Marco Antonio Villa é mestre em Sociologia (1989) e doutor em História Social (1993) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor associado 4 do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Entre suas obras mais importantes se destacam Jango: um perfil (1945-1964) (São Paulo, Globo, 2003), O Partido dos Trabalhadores e a política brasileira (1980-2006): uma história revisitada (São Carlos, EdUfScar, 2009), A história das Constituições Brasileiras (São Paulo, Leya, 2012) e Ditadura à brasileira 1964-1985: a democracia golpeada à esquerda e à direita (São Paulo, Leya, 2014).
Sibila: Jacob Gorender enfatiza, de acordo com Carlos Fico, que, no pré-64, engendrou-se uma real “ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo”: “O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século [XX]. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contrarrevolucionário preventivo”. Segundo Fico, “Gorender consolidou, em traços gerais, duas das principais linhas de força interpretativas sobre as razões do golpe: o papel determinante do estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro e o caráter preventivo da ação, tendo em vista reais ameaças revolucionárias provindas da esquerda”. O senhor concorda com essa visão do golpe? Ela não tem algo de irrealista? Havia, de fato, ameaças reais ao poder e ao statu quo vindas da esquerda? A conjuntura externa, as grandes tensões da Guerra Fria, não foram uma lente que deformou as percepções políticas da época? Paradoxalmente, este não é o argumento central dos que justificam o golpe?
Villa: Nunca existiu essa “situação pré-revolucionária” a que se refere acima. É uma leitura marxista do século XIX. Não se sustenta nos fatos. É pura construção ideológica. Deve-se recordar que o Brasil, desde os anos 1920, viveu um período de turbulência política. 1922, 1924, Coluna Prestes, 1930, 1932, 1935, 1937, 1938 e 1945 foram alguns dos momentos de abandono da política – no sentido do convencimento do adversário – e da priorização do combate, do embate, da guerra, da transformação do outro em inimigo. Em 1955, no mês de novembro, tivemos três presidentes da República. Na presidência JK ocorreram duas tentativas para derrubá-lo e, ainda, não se deve esquecer a grave crise de agosto de 1961. Em todos esses momentos, a “situação pré-revolucionária” foi absolutamente inexistente. Está mais do que na hora de abandonarmos interpretações que prescindem dos fatos históricos. Em tempo: o governo Jango – como tento demonstrar, detalhadamente, no meu livro Jango, um perfil (São Paulo, Globo, 2004) – foi uma enorme bagunça. E, no mínimo, ele quis uma vez dar um golpe de Estado, como em outubro de 1963, quando tentou – e não conseguiu – aprovar o Estado de Sítio.
Sibila: Gorender escreveu: “O núcleo burguês industrializante em 1964 e os setores vinculados ao capital estrangeiro perceberam os riscos dessas virtualidades das reformas de base e formularam a alternativa da ‘modernização conservadora’”. A “modernização conservadora” não foi uma criação do governo militar, mas é uma marca da história brasileira, incluindo a Proclamação da República pelo exército, a República Velha, o governo Vargas, o governo JK. Hoje, o Brasil de 2014 tem um perfil agrário e exportador, sem uma burguesia industrial fortalecida. Ao mesmo tempo, desde os governos FHC e Lula e incluindo o governo Dilma, há uma proclamada ascensão econômica das classes mais baixas, mas restrita ao consumo, e excluindo todos os fatores da cidadania moderna, a começar da educação. Esta seria uma das caras reatualizadas da modernização conservadora à brasileira em geral, e de 1964 em particular?
Villa: Não. O Brasil de 1964 ainda era um país rural e sob forte influência dos interesses agrários, a maior parte deles arcaicos, pré-capitalistas. Hoje o Brasil é um país urbano e com uma agricultura moderna, capitalista (diferente do pré-64). O processo de industrialização também vive um momento radicalmente distinto. A desindustrialização é um fenômeno dos últimos anos e é preocupante. Os governos Lula e Dilma apostaram, fortemente, no modelo neocolonial e o país está, penso, pagando a conta. Também não acho que seja possível fazer um paralelo com os governos militares. Estes – é inegável – fizeram uma verdadeira revolução na infraestrutura. O que foi feito depois nessa área? Se o Brasil crescer (algo que dificilmente ocorrerá) a 5% durante quatro anos seguidos, não haverá energia suficiente para acompanhar esse suposto crescimento econômico.
Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975 (pós AI-5), incluindo a do Araguaia, não haveria redemocratização formal do país. Sem as torturas e outros fatores (governo Jimmy Carter) a presença dos militares se prolongaria. O senhor concorda com esta tese? Ela não simplifica tudo em uma variável, talvez hipertrofiada e inteiramente externa ao regime, omitindo, por exemplo, os conhecidos embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à questão da necessidade da redemocratização? Há algum documento estratégico do governo militar que contemple a perspectiva de uma ditadura indefinida?
Villa: Não há qualquer relação entre a distensão (depois, abertura) e o governo americano, qualquer que fosse. É irreal (sem qualquer comprovação nos fatos) estabelecer essa relação. Também é um absurdo estabelecer relação entre redemocratização e luta armada. Esta terminou por volta de 1973 e a redemocratização foi bem posterior. Mas o mais importante é que a luta armada nunca visou à redemocratização, em nenhum momento. Desejava (e todos seus documentos o comprovam) a ditadura do proletariado. A única divergência entre eles era se a ditadura (note, ditadura) seria de viés cubano, soviético ou chinês. Mas todos, todos concordavam que a luta socialista deveria ser travada em defesa de uma ditadura do proletariado. Isto − é óbvio – não significa concordar com a repressão e a violação dos direitos humanos, brutais, efetuadas pelos governos militares, sob qualquer ótica.
Sibila: O que significa a presença de José Sarney da UDN até hoje, passando pelo golpe de 1964? Com ele liderando a transição, não se fez uma Comissão da Verdade. Como o senhor explica uma transição para a democracia sem uma Comissão da Verdade e sem a punição dos militares e dos “excessos” (formalmente crimes) dos aparelhos de esquerda? O assassinato, por exemplo, de Henning Boilesen, foi excessivo ou justo? Pode uma execução extrajudicial ser justa? Se o for, quando praticada pela esquerda, não o será também quando praticada pelo aparelho de Estado?
Villa: José Ribamar da Costa – vulgo José Sarney – estava saindo da UDN (era da “ala bossa nova”) e migrando para o PTB (cooptado por Jango). Não só ele, mas outros parlamentares da UDN e PSD, sobretudo. É de se dizer que Ribamar da Costa foi um mero acidente – trágico, é verdade – da história. O Brasil dormiu, na noite de 14 de março de 1985, com Tancredo presidente e acordou com Ribamar da Costa no Palácio do Planalto. Definitivamente, Deus não é brasileiro. Considero que a Comissão da Verdade deveria ter sido instalada em 1985, mas como iniciativa do Legislativo federal e com a participação de parlamentares e representantes da sociedade civil. Não foi o que ocorreu. Imaginar que Ribamar da Costa apoiasse a comissão é ingenuidade. Com relação ao dinamarquês Boilesen, mesmo sabendo da sua participação na organização e financiamento do aparelho repressivo, não encontro justificativa plausível para o seu assassinato. Ele era mais que um desequilibrado, isto não tem discussão. Mas caberia, apesar de todos os grandes obstáculos, tentar (ainda que em vão) utilizar os mecanismos legais para contê-lo e processá-lo.
Sibila: As fragilidades atuais do Poder Judiciário, do Ministério Público e da polícia decorrem em parte da impunidade dos agentes de 1964?
Villa: Não. Já passou muito tempo. O problema deve-se à forma como se desenvolveu o processo de redemocratização. Os cinco anos de Ribamar da Costa foram trágicos para o país. Demorou muito a convocação das eleições diretas para presidente, a convocação e os trabalhos da Constituinte. Pior: na nova estrutura acabaram prevalecendo os interesses mais arcaicos da antiga ordem. O novo nasceu velho. O Poder Judiciário, no geral, continua de costas para o país. Basta acompanhar o noticiário. O PJ é lento, burocrático e está permeado pelos interesses corporativos. O PJ deveria dar exemplo de gestão republicana, porém nas instâncias superiores o empreguismo e filhotismo são patentes. Dá a impressão de que o Judiciário pouco difere do Legislativo e do Executivo, e não cumpre sua principal atribuição: fazer justiça.
Sibila: Considerando as teorias da Nova História e do culturalismo, gostaria que o senhor falasse um pouco de fatos como Sergio Paranhos Fleury ter sido guarda-costas de Roberto Carlos de 1965 a 1968 e guarda-costas de todo o pessoal da Jovem Guarda – criada pela agência de publicidade de Carlito Maia, irmão de Dulce Maia (da ALN). Roberto Carlos que elogiou em 1973 o general Pinochet, chamando-o de “señor presidente, Don Augusto Pinochet”. Houve colaboração de artistas com o regime militar em geral e com a OBAN e o DOI-CODI em particular?
Villa: Sinceramente desconheço. Mas gostaria de lembrar que a ditadura do Estado Novo (Vargas) – que matou mais do que a militar, registre-se – cooptou centenas de intelectuais e políticos por todo o país e nenhum deles foi cobrado no pós-1945. Carlos Drummond de Andrade não foi chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema durante 11 anos? Victor Nunes Leal não foi o oficial de gabinete do mesmo ministro? Ulysses Guimarães não foi assessor do Departamento Administrativo do estado de São Paulo, criação do Estado Novo? JK não foi prefeito indicado de BH? Poderia listar dezenas de nomes que tiveram uma ligação orgânica com o EN muito maior do que a menção de RC ao ditador Pinochet ou a relação dele com o delegado Fleury.
Sibila: Paris e Londres eram as referências gerais. Uma parte dos intelectuais seguia Paris (campo socialista) e outra, Londres (“pós-política”, música, sexo & marijuana, marcada pela contracultura, “subversiva” aos olhos dos militares). Parece que, ao longo do tempo, a linha londrina prevaleceu na cultura brasileira. O senhor concorda? Isso tem relação com 1964?
Villa: Não creio. Presumo – presumo, note – que a influência americana tenha sido muito maior.
Sibila: Como o senhor vê o rebaixamento cultural brasileiro de hoje? Ele tem causas em 1964? Ou com a civilização global do espetáculo, na qual o entretenimento substituiu a cultura em si, e a arte se tornou uma arte simplificada e sem referências que perturbem sua recepção?
Villa: O rebaixamento não tem qualquer relação com 1964. O processo cultural do Brasil sempre foi relativamente pobre. A diferença dos dias de hoje com 1964 é que agora somos um pouco piores. Os artistas e intelectuais dizem o inverso. Quase todos estão em busca de algum favor, de um patrocínio milionário de algum banco ou empresa estatal (ou diretamente do MinC). A “cultura” brasileira atual não tem qualquer importância. É lixo puro.
Sibila: Aprofundando a questão anterior, por que parece não haver mais condições para uma arte crítica no Brasil? Trata-se do fim das utopias, da globalização, do consumismo, do narcisismo “Facebook”, em suma, do “espírito da época”, incluindo certa “demissão da crítica”, em grande parte mercadologizada, como, aliás, a própria mídia, ou o modelo social e econômico brasileiro é parte necessária da resposta, de que o atrasado modelo “agrário”, isto é, agroexportador, é exemplo e talvez parte implicada?
Villa: O Brasil emburreceu. E não é de hoje. Não consigo estabelecer relação com o modelo agrário. Lembro que o agronegócio tem salvado a balança comercial e já faz um bom tempo. Assim como teve papel decisivo para a queda da inflação. Ou seja, a revolução no campo prescindiu da reforma agrária que setores defenderam durante meio século. Foi um dos erros mais sérios da história política brasileira. Houve não só uma revolução agrária – uma revolução do capital, registre-se – como uma industrialização sem alteração no regime de propriedade da terra. E pior: os setores que propunham a reforma agrária não fizeram ainda uma autocrítica.
Sibila: Por que não há políticas públicas para a cultura no Brasil? Por que a cultura é tratada como evento? Por que tantos eventos culturais vazios? Por que tanta festa literária e tão pouca literatura relevante?
Villa: Difícil responder. O número de eventos está relacionado à necessidade de manter artistas sem público (mas com relação privilegiada com o poder) como instrumento eventual de apoio político. O “evento” é pretexto para transferir dinheiro público para interesses privados. E a cultura? Bobagem. Ninguém está pensando nisso. Hoje temos uma intelectualidade chapa branca, do “sim, senhor”. São as gargantas de aluguel a serviço do poder (e de qualquer que ele seja, DEM, PMDB, PT, PSDB, PSB). Todo mundo está atrás de uma boquinha e preferencialmente de uma viagem ao exterior, de alguma cátedra, enfim, de alguma sinecura.
Sibila: João Cabral, em duas conferências famosas, de 1952 e 1954, já discorria sobre o problema do fatal distanciamento moderno do público de poesia. As coisas pioraram ou melhoraram, paradoxalmente, durante o regime militar? Alguns poemas de A rosa do povo, de Drummond (1944), ou “A rosa de Hiroshima” de Vinicius (1954), e livros como Poema sujo de Gullar, tiveram então alguma popularidade, pela temática politizada, e parecem ter conseguido manter a poesia dentro de um contexto de certa efervescência político-cultural reativa, que incluía o teatro (Arena, Opinião etc.), a música popular e mesmo a prosa, como no caso das coletâneas de contos brutalistas de Rubem Fonseca dos anos 1970. Se houve melhora ou piora em relação à situação descrita por Cabral nos anos 1950, ou melhora pontual e piora geral, e outras variações, estas se amenizaram ou se acentuaram com a redemocratização à brasileira?
Villa: Sou um historiador que trabalha fundamentalmente com a história política. Não sou o mais adequado, creio, para responder esta questão. Mas me parece evidente que pioramos. As causas eu não sei. Faço também esta pergunta, penso, especulo, mas não tenho resposta.
Sibila: À época do golpe militar, o mercado editorial brasileiro era bastante apequenado. Os números de novos títulos, de traduções, de leitores etc., eram mínimos, incluindo a esfera acadêmica. Além disso, serviam a uma pequena intelligentsia de escritores, críticos, intelectuais etc. Não havia nem um público de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento daquela intelligentsia, hoje minguada em sua influência e mesmo em sua existência, substituída pelos algo fantasmáticos “formadores de opinião”. O senhor concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de ganhar por perdas?
Villa: O poder não tem interesse numa revolução cultural. É mais fácil comprar a preços módicos (alguns não tão módicos) uma penca de escritores, poetas, músicos etc. Ninguém está nem aí com a cultura. Que biblioteca digna do nome foi construída na última década? Pior: alguém reclamou?
Sibila: A literatura brasileira, hoje, cresce por diluição, em mais de um sentido, em meio a um mercado polimorfo e à convivência com a internet, seja no caso da publicação em e-books ou da reedição eletrônica e dos downloads, seja no caso de criações originais feitas na rede e para a rede, que podem ou não vir a ser publicadas em livro. Ao mesmo tempo, o mercado editorial em si também cresce, ainda que manco, pois centrado e concentrado em modismos mercadológico-literários. Mesmo a poesia encontra, apesar de muito pontualmente, espaços passageiros de grande presença, de que é exemplo a recente publicação da obra poética completa de Paulo Leminski, que se tornou um best-seller. Como pode, se pode, a literatura contemporânea voltar a ter alguma influência cultural? Neste caso, o período do regime militar ficará na história como seu último momento de presença forte, apesar de tudo?
Villa: Sou pessimista. Acho muito difícil ter alguma modificação neste quadro pavoroso. Só poderia ocorrer uma mudança caso tivéssemos uma profunda alteração na estrutura de poder (o que não deve ocorrer). Observe, por exemplo, o papel inútil (e caro) das universidades públicas. Vamos continuar na mesma toada, infelizmente.
Sibila: Se as mentalidades são mesmo prisões de longa duração, podemos afirmar que há uma característica histórica permanente na mentalidade brasileira? Qual?
Villa: A mediocridade.
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