceptível é que o protagonista proletário e seu filho estão deslocados naquele ambiente de classe média. Ricci pede uma muçarela quente para o filho. Bruno troca olhares com o filho da família de classe média que senta à mesa ao lado. É flagrante o contraste entre a abundância do almoço da família de classe média, provavelmente de algum funcionário público graduado, e o lanche de Bruno (uma simples muçarela quente). Mais uma vez se expõe a condição de proletariedade dos Ricci. O pai percebe a troca de olhares do filho Bruno com a mesa do lado. Diz Ricci: “Para comer como eles, teria que ganhar um milhão por mês”. E arremata para o filho: “Coma. Não pense nisso”. Mas, logo a seguir, é Ricci que volta a lembrar-se de sua desgraça pessoal: “E pensar que estávamos bem”. E faz novamente um cálculo dos ganhos salariais que poderia auferir como colador de cartazes.

Antonio Ricci é um proletário desesperado que busca a bicicleta furtada. Mas é também um homem proletário angustiado pelo espectro do salariato e do fetiche do salário, signo de inclusão no mercado de trabalho. É o salário como meio de subsistência capaz de satisfazer necessidades básicas e necessidades radicais. O que se coloca para a proletariedade extrema é o horizonte da contingência salarial. É o que está no imaginário de Antonio Ricci.

Os números do salário que ele está perdendo ao não possuir mais a bicicleta o perseguem tanto quanto a ânsia em encontrar o ladrão da bicicleta. Ele faz os cálculos na mesa do restaurante: “Pelas contas, com as horas extras, posso te dizer agora. 12.000 de salário mais 2.000 de horas extras, mais o abono familiar que é de 800 liras ao dia. 800 vezes 30. Faça a conta!”, implora a Bruno. Mais uma vez, Ricci está imerso no fetichismo do salário que o persegue mais do que a ânsia em encontrar a bicicleta.

Ele diz, com certa angústia: “O que pedir mais? Melhor que isso… Dá para desistir? Não quero desistir. Entende que precisamos encontrá-la? Ou ficaremos sem comer. O que podemos fazer mais? Temos que voltar lá todos os dias para reencontrar os pilantras”. Um detalhe: ao dizer “pilantras”, Ricci sabe que se trata de uma quadrilha de ladrões de bicicleta.

Na verdade, o espectro da fome e o da necessidade extrema perseguem Antonio Ricci. Como sujeito monetário, Ricci é um proletário constrangido pelo fetichismo do dinheiro, da forma-salário e do espectro da necessidade extrema, que o assola diante da perspectiva do desemprego. Naquele momento, no restaurante, Antonio Ricci teve um breve momento de esperança que se transforma em angústia ao vislumbrar sua condição de proletariedade extrema. Começa o segundo tempo da odisseia trágica de Ricci. Ele deve prosseguir em sua busca desesperada. É curioso que ele diga para o filho Bruno: “Não vamos encontrá-los [os ladrões de bicicleta] com as velas de sua mãe. Não vamos encontrá-los com os santos”. Mas logo a seguir, a próxima cena do filme mostra que ele se dirige para a casa da vidente. É a explicitação em imagens da situação de controvérsia que persegue o protagonista proletário.

Ora, Antonio Ricci é um homem desesperado em aguda contradição íntima que busca resgatar seu instrumento de trabalho. A casa da vidente, sempre lotada de gente, é um local onde homens e mulheres expõem seus dramas pessoais e familiares. Cada um busca orientações sobre o que fazer diante de situações extremas da vida familiar e pessoal. Ao recorrer à vidente, Ricci encontra-se na situação-limite. Antes, ele condenara Maria por acreditar na vidente. Disse ele, peremptoriamente: “Mas não é possível. Uma mulher como você, que tem dois filhos e a cabeça no lugar, acredita nestas bobagens, nestas besteiras?” E disse: “Jogando dinheiro fora. Não sei mesmo o que tem na cabeça. Não poderia gastar melhor?”. Tal como Maria, a magia era também o último recurso espiritual de Antonio Ricci.

Logo que Antonio Ricci e o filho chegam à casa da vidente, assistimos ao seguinte diálogo: “A vida é assim”, diz a vidente para um jovem. “Mas eu tenho medo”, diz o cliente. A vidente retruca: “Entende o que eu falo? Semeie em outro campo. Como pode não me entender, meu jovem?” Percebemos que se trata de um jovem angustiado com uma desilusão amorosa. Estamos diante de um típico problema pessoal de foro íntimo. O jovem empregado (ele se veste como um funcionário público) parece não entender que a jovem pela qual se apaixonou não lhe corresponde.

É perceptível nessa cena que o jovem funcionário público tem uma incapacidade em perceber a realidade das coisas. “É tão fácil de perceber”, diz a vidente. E prossegue: “Para que preparar um terreno ruim. Seria preparar para não colher. Entendeu?” Ora, a vidente procura tornar claro para as pessoas, muitas vezes através de linguagem parabólica (“Para que preparar um terreno ruim. Seria preparar para não colher. Entendeu?”), verdades óbvias da existência pessoal. O fetichismo social, que contribui para a intransparência das relações sociais, e as barreiras inconscientes do sujeito humano impedem uma clara percepção de si e dos outros. A vidente parece possuir uma função sócio-terapêutica. Como o oráculo de Delfos, ela sugere o “conhece-te a ti mesmo”. Na sociedade do fetichismo da mercadoria as pessoas estão imersas em relações sociais estranhadas que impedem não apenas a consciência de classe, mas a consciência de si. O fetichismo da mercadoria é uma objetividade social que nos aliena de nós mesmos e dos outros. Por isso, a necessidade de alguém para nos dizer, muitas vezes, o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues.

O jovem funcionário diz: “Na verdade, não entendo nada”. Diante disso, a vidente torna-se mais direta e incisiva com o cliente obtuso: “Ela não o ama! Tem que esquecê-la! Você é feio, meu filho! É feio!” E depois, dá-lhe alguma esperança: “Há tantas mulheres no mundo! Prepare e semeie outro campo”. Enfim, o drama do jovem feio, que se desilude com a mulher amada, é um drama pessoal de foro íntimo. O que a vidente incita é tão somente a busca da autoconsciência de si. Por isso ela lhe diz: “Você é feio, meu filho”. É algo que alguém precisava dizer-lhe.

Porém, o drama pessoal de Antonio Ricci é de outra natureza. É um drama pessoal de foro social. Possui um complexo de elementos sociais que vinculam a tragédia pessoal à dimensão histórico-universal. De um lado, o furto da bicicleta, que é instrumento de trabalho, garantia de emprego para um proletário desempregado; de outro, os ladrões de bicicletas, grupo de lumpemproletários, imersos no crime organizado, de uma sociedade do trabalho incapaz de dar empregos para todos e que quase obriga um contingente do proletariado a excluir-se e a ter na criminalidade uma estratégia de luta pela existência. Mas possui uma aguda dimensão contingente. Aliás, é a expressão da contingência social que atinge as individualidades de classe.

Entretanto, Ricci teve o azar de ter sua bicicleta furtada. Eis o aspecto da contingência de classe. Diante do mundo fantasmagórico da pseudoconcreticidade burguesa, Ricci decide recorrer à vidente. Antes de atender Ricci, a vidente executa o pequeno ritual necessário. Exclama: “Meu Deus, me dê a luz!”. No mundo contingente do capital, “a luz”, o esclarecimento para indivíduos de classe imersos na pseudoconcreticidade do cotidiano alienado da proletariedade extrema, é dada por um ente estranho. Por isso, atribui-se a Deus o que decorre de uma reflexão íntima capaz de propiciar o autoconhecimento. Por isso, ao mesmo tempo em que contribui para o autoesclarecimento, a vidente reforça as teias da alienação social, pois o conhecimento de si é atribuído a forças espirituais estranhas.

A vidente pergunta a ele: “O que quer?”. E Antonio Ricci diz, quase sussurrando para ela, como temendo expor-se ao ridículo: “Roubaram minha bicicleta”. O que o protagonista proletário traz à vidente não é um problema íntimo-pessoal ou um drama familiar propriamente dito. Ricci expõe um fato infraordinário da condição de proletariedade. Ao mesmo tempo que é uma tragédia pessoal, possui, como salientamos, um denso conteúdo social. Por isso a vidente diz: “O que deseja que eu fale, meu filho. Eu só posso dizer o que vejo”. Mais adiante ela dirá: “Não sei o que dizer. Vá e procure entender”.

Desse modo, a vidente expõe seu método de trabalho. Ela possui um talento para apreender (ou ver) o que as pessoas não conseguem vislumbrar em si ou ao seu redor. Mas trata-se de problemas pessoais de foro íntimo, em que a dimensão moral é candente. A vidente é quase um arauto moral, capaz de incitar as pessoas imersas em singularidades problemáticas à autoconsciência. Mas o problema de Ricci, o furto da bicicleta dele, não é um problema de fundo moral. Na verdade, os problemas sociais da sociedade capitalista não são problemas de cunho moral, mas sim de cunho histórico-estrutural. A margem de intervenção pessoal consciente voltada para a solução efetiva deles é deveras limitada. Exige a ação política e social que transcende o cotidiano de indivíduos de classe.

No reino da contingência do capital, indivíduos de classe estão imersos nas teias da sorte ou do azar. A vidente dá-lhe um conselho possível: “Ouça bem! Ou a encontra logo ou não vai achá-la mais”. E retruca, como se soubesse que lida com pessoas imersas na escuridão íntima, incapazes de enxergar o óbvio ululante: “Entendeu? Ou encontra logo ou não vai achá-la mesmo”. O que a vidente pode fazer é dar-lhe um conselho moral, incentivando-o a agir, não a resignar-se.

Nessa cena, o próximo cliente da vidente é, como o caso do jovem feio, um drama pessoal de foro familiar. Uma mulher lamenta que o marido é uma cruz, pois continua “enchendo a cara”. A vidente recomenda que ela não lhe dê dinheiro. Mas a mulher diz: “O que posso fazer? Ele pega”. A vidente, surpresa, exclama: “Ele pega!”. Enfim, mais uma vez a vidente trata de incapacidades pessoais em lidar com o circulo social íntimo-familiar. A vidente buscar dar-lhe alguma luz. Ora, o mundo da proletariedade extrema é um mundo de escuridão íntimo-pessoal que atinge homens e mulheres em seus dramas cotidianos.

É interessante que, logo ao sair da casa da vidente, Antonio Ricci encontra de novo, por acaso, o suposto ladrão, um jovem rapaz de boné de alemão. Eles trocam olhares. O rapaz, incitado pelo olhar perscrutador, foge. Ricci o persegue pelas ruelas miseráveis do centro de Roma. Nesse momento, o protagonista proletário está no circuito da lumpemproletariedade. Na verdade, desde a perseguição ao velho mendigo, ele se encontra no mundo da lumpemproletariedade, isto é, diante do espectro da exclusão e da marginalidade social. O rapaz fugitivo entra num bordel. As prostitutas estão almoçando. Ricci o persegue gritando: “Patife! Ninguém me ajuda! Fora! Quero falar com esse aí!”. Pela primeira vez, Ricci expressa sua solidão pessoal. Sabe que ninguém o ajuda, só encontrando obstáculos em seu caminho. Diz que o rapaz o arruinou. Exclama: “Jogou-me na rua! Esse malandro!”.

É o momento da acusação de Ricci. Ele acusa não o capitalista, ou o sistema social do capital pela sua desgraça pessoal. É aquele lumpemproletário, malandro, espectro da marginalidade de excluídos sociais da cidade de Roma, o responsável pela sua desgraça pessoal-familiar. É a concorrência em sua dimensão extrema. Proletários dilacerem proletários. Diz: “Agora, eu vou lhe ensinar a não roubar!”.

Na barbárie social, faz-se a justiça com as próprias mãos. Ricci sai do bordel acompanhando o jovem de boné. Está segurando-o, colado nele. Obriga-o a se dirigir para casa e devolver-lhe a bicicleta. Mas o jovem nega que tenha sido ele o ladrão da bicicleta. Ele diz: “Eu não sou ladrão”. Ricci insiste: “Eu não vou embora enquanto não a devolver”. O jovem diz, imerso também numa situação de estranhamento. “Cada coisa que me acontece. Agora um louco para me xingar”.

Pela exclamação do jovem de boné alemão, o malandro acusado por Ricci, podemos supor que, naquele dia, ele vivera outras experiências estranhas. “Cada coisa que me acontece”, é o que ele exclama, sugerindo que o jovem proletário excluído está imerso numa situação de azar e de quase magia. É um mundo estranho de intransparência social, habitado por deuses e demônios. Por isso, a situação de proletariedade extrema do lumpemproletariado emula a alienação religiosa.

Surge a pergunta: Seria o malandro capturado por Ricci o ladrão de bicicleta? Ou seria uma mera impressão de Ricci e do público, tendo em vista as semelhanças com o ladrão de bicicleta? Mais adiante, a mãe dele diria: “Não tem ficha policial. Todos o conhecem no bairro”. E diz que o filho epiléptico fica mais tempo no hospital do que fora dele. E exclama: “A nossa casa é de gente do bem”. Noutro momento, alguém observa: “Quer a carcaça dele? Nunca fez mal a uma mosca”. Talvez o boné de alemão seja a prova incriminatória. O ladrão de bicicleta usava um chapéu do exercito alemão. Mas de repente, o boné parece ser de uso comum entre miseráveis italianos do pós-guerra. Aliás, o tipo físico do jovem de chapéu de alemão é um tipo comum. A probabilidade de Ricci confundi-lo com outro é muito grande.

De repente, Antonio Ricci e o jovem marginal encontram-se diante da sua casa. Uma pequena multidão protege o jovem fugitivo. Alguém diz: “Não pode acusar as pessoas assim”. Naquele momento, Ricci está no antro do lumpemproletariado de Roma. Está desesperado, acusando o rapaz pelo furto da sua bicicleta: “Não entendeu que não vou deixar você ir?” Logo surge um homem de terno e óculos escuros. Talvez seja um líder protetor da gangue de miseráveis. Ele procura fazer Ricci ponderar com os argumentos da justiça. Diz: “Antes de tanta discussão, tem certeza do que diz?”. Ricci exclama: “É claro que tenho”. E o homem diz: “Se tem tanta certeza, por que não vai à polícia?”. E mais adiante: “E quando acusa alguém, tem que ter certeza. Não pode acusar alguém impunemente”. Um detalhe: são os homens “lumpenizados” que levantam, contra Ricci, argumentos de justiça. É preciso ter provas antes de acusar e caso tenha certeza, deve-se dirigir à polícia e não fazer justiça com as próprias mãos.

O desespero do protagonista proletário o conduz a atos irracionais, que iriam culminar mais adiante, na tentativa de furtar uma bicicleta. Ricci está diante do espectro da exclusão social. Naquele momento, Ricci está alienado dos ideais de justiça. Talvez seja sintoma de seu desespero pessoal. É sua barbárie interior que decorre dessa aguda proletarização. Ele perdeu seu instrumento de trabalho e seu emprego. Ele perdeu o que tinha – não apenas a bicicleta, mas a expectativa de uma vida digna.

Na verdade, Antonio Ricci não tem provas contra o rapaz que acaba tendo uma crise de epilepsia. Talvez seja, ou não, um ato simulado. O protagonista proletário deixa de ser vítima para tornar-se culpado pela tragédia pessoal do jovem de boné alemão. É o filho Bruno que chama um policial que tenta intervir no “imbróglio”. O policial é o agente da justiça. Entretanto, Ricci não tem provas de que o jovem de chapéu de alemão seja o criminoso. Ao visitarem a casa miserável do jovem, percebemos a situação de penúria da família. A mãe dele observa: “Em vez de vir nos ofender, arrume uma vaga para o desgraçado que procura trabalho há tanto tempo”. O policial interroga Ricci, perguntando-lhe se ele tem alguma testemunha do furto. Ricci não tem. O policial diz: “Sozinho pode ter se enganado. Tem certeza de tê-lo reconhecido?”

Enfim, Ricci perdeu não só a bicicleta, mas a possibilidade de utilizar a seu favor argumentos de justiça, isto é, testemunhas e provas contra o suspeito encontrado. Nada pode fazer. E pior – do lado do acusado, há uma multidão a seu favor, um grupo de pessoas solidárias. Ricci se depara com a solidariedade do lumpesinato. O policial diz, olhando pela janela, para a multidão do lado de fora: “Aqueles são todas testemunhas a favor dele. Vai perder tempo. Vejo caso como esses todos os dias”.

Novamente, Antonio Ricci se depara com a banalidade de sua situação trágica. É a banalidade de sua tragédia que o deprime. Enfim, o proletário Ricci está alienado das condições de fazer justiça. Não pode incriminar o suspeito, embora tenha certeza de tê-lo reconhecido. Precisa de testemunhas. “Não tem quem o reconheça. O que fazer?”. E o policial traduz sua tragédia pessoal: “Pode até ter razão. Mas não tem provas”. E prossegue: “E se por acaso ele é inocente. Você está ferrado. Estes, ou os flagra no ato, ou tem que achar os que roubaram, senão não há nada a fazer”. Como Ricci não conseguiu flagrar, no ato, os ladrões de bicicleta, não possui testemunhas e não conseguiu encontrar o produto do roubo, nada pode fazer. Está constrangido pelas circunstâncias da justiça burguesa.

Em certo momento, diante do impasse legal, Ricci exclama: “Eu quebro a cara dele”. E o policial responde: “Então, eu terei que prender você”. Enfim, Antonio Ricci chegou ao seu limite pessoal. Naquele momento, seu desespero pessoal o leva a transgredir a linha da racionalidade burguesa. “Pode até ter razão. Mas não tem provas” – eis a dimensão da sua tragédia pessoal. A proletariedade extrema, a situação de contingência (o azar de haver perdido a bicicleta, após ter tido a expectativa de um emprego digno, após anos desempregado) e a indiferença de todos, inclusive do homem da lei, o conduzem a atos insanos que transgridem a linha da legalidade social.

Após nada conseguir com o jovem com chapéu de alemão, Ricci caminha acompanhado pelo filho até as proximidades do Estádio nacional e tenta furtar uma bicicleta. É claro que antes ele vacila e pensa no ato criminoso que possa cometer. O protagonista proletário é um homem decente que é levado pelas circunstâncias estranhadas a cometer um ato insano. Eis o sentido da narrativa fílmica de Ladrões de Bicicletas. A tentativa de furto é sua situação-limite.

Antonio é um homem em tentação. É tentado pela visão de centenas de bicicletas que saem do Estádio Nacional ao término do jogo Roma e Modena. É tentado pela corrida ciclística que ocorre diante de si, enquanto, ao lado do filho, abatido e desesperançado, está sentado na sarjeta. Após deixá-lo imerso na tragédia pessoal, o “destino” tenta-o com uma infinidade de objetos-fetiches de sua desgraça humana. Naquele momento, centenas de bicicletas circulam em torno de Ricci, tentando-o, como objetos-fetiches. Nunca um homem necessitou tanto de uma bicicleta. Nunca tantas bicicletas desfilam diante de um homem. É a situação paradoxal construída pela cenografia de Vittorio De Sica. Talvez seja a situação trágica do paroxismo da sociedade burguesa que acumula tanta riqueza material no meio de tanta miséria humana.

Antonio Ricci é o despossuído absoluto. Não apenas dos meios de produção e do instrumento de trabalho, mas despossuído de perspectivas morais. Ele está à deriva moralmente, por isso decidiu cometer o furto de bicicleta. A situação de proletariedade extrema conduz homens e mulheres à deriva moral. Mas ao tentar cometer o furto de bicicleta, sozinho, Ricci fracassa. É quase uma lição: o criminoso que não age em equipe sempre fracassa. O ladrão da bicicleta de Ricci agiu em equipe, de modo calculado, o que contrasta com o ato solitário e insano do protagonista proletário (furtar uma bicicleta numa área de grande movimentação de público).

O filho Bruno presencia tudo e, de certo modo, contribuiu para que ele não fosse preso. A vítima do furto da bicicleta decidiu soltá-lo. Talvez sensibilizado pelo filho Bruno que exclama “Papai”, o homem disse: “Solte-o. Deixe para lá”. Mas o pior para Ricci foi a tragédia moral que se abateu sobre ele. Um dos transeuntes que o pegaram no ato de furto disse: “Belo exemplo para o seu filho. Não tem vergonha?”. Ricci não é preso. Outro diz, quase com ironia atroz: “Vá para casa. Está com sorte”.

Enfim, o mundo social de Ricci é grande e cruel. Quase perdera o filho que em vários momentos corre o risco de ser assediado, atropelado. E, finalmente, Ricci perde também a si próprio. É um homem alienado de seus valores morais. É o que o homem moderno corre o risco de perder imerso nas contingências trágicas da proletariedade extrema. Enfim, o proletário em situação extrema nem sempre perdeu tudo – há muito mais a perder. Isto é, pode perder a humanidade e entes queridos que ainda preserva.