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Uma carta – Luis Dolhnikoff

Bom dia, querida.

 

Agora que você já encontrou esta carta em sua mesa, abriu-a e a tem nas mãos, agora que você começa a lê-la e se pergunta, ao reconhecer a minha letra, por que eu lhe escreveria uma carta em vez de simplesmente mandar um zap, posso lhe contar o que só poderia contar desta maneira não imediata: esse agora em que você vive e lê não é o mesmo em que eu, agora, escrevo. Nada mais estupidamente óbvio, aparentemente. Dormiu bem? Na verdade, o que importa é que, além da diferença de tempo, há outra coisa que os separa: estou morto.

Acabo de tomar uma quantidade bem razoável de fenobarbital. Por isso, preciso escrever rápido.

A muitos homens acontece de um dia acordar e não ver nenhum sentido em sair da cama. Ou sequer em respirar, o que deixariam de fazer se isso não fosse impossível sem uma ação (procurar e pôr um saco plástico na cabeça, por exemplo) absolutamente incompatível com esse estado de prostração e tédio que transforma a vida numa pena de prisão perpétua. Mas, normalmente, esses homens conseguem escapar da cama e do provável suicídio com um pouco de distração. Duas horas de cinema, uma briga com a mulher, o reatamento, o desejo por outra qualquer, a ideia de um filho, a espera de um filho, os problemas do filho, as preocupações com o filho, um outro filho, um carro novo, um velho jogo, o crime do dia, o saldo bancário, o desejo de gastá-lo, a necessidade de poupá-lo, a vontade de aumentá-lo, o cálculo da aposentadoria, a mudança do tempo, a possibilidade de uma viagem, a confirmação das reservas de um hotel, um hotel, o medo, o seguro de vida, a inveja, o convite para uma festa, o sentimento de culpa, a chegada de um delivery acabam por fazê-los esquecer da própria indiferença por tudo, e eles se lembram de que ainda precisam se barbear.

Comigo aconteceu uma coisa curiosa: a cada dia, a indiferença vem (ou vinha) aumentando. E cada esforço que faço, ou melhor, fazia para me distrair, acabava por somar uma possibilidade a menos de fuga, um ato ou objeto já testado e falho em sua capacidade de fazer o tempo passar sem parecer que eu vivia sempre o mesmo momento interminável.

Há pouco tempo, e por pouco tempo, foi o sexo, as horas que passávamos como animais famélicos prestes a se saciar, e certos de consegui-lo, e conseguir também o cansaço, o bendito cansaço físico.

Hoje, sem vontade de me encontrar com você, procurei na internet os contatos de algumas putas, tentando descobrir se as suas vozes vulgares, suas palavras risíveis, ou a possibilidade e a facilidade de um pouco de prazer absolutamente egoísta, como só se pode ter com uma puta, e é a causa de sua perenidade, conseguiriam me vivificar um pouco. Foi, como eu imaginava, inútil. Como também foi inútil a tentativa de conceber e escrever um conto qualquer, desses que eu vinha escrevendo nos últimos tempos.

Houve um tempo em que a ideia da glória literária, ou que outro nome menos inchado tenha o fato de se ver o próprio nome nas redes ou na capa de um livro, e os livros descritos redundantemente por vários críticos, e imaginar outros homens lendo as palavras que eu escrevera para me distrair de mim mesmo a fim de se distrair de si próprios, economicamente, conseguia encurtar, e isso era o maior prazer possível, alguns dos meus dias. Não mais.

Escrevo afinal esta carta com o mesmo fim: encurtar a espera do efeito do barbitúrico. Mas, por favor, não se sinta usada, como você sempre diz. Ninguém pode usar ninguém para nada, a não ser para fazer sofrer a si mesmo. Eu realmente queria lhe escrever, só por escrever, e agora uno as duas coisas.

Talvez você se entristeça, e me julgue egoísta por privá-la de seu prazer. Mas sempre, sempre haverá outros homens.

Quanto ao assunto sobre o qual queria lhe escrever, é este mesmo: contar a você, a única pessoa a quem ainda desejo contar alguma coisa, como as coisas aconteceram. A ideia de comprar e tomar uma boa dose de barbitúricos (encomendei pela internet) me deu um pouco de verdadeira emoção.

Antes de me despedir, registro que deixo todos os meus livros para você, mesmo que nunca vá lê-los. Neles estão as mais suportáveis vozes humanas que eu pude encontrar, você sabe.

B., M.S.

 

 

P.S. Deixei instruções para a Célia levar esta carta à sua casa assim que chegar e a encontrar na mesa da sala, antes de começar a arrumação e me encontrar, e ainda aproveitar a ida e inverter os dias, limpando primeiro hoje a sua casa. É uma das vantagens (talvez a única, pensando bem) de ter uma faxineira comum. Como você jamais acorda cedo (nem tem insônia, o que sempre achei invejável), tenho certeza de que a encontrará – de que já a encontrou – sobre a mesa da sala.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).