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POLITICAMENTE CORRETO?

No recente episódio do governador distrital [de uma região de Madrid] Guillermo Zapata[2] com suas piadas machistas, afirmei que não iria pedir sua renúncia. Minha posição gerou naturalmente, e eu compreendo, críticas de feministas e companheiras, que imediatamente pensaram que esta atitude fora tomada a partir de minha nova condição de deputada do Podemos.[3] Essa é a explicação fácil, mas não a verdadeira. De mim nunca haverá um tuíte ou texto que peça a renúncia de alguém por uma expressão machista ou homofóbica proferida fora de contexto ou como piada. Outra coisa é uma opinião sustentada ao longo do tempo, e da qual se pode assumir que influenciará a ação política. É a opinião e a ação política que devem ser julgadas politicamente, não a piada ou uma frase descontextualizada; e, em todo caso, responsabilidades políticas podem ser demandadas de pessoas que se dedicam à política, mas não daquelas que dão essas opiniões no contexto de sua vida pessoal ou antes de se envolverem na vida pública. De qualquer forma, é importante pressupor que uma piada não seja a expressão da própria opinião política. Mas o politicamente correto nos fez pensar que sim.

A linguagem politicamente correta nasceu como uma maneira de combater a brutalidade de certas expressões em um momento em que elas não eram metafóricas, nem podiam ser consideradas uma piada. A linguagem não normalizava o racismo, a homofobia ou o machismo, mas expressava a normalidade social existente anteriormente quanto ao machismo, ao racismo, à homofobia ou qualquer outra diferença. Tratava-se de combater essas formas brutais, reais e cotidianas de desigualdade também na linguagem, ou em certas expressões comuns, como piadas. Até aí estou de acordo; mas é ruim o momento em que uma expressão ou uma piada ocupa todo o espaço da realidade, e se pressupõe que uma piada machista tenha de vir, por definição e sempre, de um machista. Não estou dizendo que a linguagem ou as expressões usadas não são mais importantes, mas que não podemos chegar ao ponto de desvincular completamente o que é dito do contexto e da intenção com que é dito. Ainda, uma coisa é que as formas comunicativas formais na política, no jornalismo, na expressão pública sejam consideradas muito importantes, e outra muito diferente é o momento em que a linguagem politicamente correta ocupa todo o espaço da política; o momento em que o requisito da linguagem politicamente correta é usado para ocultar a verdadeira ação política, e se pretende que suplante completamente o pensamento de uma pessoa; ou pior, quando o uso dessa linguagem, seu controle, sua demanda, se torna uma arma usada precisamente contra o que se diz defender.

Se em sua origem a linguagem politicamente correta era uma arma dos oprimidos para tornar visível a opressão, devemos estar cientes de que hoje se tornou o oposto, uma arma dos poderosos para fortalecer seu poder; em um disfarce que serve para esconder a realidade das ações dos poderosos, uma poção usada para que os opressores pareçam limpos. Sabemos que o poder cria quadros mentais, hegemonia cultural, e que sua capacidade de expropriação simbólica é capaz de apropriar-se de palavras que foram patrimônio da esquerda – da humanidade em geral – e ressignificá-las a tal ponto que essas palavras em suas bocas e em suas ações assumem significados contrários àqueles com que nasceram. Por exemplo, a expressão “defesa da vida” nas bocas e ações da direita [usada por militantes antiaborto] está mais próxima da morte e da obscuridade que de qualquer outra coisa. O mesmo vale para a palavra “liberdade” e tantas outras, como se sabe. Não ressignifica quem quer, mas quem pode, escreveu Amelia Valcarcel, e o poder tem a capacidade de ressignificar quase tudo. Portanto, aqueles que têm o poder e o usam com a brutalidade que se conhece, hoje não precisam fazer piadas racistas, sexistas ou homofóbicas para aplicar políticas racistas, sexistas ou homofóbicas. Ao contrário, a censura social, política e até criminal com que o poder pretende perseguir piadas ou expressões politicamente incorretas é uma arma que permite limpar sua imagem e ocultar suas políticas. Além de ser um instrumento muito útil para perseguir não mais a incorreção política, mas também a opinião política divergente, como aconteceu no caso de Guillermo Zapata.

Aqueles que se consideram dissidentes dessa ordem política neoliberal, quando pretendem reduzir a liberdade de expressão com base no politicamente correto, prestam um desserviço. Qualquer restrição à liberdade de expressão, por mais difícil que seja suportar certos ditos, acabará se voltando contra nossa própria liberdade de expressão, jamais contra a de quem detém o poder. O poder não reprime a si mesmo. O poder não precisa dizer barbaridades, porque as faz. Os que exigem que qualquer expressão que os ofenda seja punida estão restringindo involuntariamente os limites de sua própria liberdade de expressão, e estão entregando uma ferramenta de valor incalculável para os que realmente querem perseguir dissidências políticas. Os que enfrentam o poder devem sempre tentar ampliar os limites da liberdade de expressão; se dentro desses limites encontrarmos expressões que nos ofendem ou prejudicam, esse é um preço que vale a pena pagar.

Agora aqueles que matam, aqueles que expropriam, aqueles que discriminam, aqueles que esmagam pessoas, vestem-se de santa indignação porque alguém que luta contra a discriminação, a exclusão e a injustiça, escreveu há quatro anos (e em um contexto que se pode explicar) uma piada sobre judeus. Guillermo Zapata não é um racista, mas um antirracista, porém a indignação causada por uma piada tirada de contexto, criada pelo Partido Popular,[4] fez com que um ativista social antirracista acabasse sendo imputado e estigmatizado, enquanto aquele que incentiva a verdadeira xenofobia, que coloca arame farpado sobre os muros para que os imigrantes se cortem, enquanto tentam atravessá-lo, seja ministro e se torne um perseguidor do primeiro. Portanto, defender a máxima liberdade de expressão é vital para quem não tem poder real, além de não se juntar ao coro daqueles que pretendem substituir a ação política real pela inanidade do politicamente correto.

A palavra sempre tem um contexto, todo o ato comunicativo é uma intenção. Não julguemos uma ou outra isoladamente e não nos juntemos acriticamente ao coro daqueles que julgam uma pessoa, uma vida, uma carreira, por um tuíte. 140 caracteres não definem ninguém, mas aqueles que perseguem Zapata são claramente definidos por suas políticas e suas próprias trajetórias. Não podemos nos confundir nem cair no seu jogo sujo.

[1] <https://beatrizgimeno.es/2015/06/27/la-correccion-politica-como-arma-de-quien/>.  A autora é ativista social e deputada na Assembleia de Madrid.

[2]  Gullermo Zapata, do Partido Ahora Madrid, é também produtor musical e roteirista de TV.

[3] Podemos é um partido de esquerda espanhol, criado em 2014. Participou das eleições europeias de 2014, quatro meses depois da sua criação, e obteve cinco cadeiras, com 8% dos votos, a quarta candidatura mais votada na Espanha. Em menos de uma semana tornou-se o partido político espanhol mais seguido nas redes sociais, quebrando o bipartidarismo os partidos tradicionais, PP (direita) e PSOE (centro-esquerda) e surpreendendo o establishment político espanhol.

 

[4] Maior partido de direita da Espanha.