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MINHA VIDA NOS ANOS 2000

My Life (1987), da norte-americana Lyn Hejinian,tem como projeto o raconto de cada uma das idades (até seus 45 anos) desta poeta essencial à contemporaneidade literária (e mais especificamente à esfera da Language Poetry, da qual são, também, integrantes nomes como Charles Bernstein, Steve McCaffery, Robert Creeley, Ron Silliman, entre outros). Tornado popular junto a escolas e universidades, por força de sua criatividade a contar de uma formulação enumerativa, centrada numa história de vida, o pequeno e possante livro só vem mantendo interesse e investigação, como atesta a sua significativa bibliografia crítica. Uma estudiosa como Lisa Samuels chega a destacá-lo como peça exemplar do cânone da poesia pós-moderna.

As leituras continuam a gerar abordagens variadas, estimuladas pela curiosa composição de Hejinian, que elaborou um conjunto de 45 blocos, constituídos um a um de um só parágrafo e antecedidos por uma sentença de cunho aforismático, grifada ao lado esquerdo de cada bloco-parágrafo. As sentenças-aforismas se repetem, distribuindo-se ao longo dos textos, como que relativizando a especificidade de cada uma das idades componentes dos blocos. Assinalam, de fato, o retorno dos motivos – o próprio leitmotiv temporal disposto numa espécie de autorefração reveladora do traço simultaneamente cambiante e coextensivo da escrita de si por mais de 4 décadas.

A analogia
óbvia é com
a música

Era    uma    enseada    montanhosa
correndo  sobre  pequeninos  seixos
de quartzo branco e mica. Digamos
que   toda     possibilidade    espera.
Na  música  raga,  o tempo é  acres-
cido     ao     compasso       e        se
expande.     Uma    sede    profunda,
sutilmente   cheirando   corações de
alcachofra, semelhante ao adormecimento da infância.
(Hejinian, 2002: 24)

Não surpreende que, após à escrita construtiva e especulativa de My Life, Lyn Hejinian tenha retornado à experiência com a publicação de My Life in the Nineties (2003), um breve livro formado por dez blocos concebidos dentro da mesma diagramação de seu pequeno “clássico” contemporâneo. Em torno da recriação de sua existência no decurso de uma década, a poeta só faz atualizar um procedimento que lança a relação escrita-vida-tempo a um plano combinatório, mais próprio da montagem cinemática e do arco catalográfico aberto por muitos artistas plásticos que se valem da dimensão do narrativo, de que são exemplo Barbara Kruger, Sophie Calle e Janet Cardiff.

É como se a autora propiciasse a cada um dos seus leitores o acesso a uma pauta onde a linha poética, o dado narrativo e o padrão de um jogo numérico-associativo conduzissem a um outro tipo de leitura e experiência o que se entende como esse grande ready-made – da forma como observa agudamente Marjorie Perloff, grande pesquisadora da poesia americana atual – chamado Livro da Vida. É no interior de um plano plástico e móvel que My Life estabelece seu vínculo com a existência e o tempo. Hejinian se utiliza do sentido compacto de um livro que enfeixa resumos de diferentes épocas – de toda uma vida – para melhor acioná-lo sob a forma de uma linguagem-imagem disseminada em impensáveis vertentes. Como se, assim, pudesse ser amplificada a idéia do que significa e sumariza “uma vida”.

Foi um momento estúpido quando ouvi as motos e o avião e gritei porque  “a  natureza  estava  sendo  destruída”.    A     caixa do banco não tem de gostar de você antes de dar o seu dinheiro. O restaurante italiano no Shopping Center Americano tinha um fedor parmesão. A alguns passos de casa, fui às compras ao som de muzak, com seu ritmo de mascar chiclete, entre coisas do mesmo tipo, separadas somente por pequenos intervalos de tempo. O mar disse um xôochispa, embora irregularmente – eu queria ser bastante precisa embora seja impossível soletrar esses sons – e ocasionalmente o mar estourasse, e boom.      Tais      questões     fazem   soar,   como aquelas   de   Wittgenstein. Na cozinha, à esquerda, está a gaveta    dos    sacos   duplos   de   papel   marrom reforçados e as marcas do nome do supermercado, em vermelho.
(Hejinian, op.cit: 85)

Se por um lado, se mostra indiscernível a marca madura, a um só tempo intelectiva e introspectiva, da autora na captação dos flagrantes mais remotos – desde seus primeiros anos –, por outra via My Life captura, em suas linhas plenas de movimento e interrelação, o aspecto impessoal e multifacetado de cada vida, de cada idade. Tamanha é a variedade dos alinhamentos tópicos que atravessam uma única existência, como se fosse fornecido na leitura do livro um tipo de orbitação expandida por um universo inexplorado de signos e enlaces temáticos quanto mais são fixadas as características etárias e existenciais de uma vida “que se conta”.

Isso só pode ser subdividido com dificuldade.Uma duração, uma partida, uma abertura. Constelações,com suas estrelas, são o nada absorvido por um  lugar.    Pode   parecer   como  se  a filosofia tivesse sido apropriadapelos  artistas. A  tela  pode  ser  retirada  da lareira desde que alguém   esteja   sentado na sala.     Os    cavalos   salteiam   no   campo   orvalhado.  O    que    eu    devia   aceitar,exceto  remorso e    percepção   voluntária  (para issoreservo um caderno de   notas),    exatamente   como uma   pessoa    responsável,  com   um   novo   relógio,   assimila o atraso de um amigo. Não  gosto, entretanto, de  corridas de cavalo  porque  não  te   dão   chance  para  ver os cavalos. As  raposas que sobrevivem  é o  que  háde   bem-sucedido.       Era     inverno,  uma    noite   cálida,porém,  na   Nova    Inglaterra    para   se   dar  uma   caminhadano  crocrante  da   neve.  O alvejante matou o mofo. O que  alguém está fazendo por, ou com,  declaração (a linguagem)  ou  em  relação  ao  declarado     (o   objeto  ou  a idéia)   quando   alguém   quer  dizer  algo.    Uma   garrafa  de   vinho   é   diferente   da   garrafa  de   vinho.
(Hejinian, op.cit: 56-57)

São questões de linguagem, fundamentais ao processo do conhecimento (de si, do tempo, das linguagens que viabilizam o campo do saber), os pólos mobilizadores da escrita em Minha Vida. Hejinian esquadrinha cada um dos núcleos temporais, constantes de seu  livro mais conhecido, para melhor difundi-los como empreendimento em processo, como crescente formulação. Cada um dos blocos exorbita o simples molde numérico/etário como se engatasse uma continuidade nunca de todo apreendida, nunca, de fato, concluída. Interessante é notar que o contato com Minha vida e  Minha vida nos anos noventa acaba  por  atingir o cerne da poética autoindagativa, mas interpeladora dos muitos leitores que hoje seguem o itinerário dessa autora de ascendência russa, embasada na filosofia e no teorema transdisciplinar das artes, tal como está contido na produção poemática de hoje.

Em My Life, Hejinian desbrava uma noção amplificada de escrita e do livro de poesia, que se direciona para as mais desafiadoras encruzilhadas conceituais de uma época em que literatura e tecnologia, autoria e máquina, arte e cultura refiguram o lugar do criador e do leitor. Não por acaso, a sua é uma linguagem da inquirição (título de um de seus livros), nutrida tanto de uma planificação de cunho filosófico – na qual Bergson, Wittgenstein e Deleuze despontam como nomes-chave –, quanto se define como o convite a um jogo multidimensional, em que todos nós, pertencentes aos anos 2000 já a caminho do fim de sua primeira década, somos lançados, participantes de uma partida decisiva com a história a contar dos muitos elos que formam a memória e a continuidade paradoxal da vida breve.

Em seus fragmentos de potência, Minha vida pode nos dizer porque todo livro de Lyn Hejinian impõe, de certo modo, uma conexão com os dados que informam sobre a contingência (de existência e cultura) quanto mais os dispõem numa configuração capaz de insuflar o conhecimento e o impulso de contar, de dissecar vida, linguagem e arte como um acontecimento em estado nascente. Um jogo, enfim, que se dirige sempre para o tempo agora, mas feito a partir de qualquer ponto. De vida. E espaço. De linha a linha (sem conter um único e final enunciado).

Mas por vezes – eu penso, devido a, não a despeito de, toda atividade –, sinto de modo sereno como, quando criança, eu estudava os padröes irregulares e levemente variáveis dos azulejos da cozinha, aos quais tinha me resignado com muita felicidade, ao tentar encontrar o lugar a partir do qual os padrões se repetem. Teste o aquecimento   com   um   dedo  ligeiro. Lembre-sedo quando do qual eu falo.
(Hejinian, op.cit: 94)

Dentro de um compacto de escrita, move-se um bloco de memória e montagem – poderia suplementar Herberto Helder, ao pensar a poesia da perspectiva cinemático-historiográfica de J-L Godard, em seu livro seminal Photomaton & Vox. Arquivo heterodoxo do século. Pelo meio (Lyn Hejinian nasceu em 1941). Ou o diagrama da existência da poesia depois do fim e do futuro de um época entranhada tanto em prospecções emancipadoras quanto em catástrofes coletivas.

My Life ou o retorno do livro como peça portátil, wearable forma a se oferecer aos postadores de blogs ou outros blocos com a urgência de um biorelato extensivo a variadas fontes de informação e a diferentes acessos. Convive-se nos fragmentos de Hejinian com um corte inquiridor, feito como trabalho de subjetivação à altura da experiência com o tempo em suas diversas mediações. Palavra, imagem e corpo em movimento.
Minha vida. Repercute até hoje, no fim dos primeiros anos 2000, como se desencadeasse em cada leitor o empenho de retomada e refiguração da existência em curso, de uma ponta a outra da história, já em outro século (milênio, de novo).

Como se lê no próprio texto – numa tradução do fragmento 25 –, um jogo se oferece com a forma do livro no tempo, tomado ao acaso, no meio de uma vida, e contando com sua repetição, articulada instantaneamente como refeitura de linhas e motivos. Ao longo. A seguir.

The greatest
thrill was
to be the one
to tell

No puppy or dog will ever
be  capable  of  this,   and
surely no parrot.   No one
can ask another as rhetori-
cal question. We can only
read  stray rocks and first
we    must    learn      their         
names.   Such   a   record      
turned    upon    a    screen,    blowing     the     desert     past,
would   take   sixteen   days   and   four   hours.   He   lay   in
the  sun  to  add  to  his  ugly  tan.   In  the  little  jars,    food
for     a     Gerber     baby.       Through    the    windows    of
Chartres,   with   no   view,   the   light   transmits   color   as
a    scene.   What   then   is   a   window.   Between  plow  and
prow.      A   pause, a   rose, something   on   paper,   of   true
organic   spirals   we   have   no   lack.   In   the   morning   it
is   mauve, close   to   puce.    The   symbolism   of   the rose
depends   on   its   purity   of   color.    Now  that  she  is  old
and    famed   for   her    intellect   instead   of   hear   beauty,
she   continues     to   wear   the   fashions   of   that    earlier
era.   She   asked   what   were   some   of   the   other   names
we   had   thought   of   giving   her   when   she   was     born,
and   what   we   would   have   named   her   if  she  had been
a   boy.   We   wanted   a   topic   of   our   own   for  the occa-
sions    when   the    men   talked   sports.   The   red   rose   in
its   redness   leaks   no   yellow.    In   other   words, it  devel-
ops   the   argument.    We   are   “on   a   trip”  as  if that were
the    form    of    conveyance.      Then    I    wanted   to   visit
Giverny   and   the   gardens   of   Monet.     I  can  still  make
the   sound   of   galloping   on   my   thighs.    To  the degree
that     seeing     and     hearing    are    activities   rather   than
receptivities.       The    obvious   analogy    is    with    music.
The    concert    of    Gregorian    chants   was   held   in   the
medieval    wing    of    the    museum,    where    the    music
shook   the   walls.    The   sales   clerks   crowded   the door,
working    on    commission.    A   frighted   fool    child.  To
oviposit    the    mosquito   her   eggs   must  on  a full blood
meal   feast.        And    completely    again    never    politics
withdrew.    You    can’t    assume    “no    remorse”   merely
because    the    stripping    away    of    superfluities   is  de-
scribed   as   “remorseless”.   The   symbolism   of  the  rose
depends   on   its   thorns.   That   is   more   or   less  factual
and   hard   to   miss.   In  one  night   I   had  done a week’s
writing.    We   didn’t   have   to   think   about   cooking be-
cause   we   had   been   invited   out.    So I rebelled against
worlds    of    my   own   construction   and   withdrew   into
the   empirical   world   surrounding   me.    The    dog   was
lying    in    the    sunlight    not    the   sun.   The number of
legs    doesn’t   matter,    anymore    than    the    number of
wheels   on   a    car.      Those  particles  in  the air are bugs
in   the   spectrum.    The   entomology   of   things   on   the
page.    Thinking   back   to   my   childhood,   I   remember
others   more   clearly   than   myself,   but   when   I    think
of    more    recent    times,    I    begin    to    dominate   my
memories.    I    find    myself    there,   with   nothing  to do,
punctual,   even   ahead   of   time.    It’s   hard   to   make  a
heart   go   pal   pal   pal   at   description   but  with  that fat
music   on   big   feet    I    go    beat   beat   beat and twitch
containment.    In   dry   weather, I’ve   dry  eyes. The wind
blows    in    which   a   bird   begins   to   fly.   The horizon
completely   free   where   sky   meets   the   sea.    Rocking
in   the   light,  leviathan   and   mare   whose    waves    are
pups and fillies. Imagine: never to be unintelligible!

 

A maior
excitação era
ser o único
a contar

Nenhum   filhote,    nenhum  cão  
será   capaz   disso,  e certamente   
papagaio      nenhum.    Ninguém                                       
pode   perguntar   a   outro   uma
questão     retórica.      Podemos
somente  ler  rochas desgarradas
e            precisamos       primeiro
aprender    seus   nomes.        Tal
registro,    projetado     em     uma   tela,       soprando   o
desértico  passado, tomaria dezesseis dias e quatro horas. Ele descansa ao sol para aumentar seu horrível bronzeado. Nos pequenos  potes,  comida  para  um  Bebê  Gerber*. Através das janelas de Chartres, sem vista, a luz transmite a cor como uma cena. O que é, então, uma janela. Entre arar  e  arpar.    Uma   pausa,    uma   rosa,    alguma   coisa  no  papel, das  verdadeiras   espirais   orgânicas   não    temos falta. Na manhã tudo é malva, próximo ao avermelhado. O simbolismo da rosa depende da sua pureza de cor. Agora que ela é idosa e famosa, intelecto em vez de beleza, ela continua a usar a moda daquela época antiga. Ela perguntou quais eram alguns dos outros nomes que nós tínhamos pensado em lhe dar quando ela nascesse e que nome teria se nascesse menino. Nós queríamos um tópico próprio para as ocasiões em que os homens conversassem sobre esportes. A rosa vermelha, em seu vermelho, não deixa vazar nenhum amarelo. Em outras palavras, ele desenvolve o argumento.  Nós estamos “numa viagem” como se a viagem em si fosse um meio-de-transporte. Então, eu quis visitar Giverny e os jardins de Monet. Eu posso fazer ainda o som de galope nas minhas coxas. Ao alcance do  grau  em  que  ver e ouvir  são  atividades  mais do que receptividades. A analogia óbvia é com a música. O concerto de cantos gregorianos teve lugar na ala medieval do museu, onde a música balançava as paredes. Os funcionários de vendas aglomeravam-se na porta, trabalhando de comissão.    Uma criança tola aterrorizada.  Para pôr seus ovos o mosquito precisa de um banquete completo de sangue. E, completamente, de novo, nunca a política se retira. Você não pode assumir “nenhum remorso”,     meramente         porque         o            não-envolvimento
das superfluidades é descrito como “sem o menor remorso”. O simbolismo da rosa depende de seus espinhos. É mais ou menos factual e difícil de perder. Numa noite, fiz o trabalho de escrita de toda a semana. Não tínhamos de pensar em cozinhar pois tínhamos sido convidados. Eu me rebelei, então, contra os mundos construídos por mim mesma e me retirei para o empírico   mundo em volta.   O cachorro estava estirado
na luz do sol, não o sol. O número de pernas não importa, não mais do que o número de rodas de um carro.    Aquelas partículas no ar são micróbios dentro do espectro. A entomologia das coisas na página.  Pensando lá na infância, eu me lembro dos outros mais claramente do que de mim, mas, quando penso em épocas mais recentes, eu começo a presenciar minhas memórias. Eu me encontro lá, à toa, pontual, antecipadamente.   É duro fazer um coração ir par a par pá pá pá com a descrição, mas com aquela música pesada na maior pisada eu vou pela batida beat, e, a contração, crispo. No tempo seco, tenho olhos enxutos. O vento sopra onde o pássaro começa o vôo. Horizonte inteiramente livre onde o céu encontra o mar. Embalam-se na luz, o leviatã e a égua, cujas ondulações são rebentos, cavalinhas.   Imagine: nunca ser incompreensível.   
(Hejinian, op.cit: 90-92)

 

Referência Bibliográfica:

HEJINIAN, Lyn. My Life. Copenhague & Los Angeles:
Green Integer, 2002.

* Marca de produtos alimentícios para bebês.

 

Era apenas uma coincidência, ainda. O disco de um centavo, o mais raro disco de dólar. O cabelo dela era da cor de latão alisado. Estávamos orgulhosos de nossa especialidade, distingüindo as espigas de milho maduro no pé, falando, com conhecimento, dos cabelos e das criações  de   milho: Manteiga  &  Açúcar,   Cavalheiros da Roça, Mel & Creme, Rainha de Prata. A velha estrada suja, despedaçada em torrões e regos, ou montes de terra e sulcos, onde caminhávamos debaixo de algumas árvores ruidosas, tinha sido revertida à escuridão. Eu, então, estava de retorno.    Para isso as palavras apresentam residências de chão marrom. Uma pausa, uma rosa, alguma coisa no papel.


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