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A Poesia Viva de Paulo Bruscky

A Poesia Viva de Paulo Bruscky foi publicada pela Cosac Naify em parceria com a Associação para o Patronato Contemporâneo em livro sem numeração de página, com a lombada exposta, apenas com uma cinta de papel amarelo trazendo o nome da obra e do autor. Na estante, um leigo não saberia de quem é, do que se trata. Neste caso, mais que em qualquer outro, não se deve julgar o livro pela capa, pois não há.

Com organização e apresentação de Antonio Sergio Bessa, pretende posicionar a base dessa poética na “grande tradição de literatura experimental no Brasil” a partir da segunda metade do século XX, quando o concretismo já havia concretizado seu sonho de protagonizar a discussão em torno da poesia no Brasil e reverberar na gringa e via seu ataque à sintaxe tradicional provocar diferentes reações e fomentar movimentos para além do neoconcretismo.

Na época em que a sintaxe já tinha ficado tradicional e dois caras fumando juntos podia ser muito arriscado, Bruscky fazia arte postal, happenings e outras pequenas subversões. A essa altura, os criadores da poesia concreta, consagrados, seguiam seus respectivos cronogramas de atualização literária, trabalhando na moldura do movimento. A sopa rala do neoconcretismo de Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e cia. já tinha esfriado no prato.

Antes, na primeira metade do século, se já na década de 1920 era possível ouvir o nome de Mallarmé entre os comentaristas das letras brasileiras, a partir de 1955 a discussão em torno do poeta francês passaria a lutar pelo papel de protagonista. Não apenas em função do advento da poesia concreta, mas também por causa das reações a ela.

Esse “nó mallarmaico”, citado por Augusto de Campos em depoimento sobre a produção de Mário Faustino publicado em Poesia, antipoesia, antropofagia (São Paulo: Cortez & Moraes, 1978), consistia basicamente na necessidade de responder e absorver a materialização da página como elemento semântico do texto que se deita sobre ela e a crise que isso implica sobre o verso, então transformado em “subdivisões prismáticas da Ideia” nas quais o “papel intervém”, como escreveu Mallarmé no prefácio ao seu Lance de dados.

O mesmo Mário Faustino, que faleceu cedo e teve sua “Vida toda linguagem” precocemente interrompida, viu-se obrigado enquanto editor da página Poesia-Experiência no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil a se manifestar sobre a declarada crise do verso. E o fez por mais de uma vez, ressaltando o direito da vanguarda de se manter exclusivista em relação à adoção de uma sintaxe mais atualizada que a linear. Por sua relutância em abandonar o verso em prol do programa de invenção da poesia concreta, Mário Faustino ganhou a alcunha de “último verse marker”.

Em 1959, na mesma época em que Poesia-Experiência deixou de ser publicada, Faustino chegou a comentar em carta a sua insatisfação com a resposta imediata que se dava ao concretismo no SDJB: “O Suplemento não vale que o leias: só tem neoconcretismo (imagine!) de cabo a rabo. Uma gagazice” (“Carta a Benedito Nunes”. Rio de Janeiro, 03/06/1959). Mas houve outras dissidências…

Liderada por Mário Chamie na década de 1960, a poesia práxis explorou novas formas de engajamento, colocando a palavra como um organismo e adotando premissas do concretismo, como a crise do verso (com vistas antes à sua renovação que à sua extinção) e a materialidade significante da página em branco, porém sem abrir mão de recursos verbais, sobretudo em relação ao ritmo e à paronomásia.

No poema/processo, outro movimento iniciado nos anos 1960, como o próprio nome diz, o que se lê é o processo. Esse movimento combativo contém uma crítica à poesia “acabada”, “monolítica”, produzida em nome do concretismo, apesar de corroborar e radicalizar a crise apresentada pelo grupo de Noigandres (por exemplo, declarando que a Era de Mallarmé já era) e o livro como fator significante do poema.

Nesse sentido, a influência de alguns mentores do poema/processo, como Wlademir Dias Pino e Moacy Cirne, é notável na produção de Paulo Bruscky, que compactua a noção de participação do público e transformação inerente a uma poética que não se encerra em si mesma nem no pé da página, mas sim em uma ideia, um conceito.

A ditadura militar que correu (e pôs pra correr) ao longo de mais de duas décadas no Brasil (1964-1985) serviu como pano de fundo à maior parte dessa produção. Daí, subtraímos o caráter de guerrilha, o engajamento político e os ânimos mais exaltados de representantes do poema/processo.

Em outro recorte espacial, na mesma época, o Fluxus conquistou boa parte da Europa, Estados Unidos e Japão com uma postura marcadamente libertária, ganhando sobrevida no fim do século XX com o advento da internet.

Dentro desse contexto, e por vezes carregando alguns estandartes como o do poema/processo e o da arte postal, com posturas poéticas e procedimentos semelhantes, Paulo Bruscky transforma imediatamente muita poesia dita de vanguarda em peça de museu. Buscando destruir paradigmas de composição, fórmulas, tipologias, materiais, sem perder o foco na efemeridade, na energia, no processo, na anarquia do objeto artístico, esse trabalho desafia a perenidade naquilo que tem de incompleto.

O livro vale, sobretudo, por aquilo que não tem de livro, assim como os poemas de Bruscky valem pelo que não têm de poemas. A alma brusca do artista ataca o museu da vanguarda, deixando ao leitor o papel de acabar a obra, transitando entre os limites da construção do sentido, nos quais as figuras de autor e leitor se confundem, bem como a de ferramenta e plataforma. A máquina como coautora, por exemplo.

Desde as primeiras páginas, é possível identificar na poesia visual de Paulo Bruscky o sentido efêmero das coisas. Para ele, a ideia já contém sua execução, e por isso tende a morrer logo, assim que o signo é grafado. Por isso não há tempo a perder com a elaboração, o que importa é o conceito, não seu acabamento, “nós somos efêmeros, por que a arte não pode ser efêmera?”, pergunta.

O caráter interativo de sua obra mostra uma produção ligada à vanguarda, mas com uma crítica libertária imanente. Traz consigo a própria obra disfarçada em uma suposta falta de acabamento. A experiência de manipular o livro (em carne viva, sem couraça) já é o poema. Ao se ver diante de uma obra inconclusa, que pede para ser terminada, o leitor é irremediavelmente induzido à ação.

O alto grau de experimentalismo, além de manter viva uma discussão estética, de tentar resistir – não no museu, mas ao museu –, pode atingir também altos graus de invenção. Por outro lado, a instabilidade permeia o trabalho do artista. A incompletude da composição, se usada como passaporte para a arte, pode render alto desempenho, mas também pode atrapalhar muito. E não se pode confundir aqui incompleto com precário, embora muitas vezes Bruscky tenha trabalhado de forma precária.

A meu ver, até mesmo o happening em si é uma forma precária de engajamento, sobretudo pelo seu caráter excepcional em relação ao cotidiano, que acaba voltando à sua carência sensível depois de alguns minutos ou horas, mas muitas vezes funciona. O mesmo podemos dizer de uma produção muito experimental. Trabalhar com extremos em geral produz coisas extremamente boas e/ou extremamente ruins.

A quem caiba mais impressionismo na leitura, terá dificuldades em julgar uma poética que tenta excluir a questão do belo e do útil. Terá de atravessar uma fachada rústica, sem reboque, de gosto duvidoso, para ser convidado a terminar de construir a casa onde ambos, autor e leitor, comungarão.

Outro ponto que vale menção é sobre o uso da tecnologia na produção poética. Não pretendo discorrer sobre tentativas de empreender poesia com base em avanços tecnológicos, que geram não mais que peças defasadas e de valor, no máximo, histórico, sem representar avanços para qualquer uma das partes envolvidas. No caso da obra de Paulo Bruscky, esse casamento é mais bem sucedido.

Sem a ambição de caminhar na vanguarda do conhecimento tecnológico, sua arte explora os recursos da tecnologia sem trauma, sem empoeirar nos livros, para obter amplitude no campo da técnica. “É adequação, desvirtuar aquela mídia daquele meio em que foi criada e colocá-la para fazer arte aliada a você, um artista e cientista”, disse em entrevista a Marília Andrés Ribeiro e Marconi Drummond. Sem passar vergonha apanhando desta ou daquela linguagem de programação, consegue muito mais impacto sobre paradigmas estéticos com o simples envio de um e-mail.

Em Poesia Viva, Paulo Bruscky realizou com tratamento editorial impecável o desejo manifesto de publicar um livro de poesia visual. Um livro que dá uma boa ideia e faz jus à vasta atividade poética do autor. Mas e a palavra lavra lavra? Nas palavras de Bruscky: “a palavra, de alguma forma, alcança além do visual”.


 Sobre Fabio Riggi

Jornalista, canhoto. Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 e 1959.