“Há um ditado chinês que diz: podemos desenhar a pele de um tigre, mas não os seus ossos; podemos desenhar o rosto de uma pessoa, mas não o seu coração.”
A voz italiana do narrador que nos dá conta deste dito em Chung Kuo, China (1972) é a de Michelangelo Antonioni, ele mesmo, o realizador de L’Avventura e Professione: Reporter, que no alvor dos anos 1970 do século passado aceitou o convite para rumar à China e fazer um documentário de quase quatro horas para o canal estatal italiano RAI. A história de Chung Kuo, China é fascinante. Desde logo por ser um dos mais importantes documentos filmados na China maoísta em plena Revolução Cultural e por, na mesma medida, ser bastante desconhecido. A película foi “segregada” por motivações políticas, que vão muito para lá da esfera de influência daquele que foi um dos maiores cineastas de sempre. Em 1972, Antonioni acabara de filmar Zabriskie Point (1970) na Califórnia e, antes dele, Blow-Up (1966) em Londres. Quando decide aceitar o convite para rodar na China, o mestre italiano a quem chamaram depois “turista da revolução” estaria bem ciente dos riscos que isso acarretava para a sua reputação. Não é certo de quem terá partido a ideia para este filme. A China de Mao Zedong atravessava um período de particular isolamento na cena internacional, com o afastamento, nos anos 1960, em relação à União Soviética de Khrushchev, que advogava uma certa ‘destalinização’. Havia vontade política de aproximação ao Ocidente – a histórica viagem do presidente norte-americano Richard Nixon à China acontece apenas meses antes da chegada de Antonioni e da sua equipa de rodagem ao Império do Meio – e o cinema parecia uma boa opção. A ideia poderá ter partido do governo chinês ou da própria televisão estatal RAI, mas Zhou Enlai, o então primeiro-ministro chinês favorável à abertura, terá sido o responsável pela aprovação do projecto, com a RAI e a Embaixada da China em Roma a tomarem as rédeas.
O filme foi apanhado no meio da guerra política entre Zhou Enlai e a mulher de Mao, Jiang Qing, que não se poupou a utilizá-lo para desferir ataques ao primeiro-ministro. Chung Kuo, China e todo o remanescente trabalho de Antonioni rapidamente foram banidos na China. O realizador recebeu ataques ferozes dos meios de comunicação oficiais do Partido Comunista e foi rotulado de “inimigo do povo chinês”. Várias projecções internacionais de Chung Kuo, China foram canceladas e quando o filme se mostrou no festival de Veneza houve um quase estado de sítio policial para que tal pudesse acontecer.
Ver Chung Kuo, China hoje é viajar a um país que já não existe. Antonioni, acompanhado de Luciano Tovoli (câmara) e Giorgio Pallota (som), chegou à China em Maio de 1972. Consigo viajava também a actriz Enrica Fico no papel de assistente, que viria mais tarde a tornar-se sua mulher. Não havia voos directos entre Itália e a nova República Popular da China e, por isso, Antonioni e a equipa voaram de Roma para Paris, de Paris para Hong Kong, atravessaram a fronteira por terra para os vilarejos de Shenzhen, viajaram até Guangzhou de comboio e, depois, de avião para Pequim.
É na Praça de Tiananmen que começa este documentário de 217 minutos e três partes, construído por Michelangelo Antonioni a partir de mais de três semanas de rodagem e 100 horas de material recolhido. Tiananmen era então um lugar ainda não manchado pela repressão sangrenta dos protestos estudantis de 1989. Era um lugar de orgulho nacional, onde crianças entoavam canções patrióticas e todos se queriam fotografar por retratistas à moda do tempo. É neste cenário, e depois de ouvirmos Wo ai Beijing Tiananmen (Eu amo a Tiananmen de Pequim) na voz dos mais pequenos, que começamos a escutar a narração quase monocórdica e assumidamente distanciada do realizador.
“Não estamos a fingir compreender a China. Tudo o que esperamos é apresentar uma grande colecção de rostos, gestos, costumes. Chegados da Europa, pensámos em explorar montanhas e desertos. Mas o facto é que a maior parte da China continua inacessível e proibida. Mesmo que, num jogo de ping pong político, os chineses tenham aberto algumas portas, os nossos guias impedem-nos de dar qualquer passo fora do itinerário prescrito com uma persistência inabalável.”
Estas palavras do realizador marcam o tom de todo o documentário, não só do ponto de vista da posição de observador descomprometido que Antonioni faz por assumir, mas também naquilo a que se propõe – Chung Kuo, China é um manancial inesgotável de olhos e expressões e rostos e paisagens, um documentário que fixa o tempo e o modo de um lugar que não podia ser mais estrangeiro àquela lente italiana. Ao longo das várias semanas de rodagem, a equipa passa por Pequim, Anyang, na província de Henan, Nanjing, Suzhou e Xangai. O tai chi (movimentos de gente que alcança “uma música que mais ninguém consegue ouvir”); a religião, os templos e a Cidade Proibida; os enormes cartazes de propaganda e as centenas de milhares de bicicletas; a abundância e a disciplina das crianças ( “as estrelas” do país); um parto de cesariana todo feito sem outra anestesia que não a das agulhas da acupuntura; as fábricas e as comunas agrícolas, indispensáveis à construção do socialismo; as conversas “monótonas e repetitivas” dos operários, sempre à volta da revolução e de Mao; a Muralha da China; o Rio Yangtzé e as suas muitas embarcações; os mercados, a comida e as casas de chá; a vida dura dos camponeses; os teatros de marionetas; as trupes de circo – tudo isto e muito mais cabe neste exercício de contemplação com longos períodos de silêncio narrativo, em que espectador é convidado a somente acompanhar o dia-a-dia do povo chinês.
Antonioni não era inocente e sabia que quaisquer vislumbres de pobreza extrema ou de dissidência política seriam postos fora do seu alcance. O realizador faz questão de deixar isso claro durante a narração, ao mesmo tempo que admite ter escondido câmaras para filmar em zonas onde o acesso era restrito. Por isso fala, quase no final de Chung Kuo, China, da tal pele do tigre e dos rostos das pessoas, reconhecendo que apenas teve acesso à superfície do país, a “um vislumbre” da China.
Chung Kuo, China continua a não ser um filme fácil de encontrar. Comprei-o em formato DVD numa qualquer loja remota na Ásia que não recordo. Nos Estados Unidos da América, uma versão reduzida do filme passou na TV em 1973. Não foi até ao final de 2017 que o documentário foi mostrado na integra pela primeira vez, numa retrospectiva que o Museum of Modern Art dedicou a Antonioni.
Quanto à China, apenas em 2004 o filme foi projectado no país, para 800 pessoas, na Academia de Cinema de Pequim. Antonioni ainda era vivo mas foi já “tarde demais”, como contou posteriormente a sua viúva. O mestre italiano não podia viajar nem sequer falar, devido ao seu estado de saúde.
Para mostrar que o filme de Antonioni continua bem vivo e que a relação da China com o cineasta se alterou, acaba de ser apresentada uma nova série documental de cinco episódios, Seeking Chung Kuo, realizada por Liu Weifu e Zhu Yun. Os cineastas, com a ajuda do jornalista italiano radicado na China Gabriele Battaglia, foram em busca dos lugares e das pessoas filmadas em 1972. Encontraram, entre outras, a dona de uma loja de noodles em Suzhou e o chefe de uma aldeia em Anyang, agora entrevistados sobre a sua experiência com Antonioni todos estes anos depois.
Outra das entrevistas valiosas deste novo documentário é à viúva do mestre italiano. Enrica Fico, agora Enrica Antonioni, contou aos documentaristas que o realizador ficou completamente destruído pela recepção negativa dada ao filme pela China. “Foi como se o filme tivesse falhado. Não foi bem aceite. Ele trabalhou tanto para esse filme. Só a edição levou seis meses. Houve tanto amor ao fazer aquele filme. Quando o país disse ‘és nosso inimigo’, foi como se o tivessem matado.” Mas não mataram. Antonioni, todos sabemos, viverá por muitos anos através dos seus filmes.
Chung Kuo, China (1972)
A versão de 220 minutos do filme consiste em três partes. A primeira parte, realizada em torno de Pequim, inclui uma fábrica de algodão, setores mais antigos da cidade e uma clínica onde é realizada uma operação cesárea com acupuntura. A parte do meio visita o canal Bandeira Vermelha e uma fazenda coletiva em Henan, bem como a cidade velha de Suzhou. A parte final mostra o porto e as indústrias de Xangai e termina com uma apresentação de palco de acrobatas chineses.
Aqui a primeira parte: https://www.youtube.com/watch?v=IuxseEtIRXI
Artigo publicado em extramuros China e cedido à Sibila.