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Ianelli repete-se, na Iluminuras

O fracasso, conquistado em nome do êxito por T. S. Eliot, disposto como prefácio a Duas chagas (Iluminuras, 2001), de Mariana Ianelli, prepara-nos para o que, no livro, não há: fracasso ante a escolha do “melhor das palavras/ para o que não há mais a dizer”. Em seus poemas, Ianelli apropria-se de territórios já descobertos, assalto que não a desqualificaria de imediato, não fosse o fazê-lo – ingenuamente – como se não os conhecêssemos, como se não dispuséssemos dos seus mapas minuciosos. Seguindo uma classificação proposta por Ezra Pound, [2] não seria indispensável à poesia a descoberta do novo, a inauguração de um estilo a cada momento; dentre os escritores Diluidores existem aqueles cujas realizações foram reconhecidas e, embora não tenham sido capazes de realizar seu trabalho tão bem quanto Inventores e Mestres, marcaram presença no cenário da literatura. Tanto maior a qualidade de seus trabalhos, quanto maior a compreensão de que o que fazem não é novo e de que, portanto, devem arranjar singularidades às repetições para desprendê-las da monotonia e do desgaste.

Em Duas chagas, em que não encontramos essas necessárias singularidades, o que mais nos parece visível são o desgaste e a monotonia. Certos tons de banalidade e de afastamento em relação às obviedades poéticas, sugeridos por meio da utilização de versos livres (se bem que o próprio verso livre tenha se tornado uma obviedade desde as últimas décadas do século XX e sua conquista não tenha se dado em razão de clichês ou trivialidades), acabam por tropeçar em imagens cansadas do tipo “tua mãe é o primeiro regaço que não escolheste” ou uma pretensiosa incoerência da simultaneidade entre opostos, como em: “De uma vez serás efêmera e eterna”.

Além disso, restam ainda umas rimas distensas: dias/ironia, comentado/passado, conjugado/pecado, dentre outras. Em determinadas passagens, o que possa haver de inusitado ou de estranhamento é rapidamente acomodado por adjetivos sem função outra a não ser a de replicar bordões. Com efeito, qualificações às imagens apresentadas deixam de tencionar a linguagem, de garantir-lhe o grau máximo de significado – condições indispensáveis à poesia – para nos tranquilizar a leitura com soluções de fácil enquadramento na lassidão de todos os instantes. A título de exemplos, seguem alguns versos: “e no apartamento um deserto imprevisto”, “com as suas olheiras fundas e fabulosas/ armados de opinião te diriam”, “o espanto generalizado”, “breve atualidade”, “dramática insegurança de tudo/ que torna o homem um aprendiz dos anseios,/ como quem agora se reconstitui/perdido do ventre melancólico”.

Numa determinada forma, os versos de Mariana Ianelli revestem-se de intenções de escândalo, de horror. O propósito, entretanto, falha, não se completa, pois a transparência do embrulho de que se serve revela embuste ou inépcia. Em trechos como “O diabo sorri, sentado diante da cama:/ ritual de cada noite, ter com o maldito”, a percepção de que alguém tenta comover-nos, determinando as coordenadas de nosso entendimento, antecede a inquietação das imagens de espanto e desassossego. Porque antecipáveis, diáfanos onde deveriam ser espessos, os poemas perdem-se em outra órbita, desprendem-se do próprio eixo e, portanto, não alcançam os percursos de linguagem propícios à tensão do discurso poético. Ao leitor casual, que não perceba o poema numa perspectiva de objeto estético e, ao contrário, espere na poesia o lugar-comum dos sentimentalismos, deparar com esse vestígio – capaz de anunciar o esforço desprendido pela autora ao tentar carregar para dentro do poema um mostruário de especiarias infernais – talvez pouco interfira na fruição da obra, pode ser mesmo que ele sequer se aperceba do rastro. Em contrapartida, o leitor da procura atenta sabe como acercar – ou sabe da relevância de suas interpretações – dos artefatos emersos durante as escavações da leitura.

Através dos poemas que constituem Duas chagas intuímos que a autora deixa de lado algumas das sugestões de Carlos Drummond de Andrade em relação à “procura da poesia”: “as afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam/ […] / Nem me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. Mas de onde depreendemos essa não observação à definição de poesia elaborada por Drummond? Do apostolado antevisto em suas precauções à vida e ao que se pode esperar dela, perceptíveis em toda a extensão do livro de Ianelli. Em sua dimensão conteudística, na formulação das sentenças, Duas chagas não logra maiores perturbações ou intercursos à leitura. Algumas das provocações elaboradas sustentam-se, por exemplo, em discussões seculares dedicadas à contraditória maneira com que se viu negligenciar a fé – e o que ela possa ter de espontaneidade, pureza e gratuidade – em favor de interesses diversos, acordos, negociatas. Entretanto, no livro em análise, essas provocações ainda se pretendem surpreendentes quando já foram ultrapassadas. Para ilustrar essas observações, a transcrição de versos de diferentes poemas: “Ei, pequeno, imita de algum outro iludido/ a paciência adulta de crer por contrato”, “Certo que a trégua resolve os seus homens/ […]/ e espantam o rigor da onipotência,/ então eles amam”, “Não há mais resistência digna”.

Como para reforçar o caráter apostólico, o título oferece a atmosfera do suplício, do martírio à custa de uma imerecida salvação humana. A partir daí, estende-se o clima de moralidade acima da moral, de revelação surpreendente daquilo que o demasiado humano foi capaz de pôr em prática. Mesmo alcançando um breve afastamento de questões relativas à forma, resta essa mensagem cheirando a evangelho de novo milênio – a breviário laico, mas cheio de verdades –, incapaz de suspeitar da própria discursividade.

E para não ter, o leitor de agora, mesmo uma ligeira impressão de que a análise dedicada a qualquer obra com mais de dez anos possa referir contingências insuficientes para a abordagem do autor na atualidade, saliento ter encontrado o mesmo território aqui mapeado – mais uma vez devastado como se fosse descoberta – em livros como Passagens (Iluminuras, 2003), Fazer silêncio (Iluminuras, 2005), Almádena (Iluminuras, 2007) e Treva alvorada (Iluminuras, 2010). Talvez com a diferença de que, nos últimos livros (o exercício aprimora!), a autora tenha conquistado certa distinção nas rimas de que se serve – e isso já é um começo. De resto – voltando às demarcações extenuadas de Duas chagas, ao seu bandeirantismo posseiro de terra já cultivada –, a própria Ianelli ressuma o que poderíamos operar na destilação de seu livro: “e portanto perdê-lo/ e portanto acordá-lo desinteressante”.

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Notas

[1] POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 42.

 Sobre Denise Martins Freitas

Nasceu em Rio Grande(RS) em 1980. Escritora e professora de história; é autora de Misturando memórias (2007), Mares inversos (2010); está entre os autores que compõem a Antologia poética: moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui publicações em diversas revistas e sites literários, dentre os quais: Revista Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Autores Gaúchos, Revista Modo de Usar, entre outros. Escreve o blog sísifo sem perdas.