A virgindade de Hérodiade
Em uma carta que data de 1866, Mallarmé diz ter encontrado o nada en creusant le vers. O poema que o poeta trabalhava nesse período era “Hérodiade”. Com o propósito de compreender esse conceito tão importante na obra de Mallarmé, analisamos tal poema.
Mallarmé (1998, p. 699, tradução nossa) diz de Hérodiade: “Je tiens à en faire en être purement rêvé et absolument indépendant de l’histoire”.[1] A personagem não tinha, portanto, nenhuma relação com a personagem bíblica Salomé, figura recorrente na mitologia simbolista. Na história bíblica, Salomé dança para seu pai e este, encantado, promete fazer o que ela quiser. A moça, persuadida pela mãe, pede a cabeça do santo João Batista numa bandeja.
Salomé, que no poema de Mallarmé é Hérodiade, nos remete à sedução e ao poder da arte, mas ao mesmo tempo traz consigo qualquer coisa de macabro e cruel pela morte e pela violência a ela associadas. Num esboço de prefácio para o poema, Mallarmé diz que gostaria de isolar justamente esse aspecto assombroso da personagem, o que a faz ser considerada um monstro, para expor aquilo que, de fato, se esconde na história. Vejamos como Mallarmé compõe a sua Hérodiade.
Na última versão do poema há um diálogo entre duas mulheres, Hérodiade e sua babá. A ação do poema seria um suposto suicídio de Hérodiade.
A personagem é descrita guardando ainda alguns traços da Salomé, tão caros ao período: uma mulher fatal, cuja beleza transborda a sedução da arte e a morte. Beleza cheia de mistérios, fascinante: “Mais n’allais-tu pas me toucher?”. Hérodiade pergunta a sua babá, que responde: “J’aimerais être à qui le Destin réserve vos secrets”[2] (MALLARMÉ, 1998, p. 147). Mas a sua beleza é solitária, ela é virgem, Hérodiade se nega a experimentar la vertu fúnebre.
O poeta faz questão de manter o aspecto sedutor da personagem, que a relaciona à arte, mas acrescenta um dado que não está presente na personagem bíblica ou nas Salomés retratadas na época, o que se constata no trecho em que a babá pergunta à personagem: “[…] Et pour qui, dévorée/ D’angoisse, gardez-vous la splendeur ignorée / Et le mystère vain de votre être?”.[3] E Hérodiade responde: “Pour moi”[4] (MALLARMÉ, 1998, p. 147, tradução nossa). O aspecto macabro da personagem bíblica é substituído pelo horror e pela frieza de uma beleza que se mantém pura, que se resguarda, que resiste ao desejo que quer possuí-la e dominá-la.
j’aime l’horreur d’être vierge et je veux
Vivre parmi l’effroi que me font mes cheveux
Pour le soir, retirée en ma couche, reptile,
Inviolé, sentir en la chair inutile
Le froid scintillement de ta pâle clarté[5]
(MALLARMÉ, 1998, p. 147).
Nesse trecho, vemos a mistura da virgindade e os signos a ela associados, como a cor branca e a neve, como a morte e a noite. A virgindade, que se coloca como recusa do mundo, indica para algo que toda a poesia de Mallarmé pretende alcançar: a pureza. A beleza da personagem teria assim algo de ‘ideal’, mas não se trata do ‘Azur’; a respeito deste, Hérodiade declara: “Et je déteste, moi, le bel azur!”[6] (MALLARMÉ, 1998, p. 147, tradução nossa). A beleza de Hérodiade encarna a própria morte, enquanto a personagem bíblica era a causa da morte de outro. No primeiro caso, a beleza da personagem é o seu próprio fim, o que está nos seguintes versos:
J’attends une chose inconnue
Jetez-vous les sanglots suprêmes et meurtris
D’une enfance sentant parmi les rêveries
Se séparer enfin ses froides pierreries.[7]
(MALLARMÉ, 1998, p. 148).
Mas o que é essa virgindade do mito, essa pureza, esse aspecto do intocável que Hérodiade possui? Qual é a relação entre a arte e o poder de sedução e a pureza da personagem do poema? A pureza de Hérodiade a faz sedutora. Sua beleza, virgem estéril, solitária, como num château de pureté, é a negação do mundo, da vida. Ela se dirige ao desconhecido, se desprende das pedras frias em direção ao mistério. O poeta que procura o desconhecido segue o mesmo caminho. Ele se desprende do mundo, do que o mantém preso à vulgaridade do mundo. A babá não vê Hérodiade porque deseja vê-la. Assim ela contempla e deseja o reflexo no espelho. Quando Hérodiade se vê diante do espelho, toma consciência da nudez de seu sonho. O espelho mostra a realidade como falsa e desnuda o sonho. Ele mostra que a realidade é um sonho, fruto de um desejo, e que o sonho desnudo é a realidade, ela mesma anulada.
Et tout, autour de moi, vit dans l’idolâtrie
D’un miroir qui reflète en son calme dormant
Hérodiade au clair regard de diamant.[8]
(MALLARMÉ, 1998, p. 148).
A idolatria do espelho nos remete à ideia de que Mallarmé fala da literatura, da beleza que tenta ser reflexo do mundo, do poeta que tenta transformar seu poema num reflexo da realidade. O nada que Mallarmé descobre ao escrever “Hérodiade” é justamente a inutilidade e esterilidade desse poeta que, como a babá, guardião da beleza, quer tocá-la, possuí-la, mas ela insiste em lhe escapar.
Trata-se também da adaptação do mito de Narciso, o poeta que procura pelo ‘azur’, pelo ideal, mas que está aprisionado pela idolatria. O poeta expõe a inutilidade da ficção ao tentar adaptar, reproduzir, representar de maneira absoluta: “L’inanité de l’adaptation à l’Absolu de la Fiction”[9] (MALLARMÉ, 2003, p. 69, tradução nossa).
Mas por que essa inversão? Por que a ruptura tão brusca? A Hérodiade de Mallarmé é construída como o oposto da Salomé bíblica. Na sua origem bíblica, o caráter monstruoso de Hérodiade, que Mallarmé queria eliminar, era o de provocar a morte do outro. No poema de Mallarmé, Hérodiade é a figura da pureza, encarnada por meio de sua virgindade, e se antes ela era a causa da morte do outro, agora a morte é a sua própria. Assim as características que relacionavam a personagem à arte foram mantidas e reforçadas. Mas se, na Salomé bíblica, a beleza da arte seduzia e provocava a morte, em Hérodiade a morte aparece como o desejo de preservar a sua pureza.
A pureza de Hérodiade é recusa do mundo, da carne, do objetivo, e sua ‘partida’ ou suposto suicídio reforça ainda mais essa ideia. A morte ou o conceito de nada para Mallarmé, portanto, significa a morte da objetividade, a recusa do sensível, do mundo. Mais ainda, a morte é associada à beleza, à arte, assim a recusa do sensível do mundo estaria relacionada à arte e à beleza. A beleza traz consigo a morte, o nada, este seria o verdadeiro fim da arte, seu único objetivo. Hérodiade, que agora é a arte que traz em si própria a morte, mostra, portanto, que a arte não representa, não é reflexo do mundo.
A pureza da personagem é a recusa a qualquer tipo de representação, uma anulação de tudo o que é alheio e exterior à arte, de qualquer conteúdo que a arte possa ter. É a arte que fala de si mesma que se mantém pura. Vejamos como esse conceito é tratado em outro poema, “L’après-midi d’un Faune”.
O Fauno, o artista e a arte
Segundo Benichou (1995), Mallarmé coloca na boca do fauno um protesto contra a inconsistência da música e uma sátira da arte “déréalisant”. Para ele, Mallarmé faz fauno tão artista que ele não distingue realidade e sonho, de tal forma que não sabia se sua aventura com as ninfas acontecera de fato.
O fauno aparece de maneira cômica e o assunto toma dimensão erótica, pois ele insiste em acreditar nos seus ‘sentidos’ e se deixa guiar pelo desejo. Essa nos parece ser a primeira advertência do poeta: não devemos nos fiar nos nossos sentidos, pois nos iludem. Mas não é só isso. Vejamos como começa o poema:
Ces nymphes, je les veux perpétuer.
Si clair,
Leur incarnat léger, qu’il voltige dans l’air
Assoupi de sommeils touffus[10]
(MALLARMÉ, 1998, p. 153).
Mallarmé trabalhou nesse poema durante muito tempo. O primeiro título do poema, escrito em 1865, era “Monologue d’un faune”, enquanto a segunda versão se chamava “Improvisation d’un Faune”. A versão que citamos é a definitiva, de 1876, intitulada “L’après-midi d’un Faune” e não há nenhuma referência à forma de monólogo pensado para o teatro, que norteou a construção da primeira versão. O que podemos perceber ao longo da reescritura do poema é que a ambiguidade se acentuou. No primeiro trecho citado, parece que o ‘eu’ é o poeta que anuncia seu desejo de perpetuar essas deusas, seres imaginários ou formas evanescentes, não reais, portanto. Mas o ‘eu’ pode ser também o fauno que parece duvidar de sua experiência questionando-se: Aimai–je un rêve?. Em seguida temos, claramente, a intervenção do poeta:
Réfléchissons…
ou si les femmes dont tu gloses
Figurent un souhait de tes sens fabuleux!
Faune! L’illusion s’échappe des yeux bleus
Et froids, comme une source en pleurs, de la plus chaste[11]
(MALLARMÉ, 1998, p. 153).
O poeta se dirige ao fauno (dont tu gloses) e o questiona sobre o que ele, de fato, sentiu, se os seus sentidos são confiáveis. Pede que relate o ocorrido.
Ondoie une blancheur animale au repos:
Et qu’au prélude lent où naissent les pipeaux,
Ce vol de cygnes, non! De naïades se sauve
Ou plonge[12]
(MALLARMÉ, 1998, p. 154).
Em meio a essa brancura que poderia ser o vulto das ninfas, aparece um vol de cygnes. O cisne representa o poeta, recorrente em Baudelaire e que foi utilizado por Mallarmé em Le Vierge, le Vivace… A figura do poeta se apresenta no mesmo momento em que as ninfas aparecem. O fauno chega até a se enganar, chama-as de cisnes e depois de naïades. As ninfas seriam ‘reais’ ou criações do poeta?
No momento em que o poeta e o fauno não se distinguem, mais um jogo se estabelece (sous l’azur on joue) entre a ingenuidade de acreditar num sonho belo, deixando-se seduzir, e a consciência do ‘nada’, de que o sonho é ilusório. Assim, é preciso se libertar das doces ilusões, “Et de faire […] Évanouir du songe”,[13] para, em seguida, voltar ao embate: “ou notre ébat au jour consumé soit pareil”[14] (MALLARMÉ, 1998, p. 154).
Passamos do confronto entre sonho e realidade para o encontro do fauno com as ninfas. Esse encontro amoroso passa como o dia, sua natureza é efêmera, como o sonho. O fauno busca uma prova para mostrar que seu encontro aconteceu. Na primeira versão do poema temos: “car les preuves/ D’une femme, où faut-il, mon sein, que tu les trouves?”.[15] Já na última versão, a mordida, que seria a prova do encontro, aparece, mas de forma ambígua, sem que possamos afirmar se ela de fato existe: “Mon sein, vierge de preuve, atteste une morsure/ Mystérieuse, due à quelque auguste dent”[16] (MALLARMÉ, 1998, p. 154, tradução nossa).
Por que Mallarmé escolhe a experiência sexual? Nessa experiência se encontra presente, de maneira mais clara, o desejo. O fauno é tratado de maneira satírica e com humor, porque o desejo sexual é visto como pouco ‘confiável’. A sua aventura é colocada em dúvida, porque o seu desejo fazia com que ele imaginasse que algo acontecera. Como se, ao se deixar guiar pelo desejo sexual, ele fosse mais ‘ridículo’. Ele nos leva a perceber a efemeridade da experiência sensível, seu caráter ilusório quando comparado à razão.
Assim há o sonho, o caráter efêmero da relação sexual, a razão que busca provas de um encontro que não deixa marcas, as ilusões e a beleza dos sentidos. O poema centra-se na relação sonho/realidade, que se transpõe para outros planos, como sentidos/razão. A efemeridade e a recusa do sensível eram temas que apareciam desde “Hérodiade”. No Fauno essa crítica ao sensível ganha mais uma dimensão.
No poema, o fauno e o poeta se confundem. A partir de um determinado ponto não há mais nenhum ‘tu’ a quem o poeta se dirige, somente o ‘eu’. O poeta se identifica com o fauno. Mas o fauno é vítima de muitas ilusões e, por outro lado, ele também é uma ilusão, uma criatura ‘mitológica’. Como as ninfas, ele é colocado de imediato como ‘ficção’. Ao se identificar com o fauno, o poeta também deve ser vítima de alguma ilusão. O poeta é vítima dos seus sentidos, da palavra, do caráter ilusório da arte?
A arte se baseia na efemeridade do sensível, ela se apoia nas formas para dizer. Além disso, a ficção busca, por meio da aparência, de uma história, algum conteúdo de verdade, ela aspira à verdade por meio da ilusão. Tal como nossos sentidos, a arte nos ludibria ao nos apresentar uma ilusão, uma ficção. Diante dessa firmação cabe a pergunta: por que a arte precisa de ilusões? Por que a arte faz negar aquilo que lhe é próprio? As ilusões podem conter algo de verdadeiro?
O poeta precisa do sensível, o nada é uma parte do trajeto, ou, mais que isso, ele está presente em todo o seu fazer. O fazer poético é justamente esta luta entre pensamento e acaso, entre a razão que determina, organiza e cria e aquilo que insiste em escapar de qualquer determinação. Aquilo que persiste intocável e irrevogável. Assim, o sensível não é apenas ilusório, ele é evanescente como as ninfas, ele desaparece, e depois que essas ilusões acabam, ou para que elas desapareçam, para que a arte não seja apenas sedutora e bela, é preciso refletir. O verdadeiro que a arte revela só aparece depois que a ilusão desaparece. Depois que a música acaba é que ela acontece. Ou seja, trata-se de uma relação entre aparência e essência, que na arte não deixa de ser dicotomia forma/conteúdo. Para que a essência se mostre, a aparência deve ser desvelada. Assim a sua falsidade deve ser denunciada e, quando esta desaparece, surge o ‘conteúdo’ do poema. Ao mesmo tempo, porém, a arte diz pela forma, que guarda esse conteúdo. É essa questão que o fauno pretende apresentar ao questionar os sentidos e, por extensão, a própria ficção, que também se baseia em algo de sensível, a forma.
Esse paradoxo levou Mallarmé (2003, p. 167) a se formular a seguinte questão: “quelque chose comme les lettres existe-t-il?”. No mesmo texto, ele responde “Oui, que la Littérature existe et, si l’on veut, seule, à l’exclusion de tout. Accomplissement, du moins, à qui ne va nom mieux donné”.[17]
A noção de que a literatura existe sozinha, à exceção de tudo, não nos é estranha, ela foi apresentada pela pureza em Hérodiade. Mas os questionamentos apresentados em “L’après-midi d’un Faune” se relacionavam à forma, esta deveria corresponder ao seu conteúdo; assim, se o conteúdo é apresentado como ‘duvidoso’, a arte é também colocada em questão.
Depois de dizer que a literatura existe, ainda em La Musique et les Lettres, Mallarmé explica como ela deve ser. O poeta trata do processo de criação, do processo de desconstrução da ficção e do entendimento, da verdadeira ‘utilidade’ da poesia e de sua razão de ser: “le démontage impie de la fiction et conséquemment du mécanisme littéraire, pour étaler la pièce principale ou rien”[18] (MALLARMÉ, 2003, p. 67).
Em Hérodiade, Mallarmé isolou um aspecto da personagem, seu aspecto macabro, muito caro na época, e o substituiu por outro, a virgindade. Há uma passagem da beleza mortal, porque provoca a morte, para a virgindade, que é morte enquanto recusa do mundo, pureza da arte.
Já no caso do Fauno, o tratamento com o mito é outro. Nele o sonho do personagem é evidente. O poema é sarcástico porque trata de uma figura mitológica que sonha com ninfas; ao contrário de Wagner, que quer fazer o público acreditar no que ele apresenta, Mallarmé quer fazer o público rir desta hipótese. O Fauno e sua tolice são como Wagner, que quer convencer seu público da realidade de um mito, ou como o público que acredita nele.
Para Mallarmé, o mito corresponde a algo natural, como o ciclo do sol, mas essa relação tão direta com a natureza está para sempre perdida. Assim, o mito não passa de uma convenção, uma ficção. Ao escolher um mito e transformá-lo, Mallarmé procura evidenciar essa relação abstrata, esse vazio, que é para ele o nada, a essência mesma da ficção. Mallarmé escolhe figuras míticas com o propósito de mostrar que elas são produtos da ficção, que elas não correspondem à realidade. Ele quer mostrar como a ficção é responsável pela criação de mitos, de histórias, todas elas ‘sonhadas’.
Fauno busca a verdade e encontra névoa, bruma, nada. Mallarmé expõe, assim, o próprio processo de construção da ficção, um discurso sobre o nada, sobre a realidade de mitos, de ninfas, de faunos. E, ao mesmo tempo, um discurso que é nada, ilusão. Ora, a ficção não é um discurso sobre o nada porque trata de figuras mitológicas, mas porque a realidade, o mundo da carne, é efêmero, desprezível como em Hérodiade, estéril. E a ficção é igualmente efêmera, o poema se acaba, se dissolve no momento de sua leitura. O nada é tanto a nulidade do mundo sensível quanto ficção enquanto discurso do mundo, enquanto forma de arte, enquanto discurso.
No Fauno, portanto, a desmontagem do processo de ficção revelou a arte e o mundo sensível como sendo o nada, o efêmero, o desvanescente, que aparece para desaparecer. Operar essa desmontagem da ficção evidencia o nada, a ausência de base e de relação com o mundo do qual a arte deveria tratar. Essa noção reforça e amplia a noção de pureza que vimos em “Hérodiade”. No entanto, o poema precisa de uma forma que encarne isso completamente, que seja a própria forma do desvanecimento, o instrumento para alcançar essa forma, a linguagem. Antes de compreendermos esse instrumento, é preciso compreender qual o método que Mallarmé utilizou não apenas ao operar a linguagem, mas na construção mesma de seus poemas.
A Linguagem
Il a été démontré par la lettre – l’équivalent de la Fiction, et l’inanité de l’adaptation à l’Absolu de la Fiction d’un objet qui en ferait une Convention absolue.[19] (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A palavra demonstra a inutilidade da ficção, o esforço inútil que seria tentar reproduzir, representar um objeto tal como ele é. Mallarmé em “Crise de Vers” aponta muitas características da linguagem. Entre elas se encontra, como exemplo, o fato de que as línguas são muitas e imperfeitas, um único objeto corresponde a uma palavra diferente em cada língua, o que evidenciaria que estas não tocam matériellement la vérité, mas, sim, commercialement. Mas a teoria da linguagem de Mallarmé vai muito além desta constatação.
Em outro momento, o poeta afirma o seguinte:
Toute méthode est une fiction, et bonne pour la démonstration.
Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction: il suivra la méthode du Langage. (la déterminer) Le langage se réfléchissant.[20]
(MALLARMÉ, 2003, p. 507).
Para Mallarmé, a ficção é um método, ou seja, uma demonstração. A ficção demostra, expõe pela linguagem, que é o seu instrumento. Ela segue o método da linguagem: Le langage se réfléchissant. Isso quer dizer que a linguagem reflete algo, como um espelho, ela expõe a ficção. E ainda, ela revela algo a ser pensado, sobre o qual se deve refletir. No trecho anterior, o poeta não afirma a nulidade da ficção e sua comprovação, justamente por meio da linguagem. A linguagem é o melhor método para expor a ‘nulidade’ da ficção. O próprio poeta nos aponta os motivos desta ideia, resta-nos, portanto, saber como isso ocorre, ou seja, quais as características que Mallarmé atribui à linguagem e que possibilitam esse processo.
Mallarmé trata, em Notes sur le Langage (um texto que reúne trechos de um projeto mallarmeano para uma ‘ciência’ da linguagem, ou seja, um projeto de desenvolver uma teoria ‘científica’ da linguagem), de uma ‘tese latina’ da linguagem. A ‘divindade’ da linguagem, ou o que o poeta chamou de Verbo divino, a palavra que, quando proferida por Deus, criou o mundo seria, portanto, a concepção de linguagem a partir de como ela aparece na Bíblia. A teoria de Mallarmé sobre a linguagem conserva algo desta ordem, uma relação entre a palavra e a criação se mantém, porém de um modo particular. Vejamos de que maneira o poeta desenvolveu essa teoria.
Mallarmé começa estabelecendo uma distinção entre linguagem e Verbo. O Verbo exprime o Belo, a linguagem ‘mostra’, tornando-se o próprio Belo. Ela não é, portanto, uma maneira de expressão, ela não cria o mundo simplesmente, mas o que ela cria ela o faz em si mesma e a partir de si mesma, ou seja, trata-se de um fazer e um criar no qual ela mesma está implicada.
Porém, Mallarmé acrescenta outro elemento nesta ideia de criação pela linguagem. De acordo com o poeta, o Verbo deve criar de maneira negativa:
Le Verbe est un principe qui se développe à travers la négation de tout principe, le hazard, comme Idée, et se retrouve, formant (comme la Pensée suscitée par l’Anachronisme) lui, la Parole, à l’aide du Temps qui permet à ses éléments épars de se retrouver et de se raccorder suivant ses lois suscitées par ces divisions[21] (MALLARMÉ, 2003, p. 508).
O Verbo é um princípio de criação que cria por ser negação, negação de todo e qualquer princípio, como o acaso, puro negativo. Assim se constitui a ‘parole’ (fala), que não é outra coisa que uma dissolução no tempo. A linguagem é como a fala e deve ser considerada, enquanto fala ou música, como algo que se dissolve no tempo. É assim que ela se constitui como negativa: “Le Verbe, à travers l’Idée et le Temps qui sont la négation identique à l’essence du Devenir, devient le Langage”[22] (MALLARMÉ, 2003, p. 507). A linguagem é a ideia mesma de um método de negação que se desenvolve no decorrer do tempo.
Le langage est le développement du Verbe, son idée, dans l’Être, le temps, devenu son mode: cela à travers les phases de l’Idée et du Temps en Être, c. à. d. selon la Vie et l’Esprit[23] (MALLARMÉ, 2003, p. 507).
A ideia do Verbo é determinada pelo tempo e pela Ideia, ou seja, ela é vida e espírito, a expressão mesma do ser.
O poeta resumiu o processo da seguinte maneira: A palavra e a escritura se juntam para formar o verbo, a fala (parole) cria analogias de coisas, por meio de analogias de sons, a escritura, marcando os gestos da Ideia, se manifesta pela fala e oferece sua ‘reflexão’. Até aqui, nada parece distinguir-se de uma concepção de poesia comumente aceita, a não ser pelo acréscimo de certa expressão ‘gestual’ da escritura, bem como pelo aspecto muito valorizado por Mallarmé que diz respeito à Ideia, à reflexão que o poema deve conter e provocar.
De acordo com o poeta, a linguagem nos permite concluir que “tout sont des actes momentanés situés entre ses objets, la matière et l’esprit, et peut hardiment élucider ce problème; maintenant qu’elle a la valeur de son moyen d’expression”[24] (MALLARMÉ, 2003, p. 508). Ou seja, a linguagem nos faz pensar, ela nos mostra e demonstra que tudo é evanescente, e ela é a melhor maneira de elucidar essa ideia, pois se constitui justamente como um desvanecimento.
Que o leitor não acredite que tratamos aqui de uma negação pura e simples do mundo e da capacidade da linguagem enquanto meio de se falar deste mundo, como uma espécie de recusa estoica do mundo. Mallarmé reconhecia na linguagem da conversação diária a sua capacidade de abstração, o que considerava um aspecto fundamental. Mas ele preferia ver na linguagem uma forma de presença, ele acreditava que ela deveria ser considerada, sobretudo, “en tant qu’elle nous apparaît dans sa manifestation”[25] (MALLARMÉ, 2003, p. 507), já que para ele a Noção se dá numa presença, enquanto presença: “Le moment de la Notion d’un objet est donc le moment de la réflexion de son présent pur en lui-même ou sa pureté presente”[26] (MALLARMÉ, 2003, p. 508).
A noção de um objeto, o que um objeto é, só pode ser deduzida a partir de sua presença, mas é preciso notar que essa presença inclui, para Mallarmé, uma reflexão, que é não apenas um pensamento, uma ideia deste objeto, mas seu reflexo num poema. Ao mesmo tempo em que um objeto não se pode escrever, a linguagem não pode escrever a não ser como negação por meio do tempo. Assim, a ideia de um objeto só pode se escrever como um desvanecimento, uma escritura negativa, um desaparecimento no tempo. Essa seria a verdadeira noção, a verdadeira ideia para Mallarmé.
Não se trata, portanto, de uma simples recusa do mundo como vimos em Hérodiade, mas da compreensão de que a natureza existe como um desaparecimento, como uma dissolução; esta dissolução é esprit: Ideia.
Un coup de dés
Num terceiro momento de seus planos sobre uma ciência da linguagem, Mallarmé sublinhou como tarefa para esta ‘ciência’: “L’esprit. Ce qu’est l’esprit par rapport à sa double expression de la matière et de l’humanité, et comment notre monde peut se rattacher à l’Absolu”,[27] problema que ele pretendia resolver como o da Linguagem, ou seja, “trouver l’idée du Langage et leur idée dans le Langage”[28] (MALLARMÉ, 2003, p. 67). Isso é o que ele chama de demonstração, que é uma ideia, que aparece também como Forma, a ideia que encontra sua forma exata, no caso, a linguagem. Mas a linguagem como exteriorização do espírito não é suficiente para fazer um poema, é preciso que o poema seja em sua forma essa mesma Ideia. Este é o caso de “Un coup de dés”.
Mallarmé procurava mostrar esse espírito que é tanto matéria sensível ou natureza quanto reflexão, pensamento, mas ele queria mesmo era a nossa ‘natureza’, por meio dessa modificação do tempo: “de la nature qui, mêlé avec la modification du temps, soit notre humanité, moins la portion spirituelle occupée à la réflexion”[29] (MALLARMÉ, 2003, p. 510). O poema não seria, portanto, puramente reflexão, mas também natureza, a nossa natureza, que, no tempo, não é outra coisa que um desvanescimento. Em “Un coup de dés”, portanto, Mallarmé entendia como natureza não a natureza pensada, mas a natureza mesma, como acaso, aquilo que escapa de qualquer racionalização. O poema é essa natureza em seu ‘desaparecimento vibratório’, a dissolução provocada na fala, pois o poema se constitui – como nos informa o poeta em seu prefácio – como uma partitura, música. Ele foi pensado como dissolução sem fim.
“Un coup de dés” é uma narrativa, uma narrativa narra fatos; no caso de Mallarmé, porém, trata-se da narração de uma hesitação, como Hamlet, a questão seria aqui: lançar ou não lançar os dados? “Le maître”[30] hesita porque, se os dados forem lançados, o número viria pelo acaso, ou seja, o ato de lançar o dado é sempre uma confirmação do acaso: “si c’était un nombre, ce serait […] le hasard”[31] (MALLARMÉ, 2003, p. 432).
Os tempos verbais escolhidos pelo poeta são o condicional e o subjuntivo, não o passado, que é tempo da narrativa, mas o tempo do que poderia ter acontecido ou do que poderia acontecer, o tempo da hipótese e das possibilidades. Por se tratar de uma hesitação, o que deveria acontecer numa narrativa não acontece não se trata aqui de acontecimento, de cálculo, de especulação, de pensamento. O ‘personagem’, Le maître, figura do próprio poeta, reflete sobre o ato de escrever.
Blanchot afirmou o seguinte a respeito deste poema: “Le hasard est sinon vaincu en cela, du moins attiré dans la rigueur de la parole et élevé à la ferme figure d’une forme où il s’enferme”[32] (BLANCHOT, 1959, p. 146).
A afirmação de Blanchot nos leva a pensar que, ao dar ao acaso uma forma, o poeta estaria controlando e dominando-o, o acaso seria, portanto, incorporado à obra, ele poderia ser previsto e regulado. Mas a afirmação da frase título é justamente acerca da impossibilidade de vencer o acaso, ou seja, não é possível à razão reflexivamente interiorizar o acaso, não é possível que a razão consiga eliminar aquilo que é a sua negação, o seu outro, a contingência. Vimos que para Mallarmé o acaso é como a ideia, um princípio negativo, ou a negação de todos os princípios. Como ele poderia, então, se encerrar numa forma? Ao dar uma forma ao acaso, Mallarmé buscava uma forma que correspondesse a sua ideia de acaso, uma forma que fosse ela também a negação da própria forma:
[…] mais parce que qu’au lieu de raconteur, on montre. C’est là, on le sait, l’innovation dont voudrait s’enorgueillir Mallarmé. Pour la première fois, l’espace intérieur de la pensée et du langage est représenté d’une manière sensible[33] (BLANCHOT, 1959, p. 186).
Mallarmé escolheu expor o espaço da linguagem e do pensamento por meio da ideia de constelação. Ao falar de uma dançarina conhecida em sua época, Mallarmé diz o seguinte:
[…] selon quelques coups d’épingle stellaires en une fond bleue: car le corps de ballet, total ne figurera autour de l’étoile (la peut-on mieux nommer!) la danse idéale des constellations[34] (MALLARMÉ, 2003, p. 544).
A constelação surge como uma tentativa de formalizar o inefável. Ela é a forma que Mallarmé encontrou para expor o que, como o acaso, escapa a qualquer determinação.
Como as bailarinas que dançam ao redor de outras, da estrela, as palavras no poema giram, o pensamento lança os dados e vagueia ao sabor do acaso, ao redor dele, tentando aboli-lo, vencê-lo, ou simplesmente acompanhá-lo. O poema enquanto espiral repete o conflito acaso/pensamento, e enquanto repetição de uma dissolução, na medida em que se reencontra com o nada de onde surgiu. O pensamento anula a forma, o som anula o sentido no tempo. O espaço anula o sentido e o poema recomeça. A encenação em “Un coup de dés”, mais do que desistência, por parte do poeta, de vencer o acaso, é a incessante repetição do conflito com a contingência. Não se trata do fracasso da arte diante da contingência, ou do fracasso da razão diante do acaso, ou do fracasso da arte, mas da ideia de que tudo o que a arte pode fazer é o que encontramos em Igitur: “il administrera ce néant – reste de l’idée”[35] (MALLARMÉ, 2003, p. 443).
Considerações finais
Assim, a questão da reconciliação entre a ideia e a matéria que marca o começo da carreira poética mallarmeana, com o poema “Hérodiade” parece encontrar sua resolução apenas nos últimos anos de vida do poema, na realização de sua obra-prima “Un coup de dés”. Neste poema ideia e linguagem se encontram numa forma suficientemente maleável, como o verso livre, onde o acaso pode se fazer presente sem, por isso, arruinar toda a estrutura do poema. O poema é, portanto, a realização da ideia mallarmeana de linguagem, uma dissolução de si no tempo e no espaço, como música, e a inscrição deste devir, nas letras. O poema mallarmeano é, assim como o Livro, uma cosmologia, ele se rende ao acaso, ao mesmo tempo em que almeja, intelectualmente, formalizá-lo.
Referências
BENICHOU, P. Selon Mallarmé. Paris: Gallimard, 1995.
BLANCHOT, M. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959.
MALLARMÉ, S. Oeuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1998.
______. Oeuvres complètes II. Paris: Gallimard, 2003.
Agostinho, Larissa Drigo. “A poesia de S. Mallarmé”. Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá, v. 33, n. 1, pp. 31-8, 2011.
[1] “Pretendo fazer de minha personagem um ser puramente sonhado e absolutamente independente da história.” Todas as traduções foram feitas pela autora.
[2] “Mas você não me tocaria? Eu gostaria muito de ser aquela a quem o destino reservou os seus segredos.”
[3] “E para quem, devorada de angústia guardaria seu esplendor ignorado? E o mistério vão de seu ser?”
[4] “Para mim.”
[5] “Eu amo o horror de ser virgem e quero; Viver entre o calafrio que meus cabelos provocam; Para a noite, retirada em meu leito, réptil; Inviolada, sentir em minha carne inútil; O frio cintilar de sua pálida clareza.”
[6] “E eu detesto o belo ideal.”
[7] “Espero alguma coisa desconhecida; Lance os soluços supremos e mortíferos; De uma infância sentindo entre os sonhos; Se separar enfim as finas pedras preciosas.”
[8] “E tudo, em torno de mim, vive na idolatria; De um espelho que reflete na sua calma dormindo; Hérodiade ao claro olhar de diamante.”
[9] “A futilidade da adaptação ao absoluto da ficção.”
[10] “Essas ninfas, quero perpetuá-las; Tão claro, Este encarnar ligeiro, que volteia no ar adormecido por sonos espessos.”
[11] “Reflitamos; Ou se as mulheres de que glosas; Figuram um desejo de teus sentidos fabulosos; Fauno! A ilusão escapa dos olhos azuis; E frios, como uma fonte em lágrimas, da mais casta.”
[12] “Ondeia uma brancura animal ao repouso; E no prelúdio lento onde nascem as flautas; Este voo de cisnes, não! De ninfas se evade; Ou mergulha.”
[13] “Para fazer, evanescer o sonho.”
[14] “Ou nosso embate ao dia consumido se pareça.”
[15] “Porque as provas/ De uma mulher, onde devo, meu seio, procurá-las?”
[16] “Meu seio, virgem de provas, atesta uma mordida/ Misteriosa, provocada por um dente augusto.”
[17] “Alguma coisa como as letras existe? Sim, que a literatura existe e, se quisermos, só, com exclusão de tudo. Realização, ao menos, a quem não cabe nome melhor atribuído.”
[18] “A desmontagem profana da ficção e consequentemente do mecanismo literário, para exibir a peça principal ou nada.”
[19] “Foi demonstrado pela letra – o equivalente da ficção, e a futilidade da adaptação ao absoluto da ficção de um objeto que faria uma Convenção absoluta.”
[20] “Todo método é uma ficção e bom para a demonstração. A linguagem lhe parece o instrumento da ficção: ele seguirá o método da linguagem. (determinar) A linguagem se refletindo.”
[21] “O Verbo é um princípio que se desenvolve através da negação de todo princípio, o acaso, como Ideia, e se encontra, formando (como o Pensamento suscitado por Anacronismo) ele, a fala, com a ajuda do Tempo, que permite a seus elementos esparsos de se encontrarem e ajustarem segundo as leis suscitadas pelas suas divisões.”
[22] “O Verbo, através da Ideia e do Tempo que são a negação idêntica à essência do Devir, se torna linguagem.”
[23] “A linguagem é o desenvolvimento do Verbo, sua ideia, no Ser, o tempo, torna-se seu modo: isto através das fases da Ideia e do Tempo no Ser, ou seja, segundo a Vida e o Espírito.”
[24] “Tudo são atos momentâneos situados entre os objetos, a matéria e o espírito, e pode destemidamente elucidar este problema; agora que ela tem o valor de seu meio de expressão.”
[25] “Enquanto ela aparece em sua manifestação.”
[26] “O momento da Noção de um objeto é, portanto o momento da reflexão de seu presente puro nele mesmo ou em sua pureza presente.”
[27] “O espírito. O que é o espírito em relação a sua dupla expressão, a matéria e a humanidade, e como nosso mundo pode se vincular ao Absoluto.”
[28] “Encontrar a ideia da linguagem e a ideia deles na linguagem.”
[29] “Da natureza que, misturada com a modificação do tempo, seja nossa humanidade, menos a porção espiritual ocupada com a reflexão.”
[30] O mestre.
[31] “Se houvesse um número, seria o acaso.”
[32] “O acaso é, senão vencido, ao menos atirado no rigor da fala e elevado a sólida figura de uma forma onde ele se encerra.”
[33] “Mas porque, ao invés de contar, mostra. Esta é, sabe-se, a inovação da qual Mallarmé se orgulhava. Pela primeira vez, o espaço interior do pensamento e da linguagem é representado de maneira sensível.”
[34] “Segundo algumas alfinetadas estelares em um fundo azul: porque o corpo de balé, total figurará em torno da estrela (podemos melhor nomeá-la!) a dança ideal de constelações.”
[35] “Ele administrara este nada – resto da ideia.”