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Lembranças fragmentárias da visita de Bob Creeley em 1996

Quinta, 9 de maio, peguei Creeley no aeroporto. Ele tomou o rumo errado de desembarque, mas, a tempo, eu o chamei: Bob! Ele me deu dois beijos. João, meu filho, de dezessete anos, estava lá comigo. Entramos na van do Consulado norte-americano e ele começou a falar. Ele e eu nervosos. Ele falou, falou, coisas que eu não entendia bem. Comecei a perceber que ele gostava de falar e confirmei isto depois – a fala como uma espécie de monólogo introspectivo e criativo permanente, mastigando o inglês, como se falar fosse ver para ele, cego de um olho. Chamei-lhe a atenção para o rio Tietê durante a vinda de Guarulhos para o centro. Rio morto, estranhamente com garças em suas margens. Ele comentou, en passant, o Nobel conferido a Derek Walcott, dias antes: “demagogia política sem relação com a boa poesia”. Depois de largar sua bagagem no Hotel Bourbon, na avenida Dr. Vieira de Carvalho, fomos para minha casa, “amazing place”, em suas palavras gentis. Creeley, um homem de setenta, aparentava ter 55 anos. Uma vitalidade de causar inveja. Quando chegou em casa, após pegar Bruna na escola, Darly, minha mulher, ficou nervosa: estava diante de uma legenda, que líamos constantemente juntos. Bruna lhe deu beijos. Depois de uns drinques, fomos para a rua e tirei fotos dele contra a fachada de meu prédio, um prédio antigo, de 1955, na rua Dr. Brasílio Machado; nesse instante, passava Néstor Perlongher, que morava também na Brasílio, a quem o apresentei e com quem ele trocou umas palavras em Spaninglish, porque havia morado nas Canárias e falava umas palavrinhas de espanhol.

Creeley e Bruna Bonvicino, então com quatro anos

Em casa ainda, à tarde, ele me explicou alguns de seus poemas em razão de eu o estar traduzindo, o que resultaria no livro A UM, de 1997. Mrs. Curley, “the poor Irish woman” de sua infância, do poema “Épico” – seu épico a Milton, disse, uma reminiscência. Ele não sabia mais o que quis dizer com a palavra wit no poema “Para WCW”. Consultou o dicionário Webster e ficamos na mesma. Então falou de “Focus” – uma janela com suas molduras e a planta ao meio: Mondrian. Eis o poema em minha versão (duvidosa): “Retalhos do céu/ cinza linhas// das árvores/ recorta a// planta incli-/ nada ao meio”. A poesia de Creeley persegue sempre situações concretas, impasses etc., poesia, para valer-me do clichê, de vida e de palavras nas palavras. Ou, como apontou Charles Altieri em um ensaio, que recupero agora e transcrevo: “[…] In Creeley, themes disseminate rather than gather, but the project is not a Derridean one. Creeley wants to replace the conventional symbolic space that, as in jazz, invites variations and at once gathers and disperses energies, resonances. Or he summarizes this dispersing interplay of past themes, memories, and several levels of particulars […]”. Traduzimos juntos, ao entardecer, poemas de Leminski para o inglês e um par dos meus, para a futura antologia Nothing The Sun Could Not Explain. Eu fazia a versão literal e ele, a poética; apoiando o papel em seus joelhos, caneta na mão, agitado, com bom humor, já meio alto, improvisando, livre, talvez à la Miles Davis e à la John Coltrane, seus amigos a partir dos anos 1950. Nesse passo, contou-me que conhecia a mãe e o pai, ambos italianos, de Michael Palmer (coeditor da antologia), que o conheceu quando ele estava com vinte anos e morava em um hotel em Nova York (do qual o pai era gerente, Mr. Palmerini), e que costumava levá-lo às apresentações de Miles e Coltrane no Village.

À noite, no Bourbon, entrevista para Rogério Pacheco Jordão, do JT. Centro velho, “dangerous”, como ele observou, com putas e craqueiros. Não me lembro qual poema dele lemos juntos e em voz alta para nós dois apenas, enquanto esperávamos o repórter. Jerusa Pires Ferreira e Boris Schnaiderman chegaram pouco depois. Creeley falou de seu fascínio pelos caracteres chineses, que reimaginava sempre, mentalmente, em inglês e em seus poemas. Falou das palavras house, window, car, de seus sons, que a ele interessavam: cárr, hôuss, wíndou! Pacheco Jordão o indagou a respeito de seu poema “Ever since Hitler” e ele respondeu: “poema doloroso, e agora a guerra da Bósnia, outra guerra hitleriana”.

No dia seguinte, sexta, 10 de maio, fizemos pela manhã uma leitura de poemas na PUC, efervescente, para nós dois ao menos. Lemos sete textos em português/inglês. Antes, ao entrar na sala de aula, ele escreveu na lousa: multiculturalismo e o endereço eletrônico de The Electronic Poetry Center, onde estavam alojados os novos poetas norte-americanos, sobretudo os Languages, a quem admirava. Uma frase me marcou: “A poesia norte-americana foi renovada, neste século, por uma sequência de não falantes de inglês ou de bilíngues”. Ele nos contou que a língua materna de William Carlos Williams foi o espanhol. Sua mãe era porto-riquenha. A de Lorine Niedecker, o alemão etc. Foi indagado a respeito das relações entre poesia e novos meios. Claridade e velocidade foram as qualidades que destacou na internet: “O e-mail torna as coisas simultâneas e rápidas, I love it”. Haroldo de Campos insistia espontaneamente em denunciar o conservadorismo do crítico Harold Bloom como nocivo à literatura contemporânea e indagou a opinião de Creeley a respeito (e para mim, reservadamente, disse tratar-se este de “um poeta ameno”). Creeley, um tanto desinteressado, disse que Bloom partia do conceito de símbolo na literatura e não fazia análise dos objetos, e que ele, Creeley, desprezava os críticos de modo geral. Excetuou Marjorie Perloff, contando, no entanto, que ela era bastante odiada por muitos. E ainda revelou que foi colega de classe, no primário e no ginásio, de John Ashbery, o preferido de Bloom.

Almoçamos com Duda Machado no restaurante Nabuco. Ele adorou o linguado. (À noite, no jantar em minha casa, disse-me que contou isto a sua mulher Penelope por telefone: delicious flounder.) Caminhamos em direção ao Estádio do Pacaembu. Em determinado ponto, um muro áspero, largo, com grafites entrelaçados com hera abundante. Uma tela monumental. Pensei em Frank Lloyd Wright. Quis fotografar “aquilo”, mas estava sem a câmera. Multiculturalismo: o encontro de falas e dicções, contra o etnocentrismo, repetia ele. Vários mendigos nos abordaram no percurso do Nabuco ao Estádio do Pacaembu, pedindo dinheiro. Ele dava moedas e os reverenciava, tirando o chapéu. Ele me emprestou seu Borsalino e foi descansar no hotel; Borsalino com o qual fui fotografado à noite, no jantar em minha casa, animado pelas presenças de Guto Lacaz, Duda Machado, Aurora Bernardini, Carmem e Haroldo de Campos, Jerusa e Boris. Depois do jantar, Darly e eu o levamos para o hotel. Na rua Baronesa de Itu, viu um caminhão de lixo parando de prédio em prédio, e recolhendo os sacos que os garis atiravam em seu triturador. Começou a “mastigar” a palavra crunch, com a qual, no dia seguinte, iniciamos uma renga intitulada “Together”, publicada ainda em 1996. Fiz a primeira estrofe e ele, a segunda: “At late evening/ lights/ red yellow/ crunch/ the trash/ on the truck” (RB) e “Under the overhang/ the other road/ look up there/ black night sounding/ fearful of those/ still out there” (RC). Dois meses depois, escreveu-me: “I’m much looking forward to seeing the renga, which Vincent Katz tells me is very handsome”.

No sábado, Creeley e eu visitamos a Casa das Rosas, dirigida por José Roberto Aguilar. A primeira coisa que fez foi cheirar as rosas! Parecia mais interessado nas rosas que no acervo. Perguntava-me seus nomes e queria saber se eram nativas etc. Contei-lhe que a casa fora projetada e construída por Ramos de Azevedo, um arquiteto famoso de São Paulo, que fizera o jardim especialmente para sua mulher, uma colecionadora de rosas. Adorou o Ibirapuera, para onde fomos no domingo, 12, seus imensos espaços livres, suas plantas e árvores, e o prédio do MAM, seu acervo. Disse-me que seu filho William estava estudando, naquele exato momento, a obra de Oscar Niemeyer. Observou que o concreto usado e a monumentalidade do Memorial da América Latina eram exatamente o oposto do tipo de arquitetura das casas de barro da Nova Inglaterra, onde cresceu e formou sua sensibilidade.

Creeley e Régis no Ibirapuera

A extraordinária leitura no Memorial da América Latina, no dia 13, com mediação de José Miguel Wisnik, contou com – ufa – umas 25 pessoas na plateia. Ao seu lado, ouvindo-o, percebi que ele extrai, decanta, tira sons inéditos das palavras, sons, digamos, inaudíveis mesmo para ouvidos aguçados. A voz como instrumento. À noite fizemos outra leitura, desta vez na Folha de São Paulo, auditório com mais gente. E mais debate, apesar das intervenções interessantes de Zé Miguel no Memorial.

Ele me revelou, meio em segredo, prestes a partir, que Allen Ginsberg estava bem mal do coração e sem dinheiro para o tratamento, muito caro, e que o fazia com a ajuda de doações de amigos. A propósito, falamos bem da poesia de Gregory Corso, outro Beat ligado a Creeley; e Bob, com sua voz gutural, introspectiva, soltou uma estrofe de “Bomb”: “There is a hell for bombs/ They’re there I see them there/ They sit in bits and sing songs/ mostly German songs/ and two very long American songs”. No dia 14 ele se foi ao Rio, para passar um dia, de onde partiria em seguida para Assunção, no Paraguai.

São Paulo, agosto de 2006

Robert Creeley em seu quarto no Hotel Bourbon

 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.