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Sibila avalia a Casa das Rosas / Espaço Haroldo de Campos

1. Avaliando a avaliação

A avaliação institucional sempre foi um tema polêmico. Mais do que fazer um diagnóstico da instituição, a avaliação emite um juízo de valor sobre a pertinência e a qualidade das atividades, dos produtos e serviços e dos profissionais que nela atuam. Para o professor José Dias Sobrinho, doutor em ciências humanas pela Unicamp e participante do “Relatório 2007 – Acreditação para garantia de qualidade: o que está em jogo?”, organizado pela Global University Network for Innovation (GUNI), é preciso repensar os objetivos de uma avaliação. “Há necessidade de  avaliar para desenvolver a qualidade e há necessidade de avaliar e de inovar a própria avaliação”. Mas ele reconhece que avaliar exige decisões difíceis de serem tomadas, pois elas envolvem instâncias […] como a implantação da avaliação, os critérios a serem utilizados e o que fazer com os resultados. [1]

O juízo de valor, portanto, não exclui necessária ou automaticamente o valor do juízo: a avaliação institucional “é uma necessidade”. E se toda avaliação implica em certo grau de subjetividade, nem todas as avaliações se limitam ao que possuem de parcialmente subjetivas, mesmo no campo da cultura, apesar de esta ser, hoje, uma crença tão defendida quanto difundida: se “avaliar exige decisões difíceis”, não impõe escolhas impossíveis. Por exemplo, há “critérios a serem utilizados”. Também há “o que fazer com os resultados”.

A instituição aqui avaliada é a Casa das Rosas. A razão é que se trata de uma instituição cultural pública relevante, além de assumidamente dedicada à poesia. Sua avaliação, portanto, é um complemente possível, sem prejuízo de ser oportuno, da crítica de poesia, no que a crítica tem de análise. O critério principal é, então, a análise de sua atuação (e não, por exemplo, de seu organograma) através dos dados objetivos fundamentais gerados pela própria instituição acerca dessa atuação, que se encontram ao mesmo tempo explicitados e condensados em sua programação lítero-cultural. Quanto ao que fazer com os resultados, neste caso se trata, como é natural, de publicá-los. Se nenhuma avaliação é inquestionável, não haver avaliação nenhuma é inquestionavelmente indefensável.

2. Institucionalizando a poesia – e o poeta

Após uma longa e lenta ascensão durante o século XIX, São Paulo afinal emergiu, junto com o novo século, como a capital econômica do país. Mas o Rio de Janeiro ainda era a capital cultural. Nesse novo contexto, a Semana de Arte Moderna de 1922 teve muitas causas e teria inúmeros efeitos: entre eles, pôr a capital paulista definitivamente no páreo. Com a Semana de 22, além de se tentar diminuir a distância provinciana do país em relação à modernidade europeia, também se firmava e se afirmava a posição central de capital paulista na modernidade cultural brasileira. A música teve um papel importante; a pintura, um papel de destaque; mas foi a poesia que assumiu o papel principal. O momentum criado por 22 seria em todo caso duradouro na poesia, a partir dos próprios Mário e Oswald, e passaria por Bandeira, Drummond e o antilirismo de Cabral, entre tantos outros em todo o país, para afinal desaguar nas vanguardas dos anos 1950, com destaque para a Poesia Concreta, outro movimento centrado na poesia, outro movimento centrado em São Paulo, outro movimento centralmente poético visando a sintonia fina da cultura brasileira com a contemporaneidade, desta vez no contexto pós-Segunda Guerra. Entre os poetas centrais do novo movimento, Haroldo de Campos teria um destaque particular, ele que era seu integrante mais cosmopolita, entrevendo antes de seus conterrâneos provincianos a nova “sociedade da informação” e a globalização galopante. Como é comum, e não é em si ruim, Haroldo acabaria institucionalizado, em mais de um sentido. O mais evidente e o mais denotativo assume a forma e o nome de Casa das Rosas.

A Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura é uma instituição do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria da Cultura localizada na Av. Paulista 37, em um dos últimos casarões da avenida mais movimentada do país. A atmosfera onírica da antiga construção e seu jardim, em contraste com a moderna estrutura urbana, traduz o que a Casa das Rosas representa: um refúgio onde toda a expressão poética encontra seu espaço. Um território onde a liberdade artística se materializa, por meio de saraus, recitais, lançamentos de livros, peças de teatro, exposições e qualquer outro formato que privilegie a difusão da poesia e da arte em geral. A poesia encontra na Casa das Rosas um espaço completamente democrático, onde se pretende desfazer preconceitos e qualquer paradigma negativo sobre a arte poética. É também o primeiro espaço público do país destinado à poesia, sendo batizado como Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em homenagem ao poeta paulistano, falecido em 2003. Acondicionado em ambiente especialmente adaptado para recebê-lo e conservá-lo, com desumidificadores, arquivos móveis e equipamentos de segurança, o acervo constituído pelo poeta Haroldo de Campos ao longo de sua vida conta com mais de 20 mil volumes em diversos idiomas. As obras estão à disposição de estudantes, professores, pesquisadores e outros interessados para consulta mediante autorização prévia do Conselho da [Organização] Poiesis. Consultas sobre o acervo também podem ser feitas pelo catálogo virtual.[2]

A institucionalização de grandes nomes da cultura é um risco necessário. Por um lado, não se pode esperar que a novidade e o fervor de outrora se mantenham, mudados os tempos e as circunstâncias. Por outro lado, a institucionalização pode, então, manter marcante a presença do legado, e dar-lhe alguma continuidade possível – e desejável. São Paulo é a capital cultural do país há décadas, em parte devido à atuação histórica de nomes como Oswald e Haroldo em seus respectivos contextos. Por tudo isso, de uma instituição como a Casa das Rosas, que de alguma forma tem responsabilidade (no sentido literal, de responder e de dar resposta) perante uma história que começa ainda antes da Semana de 22 e passa por ela e pela Poesia Concreta, com todo seu protagonismo e significado – para não falar das demandas e carências culturais atuais de uma cidade como São Paulo –, de uma instituição como a Casa das Rosas não se poderia nem se deveria esperar pouco. No entanto, talvez seja precisamente pouco o que ela tem dado à cidade, ao país, à sua cultura e à sua poesia (incluindo a de Haroldo de Campos).

3. Um lugar para celebrar

A Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura – é um local de celebração da poesia, da literatura e da arte em geral. Localizado no coração de São Paulo, a Casa serve de cenário para a efervescência da vida cultural, sendo um espaço onde a arte literalmente acontece.

Este pequeno texto institucional – “Quem somos” – aparece no site da instituição como introdução à sua programação cultural. [3] Pelo que é ou pretende ser, e pelo lugar que ocupa, merece uma análise relativamente detida.

A primeira frase, por sua forma verbal, parece uma afirmação fatual, mas é na verdade a manifestação de uma pretensão: a Casa das Rosas pretende ser “um local de celebração da poesia, da literatura e da arte em geral”. O que leva a duas questões iniciais: ela de fato cumpre sua pretensão?; tal pretensão é a melhor que poderia ter?

Celebração: 1. realização solene de contrato, acordo; formalização; 2. homenagem ou memoração de acontecimento, data etc.; comemoração, festejo; 3.  acolhida festiva, exaltada, ruidosa; comemoração; 4. louvação pública de; enaltecimento; 5. realização de ritual, de formalidade; 5.1. realização de ofício religioso; 6. o ofício religioso, esp. a missa.[4]

O sentido geral de celebração é, portanto, passivo, reativo, de memoração, louvação ou enaltecimento de um acontecimento outro. Celebrar a poesia, a literatura e a “arte em geral” não é, de fato, participar de sua realização, mas “comemorá-la”. O texto institucional, no entanto, promove a seguir um pequeno giro semântico em dois movimentos: afirma, primeiro, que “a Casa serve de cenário para a efervescência da vida cultural”. Ser o cenário de algo ainda não é ser um agente desse algo, mas representa uma aproximação em relação à mera comemoração. A aproximação então se completa com a afirmação final: a Casa das Rosas é “um espaço onde a arte literalmente acontece”. A frase peca, porém, por um indisfarçável sabor de slogan publicitário, e como todo slogan, parece dizer muito quando na verdade diz pouco ou nada. “Coca-cola: é isso aí”. “Casa das Rosas: um espaço onde a arte literalmente acontece”. Pois tomada literalmente, como pretende, a frase levaria à negação do lugar de celebração para afirmar a condição de um centro de realização, de um grande ateliê, lugar por definição onde a arte “acontece”, ou seja, se realiza, se produz. Não se pode, portanto, tomar o verbo acontece em tal frase literalmente – apesar da presença do advérbio: a Casa das Rosas não é um grande ateliê, um grande centro de produção ou realização artística. Daí o sabor de pretensão um tanto vazia, de slogan, de sua reivindicação. Resta perguntar o que de fato acontece ali.

4. O que de fato acontece ali?

A resposta mais imediata e objetiva está em sua programação atual, intitulada “Verão de poesia”:

Durante os meses de férias, o já tradicional Verão de Poesia, em sua oitava edição, atende àquelas pessoas que permanecem na cidade e estão interessadas em atividades culturais e de entretenimento instigantes.[5]

A abordagem talvez não seja muito consistente – ou convincente. Em primeiro lugar, há a pretensão um tanto batida de se tratar de um evento “já tradicional”, como se oito anos fossem suficientes para criar uma verdadeira “tradição”, e como se ser “tradicional” fosse algo a priori positivo, portanto, rapidamente reivindicável. Um centro onde a arte “acontece” não deveria, ao contrário, ter uma programação inovadora? Em segundo lugar, trata-se de uma resignada e algo apequenada pretensão de “atender àquelas pessoas que permanecem na cidade”, como uma possível compensação pelo fato de essas pessoas não terem podido aproveitar o verão e as férias a fim de ir para onde gostariam realmente de estar, em vez de ter de “permanecer” por um motivo qualquer. Em terceiro lugar, há a fraqueza da razão desse “atendimento”, ou seja, a eventualidade de algumas das pessoas que “permaneceram” estarem “interessadas” em “atividades culturais”, senso lato – além de em “entretenimento instigante”. Na verdade, não se trata de “entretenimento instigante” além de “atividades culturais”, pois bem lida a frase, o adjetivo “instigantes”, no plural, se aplica tanto às “atividades culturais” quanto às de “entretenimento”: portanto, “atividades culturais instigantes” e “atividades de entretenimento instigantes”. As atividades culturais da Casa das Rosas não têm, então, diferença ou primazia em relação às suas atividades de “entretenimento”, ou, segunda hipótese interpretativa, suas atividades culturais não passam de entretenimento (afinal, trata-se de “atender às pessoas que permanecem na cidade”). Um problema adicional é que tais atividades, sejam afinal culturais ou de entretenimento, ou de entretenimento cultural, com toda certeza pouco têm de instigantes.

O ponto alto da programação do período foi o dia 25 de janeiro, aniversário de São Paulo. Nesse dia, a Casa das Rosas, ofereceu “diversas atrações” em outro evento “já tradicional”:

Para comemorar os 458 anos da cidade de São Paulo, o já tradicional Sampoemas, que integra o 8º. Verão de Poesia, oferece diversas atrações no decorrer do dia 25 de janeiro.[6]

Atrações instigantes, tem-se o direito de esperar, além de tradicionais. Mas talvez se espere em vão. Em primeiro lugar, tais “atrações” são apenas três. Em segundo lugar, não poderiam ser mais previsíveis, em termos de realização cultural: pois das três, duas são veículos para o próprio pessoal da instituição (seu diretor e seu coordenador preservação), enquanto a terceira é um “sarau” (com tudo de instigante que tal termo hoje representa).

O rol de “atrações” começa, assim, com uma palestra de Carlos Fernando C. Nogueira, “coordenador de preservação e identidade visual da Casa das Rosas”.

15h – A CASA DA AVENIDA DA CIDADE
Por Carlos Fernando C. Nogueira, coordenador de preservação e identidade visual da Casa das Rosas

Nessa palestra, serão analisados os aspectos conjunturais e estéticos que caracterizam a Casa das Rosas na história de seu entorno, a Avenida Paulista, bem como na da cidade de São Paulo e do país. Cultura, economia, política, urbanismo, arquitetura e história se fundem no amplo painel que compõe o vulto da Casa, em seus 76 anos de existência. Com a exibição comentada de imagens e uma visita guiada por toda a Casa, serão abordadas questões como: o significado do passado nas diversas correntes de pensamento estético; o peso do mercado na configuração da Cidade; o eterno embate entre tradição e modernidade (em suas muitas definições), presente, inclusive, no papel da Casa como divulgadora da obra de Haroldo de Campos.

Um amplo painel que compõe o “vulto da Casa”? Sem desmerecer as qualidades profissionais e intelectuais do coordenador, tal palestra é “institucional” demais, tanto pelo tema como pelo fato de o palestrante vir de dentro da instituição (à falta, portanto, de algum convidado especial disponível). Além disso, não se pode “abordar” e “analisar” todos esses aspectos sem que tal painel e tal abordagem paguem o preço da ligeireza e da superficialidade.

O rol de “atrações” segue, em todo caso, com uma leitura de poemas de autoria do diretor da Casa das Rosas, por ele próprio.

18h – Signicidade (recital). Com Frederico Barbosa, Marcelo Ferretti e convidados.
Recital de Frederico Barbosa a partir de seu livro Signicidade (Dulcineia Catadora, 2009), que lança um olhar crítico e poético sobre as cidades em geral e São Paulo em particular.

A programação do grande dia culmina, então, com aquele que parece ser o evento mais comum da instituição: os saraus.

20h – Sarau Sampoemas
O público está convidado a participar deste sarau aberto, com poemas cujo tema deverá ser “São Paulo”. Vale falar bem, vale falar mal, vale falar tudo o que quiser sobre a homenageada da noite! As inscrições devem ser feitas uma hora antes do início do sarau, na recepção da Casa das Rosas.

Como afirma o primeiro texto institucional reproduzido acima, trata-se de “um território onde a liberdade artística se materializa por meio de saraus”. Portanto, para além de uma circunstância eventual da programação de verão, como a própria instituição explicita, eventos como o Sampoemas e o Simpoesia em particular e os saraus em geral, que aliás se pretendem ali “tradicionais”, na verdade representam o cerne da programação da casa – ou seja, de suas atividades e de sua atuação. Porém não se concebe como a “liberdade artística” possa se “materializar” através de “saraus”. Primeiro porque, mais uma vez, a materialização da arte é a sua criação – e a Casa das Rosas, já sabemos, não é exatamente um centro de produção. Segundo porque saraus, bem, não passam de saraus: um nome arcaico, de sabor agrário, para a mera leitura de poemas. Mera leitura, porque tal “liberdade artística [que] se materializa por meio de saraus” é afinal um modo de dizer que a Casa das Rosas promove “saraus abertos”, ou seja, perfeitamente democráticos, além de perfeitamente incapazes de referendar o mérito ou de atrair poetas provocadores.

A PLENO PULMÕES
Apresentação: Marco Pezão
Sábados, 7 de janeiro e 11 de fevereiro, 19h.

Dedicado aos amantes da poesia, o objetivo é incentivar a literatura escrita e falada. O microfone da Casa das Rosas está aberto. Estufe o peito e solte o verso! As inscrições começam uma hora antes do sarau.

“A pleno pulmões” é o título de um famoso poema de Maiakóvski. Um “sarau” para os “amantes da poesia”, em que tais “amantes” devem “estufar o peito e soltar o verso”, com “apresentação” de Marcos Pezão (?), sob tal título, em tudo e por tudo, talvez seja um grande tiro no pé.

CHAMA POÉTICA – BENDITOS MALDITOS
Grupo Chama Poética.
Sábado, 21 de janeiro, 17h.

Por meio desse espetáculo, o grupo Chama Poética reverencia os poetas e artistas que vivem profundamente seus amores, paixões e dores. Com declamação de poemas de poetas malditos nacionais e estrangeiros.

Declamações de poemas de poetas malditos”?! Para “reverenciá-los”? Reverenciar malditos? E quem ainda é maldito no século XXI, quando a poesia perdeu a relevância cultural, do que é exemplo, aliás, a própria Casa das Rosas? “Poetas e artistas que vivem profundamente seus amores, paixões e dores”?! Depois do modernismo? Do construtivismo? Do concretismo? Depois da obra e principalmente da teoria poética de Haroldo de Campos? No Espaço Haroldo de Campos?

Aliás, o que a instituição fez em todos esses anos pela obra de Haroldo? Na programação atual, aparece a seguinte informação, depois daquela referente à biblioteca circulante:

ACERVO HAROLDO DE CAMPOS

Formado por aproximadamente 20 mil volumes, o Acervo Haroldo de Campos reúne o material que pertenceu à biblioteca do poeta. Sua base de dados está disponível no site da Casa das Rosas e as publicações podem ser consultadas no local, com agendamento prévio de terça-feira a sábado, das 10h às 18h.

A presença de Haroldo de Campos é hoje mais perceptível do que quando o poeta era vivo? A resposta não deveria ser um altissonante sim, quando se conta com uma instituição do porte da Casa das Rosas tendo, entre suas missões precípuas, a de manter viva sua presença cultural, tanto no que se refere à obra em si quanto ao seu estudo? Críticos autônomos e atomizados hoje como ontem discutem, naturalmente, a obra e o legado de Haroldo de Campos, porém a discussão não se centra na e sequer passa verdadeiramente pela Casa das Rosas, apesar de algum evento eventual e eventualmente “haroldiano”, dos quais nenhum teve repercussão ou significado realmente marcante. A Casa das Rosas tem se mostrado consistentemente menor do que o legado histórico de Haroldo de Campos (onde estão os grandes estudos de sua obra a partir do enorme acervo que controla?), assim como tem se mostrado menor do que o legado cultural e poético paulistano, para não falar da poesia do presente.

5. Presenças, ausências e consequências

A Casa das Rosas é uma instituição relativamente grande – mas talvez ainda não seja, infelizmente, uma grande instituição. Está, em todo caso, muito longe de ser um ímã ou um farol na atual paisagem poético-cultural paulistana – sequer é um ponto relevante na paisagem turística, como as casas de tantos poetas pelo mundo, capazes de atrair pequenas multidões de viajantes e passantes (para não falar daqueles que “permanecem na cidade” quando a maioria viaja). A Casa das Rosas de fato nunca esteve no centro das atenções, no centro das conversas, no centro dos interesses, no centro das expectativas. Verdadeiramente ela está, apenas, no centro da avenida Paulista.

Em torno da Casa das Rosas se abre, portanto, somente a avenida. E em volta da avenida, a capital paulistana. A Casa das Rosas tinha por força de ser um centro irradiador de cultura e de poesia, porém não é um centro irradiador de poesia e de cultura, porque não é um centro irradiador. No centro da Paulista, perdida em uma “atmosfera onírica”, há uma roseira algo fenecida, um roseiral à míngua de verdadeira vitalidade e presença, apesar de seu tamanho, tanto físico quanto institucional.

O que lembra Roseiral, de Ferreira Gullar. Cabe então perguntar quando Gullar (candidato ao prêmio Nobel) foi trazido a São Paulo para falar de poesia brasileira contemporânea, de sua história ou da história da arte moderna na Casa das Rosas. Depois de haver sido seu “companheiro de viagem”, Gullar foi um inimigo figadal de Haroldo de Campos. Mas isso não significa nem pode significar nada em relação a uma instituição ligada ao governo do Estado de São Paulo, que, salvo engano, responde a todos e por todos os cidadãos paulistas e paulistanos, e não aos grupalismos envolvidos em embates e debates poéticos do passado. Seus representantes vivos, e suas memórias, opiniões e experiências têm de ser respeitados e resgatados, por exemplo, tendo por palco a Casa das Rosas, mas seus antagonismos de outrora não. Naturalmente, a ausência de um Ferreira Gullar daquela que se pretende a mais importante instituição ligada à poesia contemporânea da maior cidade brasileira é mais do que um acidente ou um caso isolado. É, na verdade, um indicador incontornável da pequenez e do apequenamento da instituição, bem como de sua “feudalização”: o contrário de “um espaço completamente democrático” e de “um refúgio onde toda a expressão poética encontra seu espaço”. À diferença de Ferreira Gullar, Augusto de Campos, por exemplo, é uma presença constante na casa.

Não se intenciona, com tal constatação, sugerir absolutamente que Augusto de Campos não devesse ser ali, ou em qualquer outra instituição dedicada à poesia brasileira, uma presença destacada. Está-se apenas e tão somente afirmando que isto se dá, no caso da Casa das Rosas, de modo objetivamente desbalanceado em relação a outros nomes, para muito além de Ferreira Gulllar. A lista de ausências é, de fato, extensa demais para poder ser reproduzida, mas basta talvez dizer que nela se sobressaem nomes notáveis, tanto históricos quanto vivos, tanto de poetas e outros artistas quanto de críticos, como Mário Faustino, Willy Correa de Oliveira, Waldemar Cordeiro e um extenso etc. Por outro lado, entre os nomes constantes, ao se analisar a programação da instituição ao longo dos anos, destacam-se Cláudio Daniel – cuja amizade com o diretor da Casa das Rosas é quiçá mais notória do que sua obra –, certa Virna Teixeira e, acima de todos, o próprio diretor da instituição, Frederico Barbosa (como já indicado pela programação “especial” do dia 25 de janeiro, cujo evento central foi a leitura de poemas de seu mais recente livro, Signicidade).

AUGUSTO DE CAMPOS: DO CARBONO AO FLASH
Com Frederico Barbosa
Terças-feiras, 17, 24 31 de janeiro, 7 e 14 de fevereiro, 19h30.

Este curso apresenta a poesia de um dos mais importantes escritores brasileiros, acompanhando o desenvolvimento da sua obra desde antes da invenção da poesia concreta, passando por livros como Viva Vaia, Despoesia e Não. Merecerá especial destaque a investigação de novas práticas poéticas que, por vezes, antecipam em muito os avanços tecnológicos posteriores, como a utilização do papel-carbono para obter as cores da série de poemas “Poetamenos”, de 1953, e as diversas experiências com diferentes suportes para a poesia, em livros como Poemóbiles e Caixa Preta, culminando com a utilização da linguagem Flash pelo escritor, quando já se aproximava dos 80 anos.

DO CRICRI AO CRÍTICO (Módulo 2)
Oficina de crítica literária
Com Frederico Barbosa
Quartas-feiras, 11, 18 de janeiro, 1, 8 e 15 de fevereiro, 19h30.

Segunda parte desta oficina que pretende identificar o que caracteriza a postura crítica diante de uma obra de arte. Este módulo é destinado aos que tomaram parte no primeiro segmento, ministrado em dezembro.

EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA “DA BIBLIOCASA”
SIAMESMOS
Curadoria: Frederico Barbosa

Augusto de Campos é quem nos explica o título desta edição da série “Da Bibliocasa”, no texto que escreveu quando do falecimento de seu irmão Haroldo: “‘Irmãos siamesmos’ era como ele gostava de se referir a nós dois, nos bons tempos, anulando as nossas naturais diferenças e extremando na sua palavra-valise a tradução que eu fizera dos versos do ‘Epitáfio’, de Corbière. […] Neste bimestre [início de 2012], serão expostos exemplares das obras de Augusto de Campos presentes no Acervo Haroldo de Campos.

Além dos saraus e das presenças habituais, outra constante das atividades da casa são as suas autointituladas “raves”. Uma rave, como se sabe, é uma festa cabeluda e descabelada cuja receita pede, entre outros ingredientes, uma multidão, música eletrônica e drogas contemporâneas, como o ecstasy. Mas dificilmente os Demônios da Garoa fariam parte da “farra”:

Uma Rave Cultural será realizada neste final de semana [04/12/2009] para comemorar o aniversário da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, com leitura de poemas, contação de histórias e debates literários entremeados às apresentações musicais que vão agitar o número 37 da Avenida Paulista, das 12 horas do sábado, 5, até as 6 horas do domingo, 6. Shows de Maria Alcina, Demônios da Garoa e Ulisses Rocha estão na farra.[7]

Quem também fez parte, em todo caso, foram os poetas Ademir Assunção, Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Carlos Felipe Moisés, Claudio Daniel, Claudio Willer, Donny Correia, Edson Cruz, Eunice Arruda, Flavio Amoreira, Frederico Barbosa, Luiz Roberto Guedes, Marcelo Ariel, Marcelo Tápia, Márcio-André, Micheliny Verunschk, Nicolas Behr, Ricardo Silvestrin, Rodrigo Petronio e Virna Teixeira. Uma lista bastante representativa dos convidados habituais da casa: alguns nomes de inquestionável mérito em meio a vários nomes de méritos no mínimo questionáveis (no sentido denotativo: que podem e portanto devem ser questionados) – apesar de presentes, aqui, numa data importante de uma instituição também importante ligada à poesia contemporânea. Quanto às datas menos importantes…

Já para futuro, promete-se mais do mesmo:

A casa pretende dar continuação ao trabalho realizado na instituição nos últimos anos, que incluiu a realização, no espaço museológico, de inúmeras atividades dedicadas ao estudo e à propagação da literatura, como cursos semanais ministrados por importantes nomes da cultura contemporânea, palestras, debates, recitais, exposições, entre outros eventos. Com a realização de novos eventos periódicos, é pretendida a ampliação das atividades voltadas principalmente ao incentivo do diálogo entre poetas de outros estados e países, facilitando a aproximação e intercâmbio da literatura de diversas culturas.[8]

De fato, a Casa das Rosas sedia vários eventos. De uns anos para cá, por exemplo, passou a cossediar o Bloomsday de São Paulo, homenagem anual à obra de James Joyce, introduzida pelo próprio Haroldo de Campos em outra verdadeira “instituição” paulistana, um de seus bares mais antigos e seu primeiro pub, o Finnegan´s – cujo nome, aliás, também remete à obra de Joyce. Mas por surpreendente que pareça, o Bloomsday paulistano, que vinha crescendo ano a ano por mérito de seus atuais organizadores, Marcelo Tápia e Ivan Campos, e pelo apoio de seu proprietário, Mário Fuchs, não cresceu tão significativamente em sua nova situação. Como “instituição”, o Finnegan´s, sozinho, fez mais pelo Bloomsday, que pioneiramente acolheu, albergou e fomentou, do que a Casa das Rosas. O Finnegan´s pode ser um “grande” pub, mas é na verdade pequenino, apenas uma esquina de duas ruas relativamente estreitas de Pinheiros; já a Casa das Rosas… (“erguida numa área de 5.500 metros quadrados, possui 30 cômodos no estilo arquitetônico francês”). [9] São Paulo não é Nova York, mas tampouco é Little Rock (Arkansas). É, em suma, a cidade mais moderna e cosmopolita do país. Essa modernidade e esse cosmopolitismo não deveriam estar refletidos nas e ao mesmo tempo se refletir a partir das instituições artístico-culturais da grande cidade? Se um pub sozinho conseguiu, por muitos anos, albergar um evento de caráter e origem verdadeiramente internacionais (o Bloomsday é comemorado em muitas cidades do mundo, incluindo Dublin, Paris e a própria Nova York), onde estão os grandes eventos literários internacionais da Casa das Rosas?

Se São Paulo não é Nova York, em compensação, Paraty não é São Paulo. Isso não impediu a minúscula cidade do litoral carioca de sediar o evento literário mais midiático do país, a Flip. Dizê-lo midiático não significa dizer que seja somente isso, ainda que o seja significativamente. Pois a presença de nomes (para citar apenas os internacionais) como Salman Rushdie, Ian McEwan, Martin Amis, Paul Auster, Margaret Atwood, Anthony Bourdain, Jonathan Coe, David Grossman, Michael Ondaatje, Orhan Pamuk, Colm Toíbín, Enrique Vila-Matas, J. M. Coetzee, Claude Lanzmann e Richard Dawkins, entre muitos outros, redundou não apenas em manchetes nos cadernos culturais e em “saraus” (ou seja, em leituras de textos pelos próprios autores), mas também em longas entrevistas para diversos meios nacionais e, eventualmente, em debates relevantes. Paraty consegue, mas São Paulo não? A Flip é capaz, mas a Casa das Rosas não?

Sem dúvida é mais fácil reunir, hoje, uma lista de “notáveis” da ficção e da ensaística internacionais, como faz predominantemente a Flip, que, ao contrário da Casa das Rosas, não se centra ou se concentra na poesia (ainda que dela não se esqueça), mas tal facilidade relativamente maior não pode servir de justificativa para um desempenho incomparavelmente melhor. No mundo contemporâneo, em que a globalização e a “sociedade da informação” encolheram as distâncias, enquanto países como a China aumentaram sua proximidade, não é difícil detectar a existência, por exemplo, de poetas chineses importantes como Bei Dao, Yu Jian e Han Dong. Ou de norte-americanos em todos os sentidos mais próximos, como John Ashbery, Charles Bernstein, Susan Howe, C.D. Wright, Kenny Goldsmith ou  Michael Palmer… Ou dos uruguaios Eduardo Milán e Roberto Echavarren, do argentino Juan Gelman, do chileno Nicanor Parra, da peruana Olga Orozco, do cubano Rolando Sanchez Mejias, do francês Jacques Roubaud … São Paulo é tão provinciana assim, para que a sua maior instituição dedicada à poesia contemporânea pareça simplesmente desconectada da poesia contemporânea de nível alto?

A poesia obviamente perdeu o lugar central que já ocupou nas culturas paulistana e brasileira, num longo arco entre Olavo Bilac, o “príncipe dos poetas”, e Paulo Leminski, o primeiro e último poeta brasileiro com fôlego de popstar – passando pela Semana de 22, a “geração de 45”, a Poesia Concreta etc. A Casa das Rosas deveria, por isso mesmo, ter ao menos vigor suficiente para empreender algum esforço significativo contra a maré vazante. Mas ela, de fato, pouco faz além de “celebrar” e de “homenagear” através de saraus:

SEMANA DE ART MODERNA: 90 ANOS DEPOIS
Apresentação: Fernanda de Almeida Prado
Quinta-feira, 16 de fevereiro, 20h.

Com convidados especiais, o sarau celebra os 90 anos de um dos movimentos culturais mais importantes de nossa história – a Semana de Arte Moderna de 1922. Música, poesia e arte homenageiam a memória de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e tantos outros importantes poetas modernistas. [10]

Celebrar ou homenagear é, sem dúvida, importante. Mas será necessário uma Casa das Rosas para isso? E isso está à altura do evento aqui homenageado? Se não cabe ao Estado criar obras de arte, tanto quanto tentar dirigir a criação artística e a produção intelectual, cabe-lhe, talvez, criar algumas condições que tornam o terreno menos infértil, principalmente no estado mais rico e industrializado da Federação. A própria Semana de 22 aconteceu no Teatro Municipal. Quanto mais moderna uma cidade, melhores, em maior número e mais modernos seus equipamentos urbanos – grande parte deles de natureza pública. Isso inclui parques, bibliotecas e museus, mas também instituições voltadas para uma atividade em especial, como é o caso da Casa das Rosas. Ela, porém, como o nosso sistema judiciário, é mais moderna nas instalações do que na atuação. Não faltam no Brasil “palácios da justiça”, mas falta uma justiça menos “palaciana”, ou seja, verdadeiramente republicana e democrática, que simplesmente atenda às expectativas e às necessidades da população. A Casa das Rosas é, afinal, um “palácio da poesia”.

O que leva incontornavelmente a uma questão: o que pode o Estado em relação à poesia contemporânea? Se só pode muito pouco ou quase nada, para que todo o orçamento da Casa das Rosas? Dinheiro não é poder? E poder não é um verbo, ou seja, poder fazer? Poesia, aliás, poeisis em grego, também é um verbo, e igualmente significa fazer. O que faz de fato a Casa das Rosas pela poesia brasileira contemporânea? Qual é, aliás, o orçamento da Casa das Rosas? (3 de fevereiro de 2012).

Notas

[1] Rodolfo C. Bonventti, “O que e como avaliar – agências privadas de acreditação, uma realidade na União Europeia e em vários outros países da América Latina, começam a ser discutidas no Brasil”.

[2] Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, “Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura”.

[3] “Programação de janeiro”, http://www.casadasrosas-sp.org.br/.

[4] Dicionário Houaiss.

[5] Http://www.casadasrosas-sp.org.br/.

[6] Ibidem (as próximas citações têm todas a mesma fonte, salvo indicação em contrário).

[7] “Casa das Rosas festeja aniversário com Rave Cultural”.

[8] “Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura”.

[9] “Arquitetura”, http://www.casadasrosas-sp.org.br/.

[10] “Programação de janeiro”, http://www.casadasrosas-sp.org.br/.

[11] Como é habitual nos EUA, entre outros, apesar de pouco praticado aqui, o autor tentou entrar em contato com o diretor da Casa das Rosas antes de encaminhar esta análise para publicação, naturalmente não para a apresentação do texto em si, mas para comunicar sua existência e suas conclusões, a fim de colher alguma observação que, sempre a critério do autor, pudesse ser incorporada. A tentativa (02/02/2012, no número institucional (11) 3285-6986, registrada pela secretária Paula) não obteve resultado.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).