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“No interdito às línguas”: A nova utopia de Régis Bonvicino

O nome de Ezra Pound foi o primeiro a ecoar mal iniciei a leitura desta obra. Não pela opção política, já que a nova utopia se situa nos antípodas da opção fascista poundiana, mas por esta ser uma poesia “seca e dura” (“hard and dry”), tal como Pound tanto desejava para a sua epopeia dos tempos modernos. O poeta norte-americano há-de ser objecto de reflexão de um dos poemas do brasileiro Régis Bonvicino, mas, em vez do poundiano “faz o novo” (“make it new”), esse texto sobre os novos fascismos leva ironicamente por título “Make it old” (“Faz o velho” [101-104]).

A grande característica de a nova utopia é a sua linguagem violenta, brutal, contundente, numa visão desencantada do mundo contemporâneo e da própria poesia que nele parece não encontrar lugar. Não se nos apresenta o grito inarticulado, e, contudo, somos confrontados/as com o grito. A própria capa do livro faz lembrar o quadro de Edvard Munch, mas, nesta imagem, já nem boca existe – só fractura, só fenda.

Estamos perante uma verdadeira manifestação da violência da linguagem, aquela que, segundo Jean-Jacques Lecercle, nos confronta com o excesso: com um absoluto excesso de silêncio perante o real (“o real” que, afinal, não passa de uma construção do real na linguagem). Trata-se de um grito em nome da necessidade da reinvenção de uma linguagem que possa ser verdadeiramente emancipatória e verdadeiramente poética — porque a linguagem emancipatória e a linguagem poética que existem neste mundo deixaram, há muito, de o ser e, por isso, fazem hoje parte de uma realidade permanentemente conspurcada. Porém, nesta nova obra de Bonvicino, nem essa reinvenção é sequer alguma vez apontada, como se até o desejo estivesse definitivamente derrotado, sem possibilidade de existência. Paradoxalmente, a nova utopia parece assim ser a distopia sem alternativa, uma espécie de incoerência coerente, aquilo que, num dos poemas deste livro, se diz estar “no interdito às línguas” (49).

Talvez a outra grande característica deste livro seja a absoluta ausência do “eu” poético. Não só a ausência do “eu”, mas o apagamento da presença de uma voz: raros adjectivos ou advérbios, levando a técnica do “understatement” de Hemingway (uma espécie de “dizer nas entrelinhas”, o não-dito sendo mais importante do que o dito) muito mais além, até ao limite em que o silêncio nos agride violentamente. E, por isso mesmo, não podemos aqui falar de uma escrita amoral. Por isso mesmo, nesse efeito, nessa agressão ao leitor/a, entendo este livro, e apesar dele, como um acto de resistência:

Quase na esquina

Sete andares
janelas abertas, pastilhas sujas
ônibus
o diesel queima
depois sobe
mendigos dormem
na calçada em frente
ignoram a música dos CDs e dos rádios dos carros
quando chove
se mudam para a marquise do prédio ao lado
de vez em quando
o caminhão da prefeitura passa
sequestra seus bens
fogão de uma boca, garrafa de água
almofadas, colchões velhos
um deles se levanta
varre a calçada
um pássaro pousa n aponta da grade
flor amarela, pau-ferro
um canteiro inexpressivo de azaleias.

(31)

Este “canteiro inexpressivo de azaleias”, sendo inexpressivo, expressa tudo na sua presença paradoxal — tal como este livro de poemas que nega a própria poesia no acto mesmo de se fazer livro de poemas.

Muitos títulos parecem apontar para um certo lirismo (“Mare Nostrum”, “Tarde”, “Uma fonte” “Verão”, etc.), mas estes poemas apresentam-se, depois, paradoxal e violentamentamente, como anti-líricos. O texto constrói-se através da fragmentação e da justaposição, sem conectores, sem sequencialidade ou causalidade, sem linearidade — como se acompanhássemos uma visão em processo, um caminho; como se a realidade se fosse desvendando em fragmentos, abrindo-se à nossa passagem, que é também a passagem do poeta — sem qualquer confessionalismo. Por vezes, lembra Walt Whitman e os seus catálogos nas muitas enumerações; outras, lembra William Carlos Williams, mas sem a redenção da natureza que o poeta norte-americano nos oferece:

Lenda

Azteca, formiga pardacenta,
cara de caveira,
fede: dispara um líquido
para proteger a castanheira

dos pulgões, das moscas-brancas
das cigarras, dos piolhos-de-planta
dos macacos, dos bicos das jandaias
da pata brusca do canário

para garantir gotículas de néctar
das arrancas, dos gravetos
dos excrementos açucarados das larvas
dos ouriços: frutos da castanha

ninho aéreo, carreiras, ferrões
entre galhos
uma arara pousa
orquídeas de folhas rajadas

verão
o canto narcótico do fogo-apagou
garras do acauã arranham o tronco
Aztecas, de pronto, cospem de novo.

(19)

E lembra T.S.Eliot, em Waste Land, mas sem o “beyond” (o além) de um poeta que ainda acreditava na possibilidade da transcendência. Logo no primeiro poema, que leva por título “Arte”, nem a ironia redime, ecoando-se ainda o Chico Buarque de “Construção” e o Tom Jobim de “Águas de Março”, mas sem qualquer promessa de vida. Desse modo, “Arte” é:

(…)

é um imigrante boliviano demolindo
a marretadas
as vigas de um edifício

é também um sociólogo de binóculo, num navio,
disfarçando a cegueira

é um relógio sobre uma lápide

um escravo
orelha roxa, passos lentos
foge da fazenda Bom Retiro

é o conflito econômico progressista,
foie gras de pato selvagem

é um colchão com lençol largado na calçada

é um menino negro que passa, apressado,
pela calçada da porta da igreja do Pari,
camiseta regata do Spurs,
de repente se lembra e faz o sinal da cruz

é um enfestador fuzilado por um garoto
num ponto de ônibus à tarde

é um rolo de fio eléctrico amarrado ao pé de um poste

um casal se pega, de dia, sob o luminoso STAR India
desligado

é um camelo pronunciando palavras assassinas

é um cara algemado, disparando contra a própria cabeça

é um artista se entregando à polícia

(10-11)

É esse gesto desesperado do artista que se entrega à polícia que este livro nos traz. Querer que este livro seja um crime parece ser a única coisa que o pode redimir. Talvez ligado a isso, Bertran de Born é figura central de um poema, “Sonoridades” (73), mas a langue d’Oc há-de aparecer mais algumas vezes. Associado à poesia trovadoresca, de Born foi também um activista, um soldado que conheceu a morte e que deu morte, e que escreveu muitos poemas satíricos, mas também de índole política. Não há qualquer lirismo em “Sonoridades”, que, tal como todos os outros poemas,  se encontra mergulhado num ambiente urbano e sujo em que as imagens do crime, da guerra e do terrorismo se fundem com onomatopeias e até uma nota lírica acidental — só interrompida pelo imperativo “vá cantar esta merda em outro lugar” (74), que termina o texto dedicado ao trovador.

Muitas palavras se repetem, numa espécie de leitmotive que vão dando unidade ao livro: mendigo, lixo, sem-abrigo, ratos, crime, guerra, morte.

Pelo meio da passagem, pelo meio de poemas em verso, começamos a encontrar poemas em prosa, que levam por título “A nova utopia” e que são numerados. São catorze textos e apenas o segundo e os últimos três surgem em verso. “A nova utopia (2)” parece ser uma reflexão sobre o próprio livro, também na sua natureza paradoxal de “um lado útil da palavra”, de um “antiverso altamente subversivo” e “uma lavagem de palavras”. Gosto particularmente das imagens do “terrorismo linguístico” e de “uma filha convicta da pátria”, num poema que, de novo, parece ecoar Jobim:

A nova utopia (2)

É um discurso estritamente atrelado à realidade
É um inferno fiscal
É uma empresa real
É o lado útil da palavra

É uma brancaiada tola
É a nota mínima
É o aplicativo Equitable
É um café da manhã sem lactose

É a cerveja sem álcool e o cigarro electrônico
É uma prece, e não a Ave Maria, sussurrada
Num beco de uma favela
É um sinônimo de vândalo

É o alarme contra
O impacto ambiental de um passeio de barco
É um protesto contra aulas de inglês
É uma tr@b@lh@dor@ em transição de empregos

(…)

É a redenção ecológica do joio
É um approach jurídico para o diabo
É um cego paraolímpico
É um antiverso altamente subversivo

É um alvo potencial do terrorismo linguístico
É um Drácula hardcore doando sangue
É o direito à segunda via garantido
É um morador de rua revirando uma lata de lixo seletivo

É o produto da venda legal de armas
Violinos afinal a brisa fétida
É uma lavagem de palavras
É uma filha convicta da pátria

(61-62)

Poder-se-ía pensar que a ironia é a estratégia principal de a nova utopia, mas não. Vai-se muito para além disso. Trata-se, antes, de estilhaçar qualquer prática discursiva reconhecível, de tentar implodir (por dentro) a voz pública do sentido, mesmo aquela que pretensamente se apresenta como resistente (daí a necessidade de reinventar a linguagem emancipatória, de que já falei no início deste texto). Ou seja, trata-se do nonsense e daquilo a que Charles Bernstein chama “comédia” — não já um género literário, mas uma estratégia linguística. Só o fragmento final do primeiro poema da série “a nova utopia”:

A nova utopia (1)

(…) Tem o seu próprio dicionário. Pensa antes de agir. Repele palavras e pede ação. A nova utopia é um ex-coxo. É a asa do voo. É um showroom de exuberâncias naturais. É um céu com nuvens negras, sob controle. É uma estante de livros num banheiro. É a viúva de Jorge Luís Borges detalhando seu processo de criação. A nova utopia é um ex-macumbeiro, um ex-bêbado, é um ex-exu sujo. É um branco de alma preta. A nova utopia é ainda o indígena de tocheiro, fazendo política, diariamente, nas redes sociais. A nova utopia é uma ex-esteticista de unhas postiças. É um espião trans pegando sol num roteador. É um ex-selvagem. É uma ex-vadia. É um ex-puto. É uma entendida. É um ex-pária. É uma miríade de franquias de poetas premiados. É um poema à altura do seu tempo.  (22)

“Um poema à altura do seu tempo” é agora aquele em que o apelo marxista à acção, que Guy Debord transformou no apelo à arte, se fez um Guy Debord a usar “Prada”, como podemos ler num outro poema, “a call to kill” (63-64). A nova utopia define-se, assim, como uma espécie de inevitabilidade do capitalismo e do neo-liberalismo que, por isso mesmo, só pode ser “uma épica do proscrito”, como podemos ler em “a nova utopia (3)”:

É uma épica do proscrito. É a massa de acosso organizado contra o poder. Para ela, todo o dia é um dia histórico. (…) A nova utopia opta por um túmulo sob o sol. Não mastiga vidas passadas. Protesta, ao vivo, contra a máfia dos papa-defuntos. Não dá voltas em torno de uma única ideia. Não cava a sua própria tumba. A nova utopia é, ao FIM, a liberação do homem, do homem agora simples, finalmente verdadeiro, o homem déjà-vu. (94)

A nova utopia é então, se bem a entendi, “a vida nua”, de que nos fala Agamben — mas sem um pingo de redenção ou sagrado. Como se escreve em “a nova utopia (5)”, trata-se apenas de “Viver de morte, morrer de vida” (106). E, logo em “a nova utopia (6)”, se anuncia também a morte da poesia. Mas, atenção, no final do poema, ela pode ainda aparecer como “abantesma que sobressalta, assombra, às vezes” (108), O assombramento e a assombração que leio no poema intitulado “Álvaro de Campos”, um poema que lamenta as promessas da Modernidade, aquelas que nos trouxeram até este momento dramático da nossa História — as promessas do melhor dos mundos em que o nosso poeta português tanto acreditava:

Álvaro de Campos

Acendes um cigarro para adiar a viagem
mas não tens oásis,
só tens destino e realidade.
Não és mais o menino que sucedeste por erro.
Estás, de verdade, em algum portão de embarque
Verdadeiro ou produto da tua arte.
Não adianta ergueres em ti todos os Césares
para atrasares os relógios do cosmos ou a viagem
Ou repetires: “Adia-te, adia-te”.
Grandes, como dizes, são os desertos
e tudo é mesmo parábola ou deserto.
Todavia, um ínfimo vírus,
como não querias ou imaginavas,
acelera súbito os motores do universo.
(131)

O último poema de “a nova utopia”, a 14, diz-nos que ela “não é uma sequela da utopia”, mas apenas “a pedra, mais leve, de Sísifo” (144). Logo depois, em “Ida e volta”, conclui-se, numa espécie de elogio irónico à poesia conceptual: “é também um dueto com o silêncio/fila pra pegar lascas de ossos/é a vida sem alívio de um instrumento” (146). E, finalmente, no último verso do último poema do livro, pergunta-se: “Quem afinal paga pra ver?”

Eu responderia: “Nenhuma e nenhum de nós!” e também, paradoxalmente, “Todos e todas nós”…

Agradeço ao poeta Régis Bonvicino por nos confrontar com a pergunta. A pergunta que está sempre subjacente a todos os poemas deste livro tão difícil. E tão necessário.

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Texto lido, em classe, por Graça Capinha no dia 14 de dezembro de 2022, na FLUC de Coimbra, Portugal. Esse mesmo texto foi traduzido e publicado em inglês na revista Jacket 2: https://jacket2.org/commentary/capina-bonvicino

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Para adquirir o livro:

 

 


 Sobre Graça Capinha

Faculdade de Letras, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra