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Macau: a poesia em uma folha de lótus

Macau, uma cidade apenas de 24 quilômetros quadrados, é conhecida principalmente como a Monte Carlo do Oriente. Uma cidade quase puramente virada para divertir os instintos humanos. No entanto, curiosamente, descobre-se que, por entre as folhas e flores de lótus, símbolo desta terra, está sentada uma noiva de poesia a cantar, em voz baixa mas insistente. Embora enraizado na lama, persiste na sua pureza. Eis um verso de louvor ao lótus, sendo também uma boa descrição da situação em que a poesia vive, ou seja, sobrevive neste lugar.

Ao longo dos anos, Macau, como um encontro de diferentes culturas, acolheu muitos poetas, chineses e portugueses, que deixaram aqui os seus versos de viagem, de amor, de tristeza, de solidão, de vazio… Conforme lenda narrativa, Camões teria passado por este canto, onde viveu, namorou e escreveu alguns estrofes de Lusíadas. Mas foi outro grande poeta português, Camilo Pessanha, que viveu de fato, com a sua alma lânguida e inerme, em Macau, tendo encantado a poesia portuguesa e europeia com Clepsidra. Quanto aos poetas chineses, um dos nomes mais conhecidos é Wu Li, que tomou Macau como o porto da sua tranquilidade interior.

Entretanto, o fato de a poesia ser mais representativa na literatura de Macau só aconteceu a partir nos fins da década de 1970 e entrou no período de auge nas décadas de 1980 e 1990. Para esta prosperidade, contribuíram muitos portugueses de cultura que vieram a trabalho, bem como chineses, dos quais alguns eram escritores ou poetas. Nesse ambiente, cada vez mais animado, muitos estudantes universitários ficaram fascinados pela poesia, dando início à sua criação literária.

Macau esteve sob administração portuguesa durante mais de 400 anos, todavia nunca chegou a ser conhecida e compreendida pelos portugueses. Por isso, aos olhos de seus poetas, Macau é uma cidade exótica e misteriosa, o que lhes serviu de principal fonte de inspiração. Encantados pela força mágica, que os levou para um novo tempo, um novo espaço e uma nova experiência, eles preferiam fazer valer, no seu discurso poético, referências à filosofia chinesa, à paisagem do Oriente, à mitologia de uma civilização remota e antiga, aos usos e hábitos estranhos, bem como à presença lusitana nesta terra. Alguns poetas investiram no “Outro”, procurando compreendê-lo, sentindo-o, desvendando-o e descrevendo-o. Alguns autores, porém, tomaram Macau como plataforma para interiorizar a sua vida individual e dos acontecimentos, interrogando e refletindo sobre a relação de um mundo com outro mundo. A presença portuguesa também é tema constante, que levou seus escritores a cantar a presença neste Oriente ou a lamentar a fragilidade dela, que não resistiu ao destino da história. No entanto, Macau foi sempre um Outro para a maioria dos portugueses, delimitando entre eu e outro uma fronteira impossível de ultrapassar. Por isso, depois da transferência de Macau para a China em 1999, muitos portugueses voltaram para Portugal, o que tornou a poesia cantada na língua de Camões uma voz quase inaudível.

Apesar de os chineses e os portugueses terem convivido durante tanto tempo, nunca chegaram a um intercâmbio essencial e significativo. Ambos não se comunicaram bem, como se um pato falasse como uma galinha – diz um provérbio cantonense. O que aconteceu também com os poetas. Basicamente, os poetas chineses formam um círculo próprio, quase sem contato com poetas ibéricos. Enraizados nesta terra que esteve sob a administração de Portugal, alguns poetas evidenciaram uma consciência nacionalista, interrogando sobre a história específica de Macau, ou expressaram repúdio à presença portuguesa. Outros, mais preocupados com a vivência em uma realidade cada vez mais invadida pelo individualismo e o materialismo, manifestaram o sentimento da perda irremediável. Como uma fonte eterna da poesia, a lírica amorosa constitui um tema importante para os jovens poetas que, porém, muitas vezes não o cantam em voz pastoril, mais sim o bebem em copo de tristeza. Eles sabem: no nosso tempo, o amor não passa de uma mariposa em voo para a chama.

Tal como em qualquer parte do mundo, os poetas desta cidade também estão a sofrer com a solidão. Os poetas escrevem para os poetas. Em uma sociedade comandada pelo consumo rápido, as pessoas têm cada vez menos paciência para com ela. Mesmo assim, a poesia continua a rolar nas folhas de lótus, como orvalhos de madrugada. Ou como no poema de Ti Ya:

 

Variante da morte

Disparou
Sem bala alguma
Foi um tiro
apenas

um tiro à frente
um homem ondulou o corpo
O que caiu
Foi sombra
apenas sombra

24 de julho de 2001