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Critérios para a poesia

“Mas verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal exterior senão a da volta ao ponto de partida à esquerda da folha do papel: ‘verso’ derivado de ‘vertere’, voltar. À primeira vista parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar o seu ritmo sem auxílio de fora. É como o sujeito que solto no recesso da floresta deva achar o seu caminho e sem bússola, sem vozes que de longe o orientem, sem os grãozinhos de feijão da história de João e Maria.

Sem dúvida não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo tão somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se fosse, qualquer pessoa poderia pôr em verso até o último relatório do Ministro da Fazenda. Essa enganosa facilidade é causa da superpopulação de poetas que infestam agora as nossas letras. O modernismo teve isso de catastrófico: trazendo para nossa língua o verso livre, deu a todo mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema. Resultado: hoje qualquer subescriturário de autarquia em crise de dor-de-cotovelo, qualquer brotinho desilududo do namorado, qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar se julgam habilitados a concorrer com Joaquim Cardoso ou Cecília Meireles.

Por isso era sempre com delícia que eu lia as críticas de Elói Pontes no Globo e é sempre com prazer que leio as de Berilo Neves no Jornal do Comércio, críticos sem contemplação para com a poesia que não se exprime em versos medidos e rimados. O que me entristece é ver que eles nunca tenham tido influência bastante para pôr um paradeiro nesse ‘babaréu de medíocres’, como costumava dizer o primeiro no seu curioso estilo.”

 

(BANDEIRA, Manuel. “Poesia e verso”. In: “Seleta em prosa e verso”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p. 38)