Nelly Sachs (1891-1970) foi uma poeta e tradutora sueco-alemã de origem judaica. Através da intercessão da autora Selma Lagerlöf (Prêmio Nobel em 1909) junto à família real sueca, conseguiu fugir da Alemanha com sua mãe dias antes de ser enviada a um campo de concentração nazista. Décadas depois, Sachs descreve sua obra como “representação da tragédia do povo judeu”. Apesar de não suportar a ideia de voltar à Alemanha (o que só faz – a contragosto – por pouquíssimos dias em duas ocasiões específicas), manteve longa troca de cartas com diversos outros autores de língua alemã, entre eles Hilde Domin, Paul Celan e Ingeborg Bachmann. Recebeu em 1966 o Prêmio Nobel de Literatura.
Em vão
Nelly Sachs,
EM VÃO
queimam as epístolas
na noite das noites
na fogueira da fuga
porque o amor se liberta de seu arbusto de espinhos
flagelado em martírio
e começa já com línguas de fogo
a beijar seu céu invisível
quando a vigília lança sombras sobre o muro
e o vento
trêmulo de presságios
com o nó de forca do perseguidor soprado ao vento
reza:
Espera
até que as letras retornem para casa
do deserto chamejante
e sejam alimento de santas bocas
Espera
até que a geologia espiritual do amor
se rache
e que seu tempo arda
e que incandescendo de bem-aventurados sinais
torne a encontrar seu verbo de criação:
lá sobre o papel
que canta a morrer:
Era
no princípio
Era
Amado
Era –
*
“[Vergebens]” (Nelly Sachs, 1891-1970)
VERGEBENS
verbrennen die Briefe
in der Nacht der Nächte
auf dem Scheiterhaufen der Flucht
denn die Liebe windet sich aus ihrem Dornenstrauch
gestäupt im Martyrium
und beginnt schon mit Flammenzungen
ihren unsichtbaren Himmel zu küssen
wenn Nachtwache Finsternisse an die Wand wirft
und die Luft
zitternd vor Ahnungen
mit der Schlinge des anwehenden Verfolgers
betet:
Warte
bis die Buchstaben heimgekehrt sind
aus der lodernden Wüste
und gegessen von heiligen Mündern
Warte
bis die Geistergeologie der Liebe
aufgerissen
und ihre Zeitalter durchglüht
und leuchtend von seligen Fingerzeigen
wieder ihr Schöpfungswort fand:
da auf dem Papier
das sterbend singt:
Es war
am Anfang
Es war
Geliebter
Es war –
Tradução: Matheus Guménin Barreto
Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá) é poeta, tradutor e doutorando na USP e na Universidade de Leipzig. Publicou A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020).