A ficha catalográfica de Sangria, segundo livro de Luiza Romão, não deixa dúvidas, trata-se tanto de um livro de poesia, quanto de um livro de história. É a poesia brasileira contemporânea pensando a história do Brasil, ou, para dizer com o livro: da história do Brasil, nome que já no primeiro dia-poema, a eu-lírica promete não mais escrever. A palavra poética muitas vezes se utiliza de mecanismos parecidos com o da produção dos sonhos. Semelhanças e correspondências às vezes não evidentes se reconhecem e vão se sobrepondo umas às outras em um rosto ou situação inéditos, mas reconhecíveis.
Em Sangria este procedimento se dá a partir da figura da mulher brasileira e dos diversos níveis, materiais e simbólicos, em que ela se move pela história. Como na condensação do sonho, a história do Brasil se confunde através dos poemas com a história das mulheres brasileiras que se confunde por sua vez com a história pessoal da eu-lírica. As lutas e sofrimentos de uma refletem ou reproduzem ou impactam na das outras. É com esta estratégia que Luiza Romão escreveu uma espécie de história feminina do Brasil. Quem acompanha a cena do slam e dos saraus em São Paulo já cruzou em algum momento com a presença cênica e sua voz cheia de força. Uma das perguntas naturais que quem já a escutou ao vivo se faz então ao saber do livro é: em que medida a sagacidade e o ritmo da sua poesia se sustentam apenas no papel? Ou seja, como a mudança de mídia e contexto – as rodas de disputa, a interlocução com outros slammers e público, o recurso constante à sonoridade a partir de rimas, aliterações e assonâncias – impacta a experiência da sua poesia. Sangria não deixa dúvida de que, a despeito do poder de fala de Romão, seus textos funcionam como palavra escrita e nos livros, ou seja, no um a um com seus leitores. É tanto poesia para ser falada, quanto poesia para ser lida, o que não tem nada de óbvio, considerando a dependência sonora de certa poesia falada e o hermetismo vocabular de certa poesia contemporânea.
Se Romão explora o aspecto cênico, com pausas, modulação de voz, suspensão e ataques de fôlego em suas performances, na forma livro ela se utiliza do espaço para o acúmulo e desenvolvimento lento de uma estrutura argumentativa poética. Se a fala e a reação a ela são geralmente velozes, imediatas, na palavra escrita há mais tempo para exposição e contemplação. Sangria se utiliza deste tempo e deste espaço desde a concepção visual do livro: seus poemas são impressos em letras pequenas em grandes páginas e em coluna dupla, os originais em português na esquerda e sua versão em espanhol (traduzida por Martina Altalef) na direita – entre eles e ao redor, muito espaço.
O formato do livro e a organização dos poemas seguem o mote do calendário: a lombada não é na esquerda do livro, mas na parte de cima, como nas folhinhas de mês. Seus vinte e oito poemas são marcados não por números de página, mas em negrito na miniatura de calendário no canto superior direito das páginas. Vinte e oito dias como no ciclo menstrual (e, ironicamente, como no mês mais brasileiro de todos, Fevereiro, tempo de carnaval e de Iemanjá). Estes vinte e oito dias são divididos em seis partes, que fazem o percurso da formação histórica do Brasil, passando pelas primeiras memórias de uma mulher brasileira, chegando à história recente do Brasil em que esta mesma mulher faz um chamado feminino à luta (a partir do útero como bomba, ao modo do punho de Angélica Freitas).
Os poemas às vezes são descritos como “dias” no calendário e às vezes como “pílulas” (anticoncepcionais e do dia seguinte) e estão separados em temas: “Genealogia” traz nos títulos dos poemas os campos de um documento como a certidão de nascimento e tematizam a colonização e a violência sexual. “Descobrimento” são as primeiras experiências femininas corporais e sociais, violentas ou prazerosas. Em “Tensão Pré-Menstrual” sintomas físicos como cólica e náusea se misturam às experiências históricas e literárias de mulheres. “Corte” traz nos títulos datas históricas do Brasil recente, das manifestações pós-Junho de 2013 ao golpe parlamentar. “Ovulação” traz um único poema em que a condição física é metáfora para a situação política do país. Por fim, os dois poemas finais de “Menstruação” ligam o fim do ciclo menstrual (e a possibilidade de fecundação) à luta revolucionária.
Pensando com ouvido de poeta, Romão encontra na língua as contradições de gênero e é no campo da língua que ela denuncia com fina ironia o que chama de “concordância de gênero”: a neutralidade na língua materna como privilégio masculino (“neutralidade termina com “o” e não existe “presidenta”). As palavras duplas que ela escolhe são viradas de cabeça para baixo e perdem a inocência revelando a violência patriarcal escondida na língua e nas práticas sociais. Sua sonoridade não segue apenas os belos acasos das rimas, mas é instrumento de revelação e síntese política. O nome Brasil vem do pau-brasil, como sabe qualquer estudante primário, mas o significado desse “pau” no patriarcado que sempre governou o país não é tão evidente.
Romão ressalta e subverte as metáforas de gênero presentes em qualquer projeto nacional-colonial: colonizar as “virgens terras”, filhos da “mãe gentil”, estratégias dos donos do pau-país, pais ausentes nos registros de documentos de filiação, mas sempre presentes nos documentos de posse. (Pais que durante o livro se revezam entre a figura de ausente e de estuprador). “Terra é substantivo feminino / a ela pertenciam os homens”. América é nome de mulher e de continente e em ambos tentar enfiar bandeiras, falocentrismo da violência patriarcal, colonial, ditatorial e golpista, como os poemas vão mostrando. No dia 14, “1º Assédio”, um exemplo de como suas velas poéticas estão sempre em busca do vento da sonoridade. Um poema sobre o assédio sexual cotidiano se transforma em imagem náutica: as velas de cera queimam, as velas do barco sopram, a violência fálica velada do mastro. Trata-se de assumir o leme, revelar a opressão velada e seguir em frente, “meu torso é proa / feito pra atravessar onda”. Maiakovski, guardadas todas as proporções, orienta algo semelhante, pois se o mar da história é agitado, “as ameaças / e as guerras / havemos de atravessá-las, / rompê-las ao meio, / cortando-as / como uma quilha corta / as ondas”. Às vezes basta a mudança de uma letra (“engatinha/engatilha”, “caminho/Caminha”), às vezes são as semelhanças sonoras que revelam (“boneca inflável/não inflamável”, “punho firme/papai-farmer”, “parto/partida”, “lútea/luta”), às vezes os homônimos são tirados de contexto para mostrar uma semelhança (a “corte” portuguesa e o “corte” cirúrgico, a “sangria” do útero e a “sangria” da represa, “dos saltos só conhece/os que fazem voar”).
O discurso e as práticas de esquerda norteiam o livro, mas em tom realista, sempre lutando, sempre em vias de desaparecer, como o sintomático ovário esquerdo que “atrofiou” ou o saci “só com a perna direita”. A história é recontada com a voz de quem fala bem porque ouve bem: a história como “farsa”, “força”, “falsa” e “forca”. A poesia de Romão é direta, tem mensagem, mas não é óbvia, mostra justo o que sempre esteve lá, agindo secretamente, e do qual não se fala por conveniência (para quem?). A mensagem não acaba quando termina o poema, mas começa, bota para pensar como a maiêutica socrática, impregna de revolta.
Texto publicado em 22.12.2017, republicado em Arquipélago: literatura brasileira contemporânea (2013-2023)