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Sobre os prefácios

     Verifiquei que se trata de assunto totalmente inédito. Verifiquei que não existe no mundo livro nenhum sobre esse tema. Não há fontes nem referências. Os prefácios nem sequer têm verbete nas enciclopédias de termos literários. Como vou escrever sobre isso? As enciclopédias comuns, Britannica, Larousse, Treccani, Brockhaus, também estão caladas a respeito.

     Só a espanhola, a Espasa-Calpe, tem várias páginas sobre a Praefatio, que faz parte da missa católica; e continua, depois, dizendo que prefácios também se chamam as páginas introdutórias que autores ilustres escrevem para recomendar ao público os livros de confrades ainda não famosos, e que isso se faz, muitas vezes, por mera gentileza ou por camaradagem, o que seria um deplorável caso de corrupção literária.
São expressões muito fortes. E injustas. Prefácio feito por complacência também é aquele que Théophile Gautier, então poeta famoso, escreveu para introduzir Les Fleurs du Mal, do poeta então ainda não famoso Charles Baudelaire; prefácio enorme, elogioso, mas incompreensivo, responsável por muitos equívocos posteriores em torno do livro e do seu autor, mas que teve o mérito de garantir a sobrevivência do volume até o momento em que Baudelaire foi reconhecido como um dos maiores poetas de todos os tempos, numa época em que seu prefaciador ex-famoso já estava condenado a integrar, com uma outra peça, as antologias da defunta poesia parnasiana. O verdadeiro prefácio das Fleurs du Mal é aquele que o próprio Baudelaire escreveu, em versos: “Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère”.

     Os prefácios, como se vê, também têm seus destinos. Mas ainda não têm seu artigo. Será possível que ninguém jamais haja dito nada de aproveitável sobre esse duvidoso gênero literário? Abro, desesperado, o Dicionário de Citações, de Mencken, e – heureka! – ali está. Pelo menos em língua inglesa manifestaram opiniões sobre o prefácio o bispo Edward Copleston, que tinha por volta de 1800 fama de estilista finamente irônico, e Oliver Wendell Holmes, não o justamente célebre juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas seu pai, médico, erudito e poeta espirituoso que, no século XIX, passava por um dos grandes wits americanos. Os conselhos tidos irônicos dos bispo Copleston, com o autor jovem de uma obra científica deveria prefaciar seu próprio livro, não têm nada de irônico: o autor deveria começar resumindo os trabalhos dos eruditos anteriores sobre o mesmo assunto; explicar e justificar suas teses divergentes; agradecer a quem o ajudou; em suma: é o esboço de um prefácio comum, como foi mil vezes escrito, bastante razoável e inteiramente óbvio.

     A humildade que o bispo Copleston recomenda ao jovem autor também pode ter outros motivos. Cécile Gazier, autora de Ces Messieurs de Port-Royal escreveu para a edição póstuma das Pensées de Pascal um prefácio que abranda as supostas audácias do autor, como querendo pedir desculpas. O prefácio do Abbé Prévost, para o romance de Manon Lescaut e o de Laclos para as Liaisons Dangereuses têm evidentemente o fim de alegar motivos moralizantes para que os leitores moralistas e o censor não se assustem com a paixão criminosa que Manon inspira ao Chevalier Des Grieux, e com as intrigas diabólico-eróticas de madame de Merteuil e do Visconte de Valmont. E todos os elogios que John Heming e Henry Condell, atores do Globe Theatre de Londres, dedicaram ao seu falecido confrade, ao editar-lhe, em 1623, as obras completas, não escondem a dúvida dos prefaciadores quanto à capacidade de um mero play-wright de sobreviver, fosse mesmo um Shakespeare. Eis as lembranças facilmente evocáveis que a chamada ironia do bispo Copleston poderia inspirar a qualquer um dos seus leitores. Difícil é, porém, o que Oliver Wendell Holmes dizia em 1867 numa conferência na Universidade de Harvard: “Três grandes prefácios desafiam a admiração dos eruditos: o de Calvino para suas Institutiones Christianae, o de De Thou para sua História, e o de Casaubonus para sua edição de Políbio.” E fiquei boquiaberto, entregue a muitas horas de dor de cabeça.

Casaubonus não é evidentemente o personagem homônimo de Middlemarch (o grande romance de George Eliot precisa ser urgentemente relido, é uma obra-prima para todos os tempos). O Casaubonus de Holmes é o eruditíssimo filólogo e teólogo genebrino que viveu na Inglaterra no começo do século XVII e foi sepultado na Westminster Abbey. Deve ter sido um grande homem e sua edição de Políbio não existe nas bibliotecas deste continente e tenho que desistir do prazer de juntar minha admiração à dos últimos três séculos. 26/2903

O prefácio (1604) da Historia sui temporis, de Jacques-Auguste de Thou, é acessível.
Não é nada de extraordinário. O velho Holmes, que o admirava tanto, não parece ter conhecido outra introdução de uma obra histórica, a da Storia d’Italia, de Guicciardini, que De Sanctis chamou a “obra mais formidável saída de mente italiana”. É exagero. Mas admirável é esse resumo breve e claríssimo da situação política da Itália em 1494, modelo insuperável de esclarecimento de um problema confuso e introdução até hoje insuperada para o estudo da grande política europeia.

     Enfim, as Institutiones Christianae de Calvino, o livro fundamental do protestantismo calvinista, têm como prefácio uma dedicatória ao rei François I da França, monarca catolicíssimo e intolerante, carta respeitosa mas pungente. É o primeiro exemplo de prefácio-desafio, o primeiro mas não maior. Mais pungente é o prefácio de Molière para Tartuffe, em que compara sua comédia tão censurada pelos hipócritas com outra peça, muito mais irreligiosa, mas não censurada por ninguém, e conclui: “Eles admitem que se representem nos teatros piadas contra o Céu, mas não admitem que eles próprios sejam representados no palco”. Desde então temos tido os prefácios das comédias de Shaw, desafios tão brilhantes que sobreviverãoprovavelmente às próprias comédias.

     O mais famoso prefácio-desafio, é, porém, o do Dr. Samuel Johnson para seu Dicionário de 1755. Todo mundo esperava dedicatória dessa obra a Lorde Chesterfield, o grande mecenas, do qual ninguém sabia que o erudito lexicógrafo tinha-o tratado de lacaio . Em vez da dedicatória, escreveu Johnson um prefácio em que descreveu, de maneira emocionante, sua pobreza, suas atribulações, e declarou não dever nada ao Lorde e aos grandes, nem sequer uma dedicatória. Esse prefácio é um documento histórico. É de 1755. Significa o fim da época em que os literatos viviam da ajuda dos grandes senhores. É o começo da era burguesa: em vez dos grandes senhores, o grande público. É quase contemporâneo do Discours Préliminaire de L’Encyclopédie (1751), de D’Alembert: em sereno estilo acadêmico, uma declaração de guerra ao mundo antigo. Existem prefácios que rompem com o passado e anunciam o futuro. O mais famoso exemplo é o prefácio de Cromwell de Hugo, o manifesto do Romantismo: começa com ele um novo capítulo da literatura francesa.

     Um documento desses tem a pretensão de ser julgado, também, como peça de crítica literária. Com efeito: ninguém lê hoje o prefácio de Cromwell, do qual só trechos figuram nas antologias para uso didático; mas a releitura poderia surpreender, pois certos conceitos formulados em 1830 por Hugo reencontram-se nos manifestos do Surrealismo. O prefácio-crítica é, aliás, uma tradição na literatura francesa. Os prefácios de Corneille e de Racine às suas tragédias prestam contas sobre as fontes usadas e sobre certos desvios da verdade histórica, impostos pelas regras da dramaturgia (ainda Henry James aproveitará reedições dos seus romances para, em Critical Prefaces, expor sua teoria da técnica novelística). Voltaire, porém, escreve prefácios das suas tragédias para analisar e criticar as peças de outros dramaturgos, de Maffei e sobretudo de Shakespeare, que recebeu desse modo o bilhete de ingresso para a literatura francesa. Num outro caso, muito mais recente, o prefácio também foi escrito para arranjar ao livro prefaciado o ingresso, desta vez, nas livrarias. Quem diz crítico diz juiz e, realmente, o prefácio do Ulysses de Joyce foi escrito por Mr Judge John M. Woolsey, do U.S. District Court, Southern District of New York, cuja sentença, datada de 6 de dezembro de 1933, figura como prefácio das primeiras edições públicas da obra para livrá-la da tacha de obscenidade e garanti-la contra a apreensão pela polícia. Enfim, um prefácio é capaz de tornar-se mais comprido que o livro prefaciado e conquistar autonomia como volume: assim Saint-Genet, Comédien et Martyr, de Sartre, que é o primeiro e mais grosso volume das Obras Completas de Jean Genet.

     Nesta altura estou percebendo que o prefácio já alcançou foros de gênero literário independente. Não importa se aparece no princípio ou no fim do volume que acompanha. Os prefácios de Max Brod às edições póstumas dos romances de Kafka – e, diga-se, o que se queira dizer, ainda são indispensáveis – são epílogos. Epílogo, volume X da Obra, é o prefácio do Study of History, de Toynbee, em que o autor, conforme o velho costume, agradece aos que o inspiraram (esquecendo, nesse volume, o nome de Spengler). A independência do gênero “prefácio” verifica-se sobretudo na literatura espanhola. A literatura espanhola possui o mais original de todos os prefácios, o do romance Niebla, de Unamuno, assinado por Victor Goti, um dos personagens do romance, com réplica assinada pelo próprio Unamuno. Também possui a literatura espanhola o mais surpreendente de todos os prefácios, pois a edição argentina de La Colmena, do falangista Camilo José Cela, foi elogiosamente prefaciada pelo republicano exilado Artur Barea. O prefácio espanhol tem longa história. No siglo de oro, no século XVII, quase todos os autores dirigem-se no prefácio al lector fazendo-lhe confissões, pedindo clemência e apoio. Às vezes são dedicatórias e então se pede, mais ou menos francamente, dinheiro a um grande senhor, amigo das letras. A mais irresistível dessas dedicatórias é a dirigida ao Conde de Lemos, o prefácio de Persiles y Segismunda, que Cervantes, já doente, redigiu quatro dias antes de morrer. Outros prefácios que já mencionamos encontram-se no fim do volume, este está no fim da vida, conscientemente, citando os versos do velho romance:

“Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte…”


Existem prefácios-justificativas, prefácios-pedidos de desculpa, prefácios-desafios, prefácios-manifestos, prefácios-críticas, prefácios-sentenças. O prefácio é prólogo e pode ser epílogo e, como no caso de Cervantes, epitáfio. Também é epílogo esta longa frase precedente, pois estou percebendo que o artigo sobre os prefácios está pronto.

 

Otto Maria Carpeaux, nascido Otto Karpfen (Viena, 9 de março de 1900Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1978), foi um jornalista, ensaísta, crítico literário, crítico de arte, crítico de música[1] e historiador literário[2] austríaco naturalizado brasileiro. Polímata, Carpeaux é famoso por sua Magnum Opus, A História da Literatura Ocidental, uma das obras mais importantes publicadas no Brasil no século XX.

 

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