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Gramsci: uma nova biografia* – Angelo d’Orsi

Por que escrevi este livro, uma nova biografia?

Por duas razões, basicamente: 1) meu espanto diante de uma situação de estudos sobre Gramsci – até o momento, existem mais de 20.000 títulos sobre sua obra, em 41 idiomas – os quais em 90% (minha estimativa pessoal) são dedicados a exercícios filológicos ou filosóficos sobre seus textos, e eu diria que 80% sobre os escritos de sua ‘maturidade’, essencialmente os Cadernos do cárcere, e em muito menor grau (em uma porcentagem que eu estimo em não mais do que 10% desses 80%), as Cartas (pós 1926, ou seja, as Cartas do cárcere, ou seja de Gramsci prisioneiro).

O espanto expressou, na verdade, meu descontentamento, insatisfação e crítica implícita. Isso me levou a uma interrogação: “Como se pode estudar o pensamento (e sabemos que Gramsci trabalhou em todas as áreas do pensamento humano, de história a ciências sociais, de filosofia a economia, de literatura a teatro) e a ação política de uma personagem, especialmente uma personagem que foi um político prático, mas também um teórico, sem levar em conta sua biografia ?”

Em segundo lugar, eu queria aproveitar várias décadas de meu trabalho pessoal, que tinha sido tanto uma reconstrução biográfica quanto uma reconstrução teórica. Pensando em todos os textos que produzi e nas polêmicas que animei ou ajudei a alimentar, no nível historiográfico e, mais ainda, no nível político, também visei a um objetivo menor, mas fundamental para mim, ou seja, combater a interpretação generalizada segundo a qual o “verdadeiro Gramsci “, o Gramsci que importa, o Gramsci digno de ser analisado, discutido, estudado, é o da prisão (e da clínica), e que, desse ponto de vista, os textos do “jovem” Gramsci, considerados “menores”, deveriam ser vistos apenas como preparatórios para os Cadernos do cárcere.

Além disso, depois dos muitos ensaios e artigos dedicados a Gramsci, depois das várias disciplinas, ou seja cursos universitários, depois das inúmeras palestras, ao longo de quase 50 anos, senti a necessidade de fazer um livro, um livro “de verdade”, ou seja, uma monografia, não uma coleção de ensaios e artigos, um livro que contasse “todo o Gramsci”, costurando os numerosos fragmentos biográficos já conhecidos, mas esclarecendo-os e enriquecendo-os, e explorando as áreas não visíveis daquela vida curta, dolorosa e atormentada.

No ano 2000, eu fui convidado para integrar o grupo da Edição Nacional dos escritos de Gramsci e tal fato me obrigou a estudar melhor, a pesquisar mais, a sistematizar o conhecimento. Tive a oportunidade de ver documentos inéditos, cartas de Gramsci e para Gramsci, redações escolares etc. E, finalmente, muitos anos se passaram desde que a única biografia consistente de Gramsci (autor Giuseppe Fiori, 1966, traduzida para vários idiomas, inclusive o português, livro bem conhecido aqui) havia sido publicada pela editora Feltrinelli de Milão (uma editora “historicamente” de esquerda), pensamos em trabalhar para o 80º aniversário da morte (1937-2017). A biografia de Giuseppe Fiori é um bom trabalho, com alguns defeitos: um ponto de vista muito interno da Sardenha (Fiori era sardo, como Gramsci), uma atitude implicitamente polêmica em relação ao comunismo italiano e, de qualquer forma, é, em essência, “apenas” uma biografia, que, no entanto, reconstruiu bem os 20 anos de Gramsci na mencionada Sardenha (1891-1911), enquanto foi bem mais breve quanto aos outros anos de sua vida. De qualquer forma, a parte teórica foi muito penalizada e, finalmente, foi uma biografia que muitas vezes caiu na hagiografia.

Minha ideia metodológica era, sim, escrever uma biografia, mas não me limitar a narrar eventos da vida, afetos, encontros e confrontos políticos, entre Sardenha e Turim, entre Itália e Rússia, entre Viena e Roma, prisões, a ilha de confinamento (Ustica), clínicas (Formia e Roma). Minha ideia era fazer um trabalho diferente, ou seja, reconstruir o desenvolvimento do pensamento gramsciano – em todas as esferas – em relação aos vários contextos, nas várias situações históricas e ambientais: em suma, fazer da biografia, no sentido próprio, o enredo, o fio condutor para explorar as ideias de Antonio Gramsci. O subtítulo do livro “Uma nova biografia“, portanto, tem um duplo significado: em primeiro lugar, “nova” se refere à distância que a separa da “clássica” de Fiori, quando o meu volume foi publicado (2017) e, portanto, era inevitavelmente “nova”, já que em meio século houve um enorme aumento nos estudos sobre Gramsci, edições de textos (pense nas Cartas, por exemplo, que foram enriquecidas em comparação com as duas edições anteriores, de 1947 e 1965, nas quais Fiori havia trabalhado) e, acima de tudo, vieram à luz muitos documentos que eram desconhecidos nos anos 1950-1960: portanto, novo significa atualizado e implementado. Mas há um segundo significado, para mim talvez ainda mais importante.  É aquele a que já me referi: novidade da abordagem: nesse sentido, eu poderia dizer, como foi dito e escrito por alguns comentaristas, que além de ser “uma nova biografia” pelas razões objetivas que indiquei (o aumento de edições, estudos, documentos), é também “uma biografia nova”, ou seja, pensada de forma diferente.

Nesse sentido, eu ousaria dizer que se trata de uma abordagem holística e global de Gramsci: o homem, em sua curta e dolorosa trajetória de vida; o jornalista, que inova poderosamente a profissão, dando-lhe um significado de ciência social e de militância ativa ao lado da verdade; o político que dentro do Partido Socialista e depois no Partido Comunista, mas também no Comintern, conduz batalhas de grande relevância; finalmente, o pensador que demonstra uma atitude humanística, no sentido histórico, ou seja, um interesse global em tudo o que diz respeito à humanidade (mas também à natureza, particularmente o mundo dos outros animais vivos).

Em última análise, acredito que seja uma obra que estava faltando não apenas em italiano, mas em qualquer idioma. Posso afirmar com tranquilidade que ela se tornou, por necessidade (já que nenhum livro semelhante foi publicado), uma referência inescapável tanto para acadêmicos quanto para o público não profissional. Pelo contrário, quero enfatizar que, ao escrevê-lo, tentei ter em mente tanto o primeiro quanto o segundo, escrevendo de forma bastante narrativa, mas tentando ser rigoroso e, dentro dos limites de minhas capacidades, absolutamente “científico”, evitando tanto polêmicas inúteis quanto hagiografia.

Escrevi um livro sobre Gramsci para torná-lo conhecido por aqueles que não o conhecem, para torná-lo mais conhecido por aqueles que o conhecem pouco, e para recapitular toda a sua existência e todo o seu pensamento, no decorrer dos anos, e igualmente para o uso daqueles que o conhecem bem, para que se posso debater mais.   Por fim, gostaria de afirmar que meu livro é um livro gramsciano sobre Gramsci.

 

Livro: Gramsci: uma nova biografia

Angelo d’Orsi

(Expressão Popular, São Paulo, 2022, 462 p.)

https://expressaopopular.com.br/livraria/gramsci_uma_nova_biografia/

 


*Texto lido pelo professor,  da Università Degli Studi di Torino, no  IX Seminário Internacional de Teoria Política do Socialismo, realizado na Unesp de Marília de 8 a 12 de maio de 2023.


 Sobre Angelo D’Orsi

Angelo D’Orsi é professor catedrático de História das Doutrinas Políticas na Universidade de Turim.