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Aurora Bernardini debate um ponto do novo livro The kinds of poetry I want, de Charles Bersntein

Razão tem Paul Auster em seu prefácio ao último livro de Bernstein quando diz:

“Charles Bernstein é um poeta. Charles Bernstein é um crítico. Charles Bernstein é um homem que fala. E esteja ele escrevendo ou conversando, Charles Bernstein é um criador de caso. Gostando de criadores de caso eu mesmo, gosto particularmente daquele criador de caso que responde ao nome de Charles Bernstein. Charles Bernstein reintroduziu um espírito de polêmica no mundo da poesia americana. Na atmosfera de exaustão em que se dá nossa escritura, Charles Bernstein tem lutado longamente e bravamente para tornar escritores e leitores cônscios das implicações que estão escondidas em cada e todo ato linguístico de que participamos enquanto cidadãos desse vasto e problemático país. Concordar ou discordar com aquilo que Charles Bernstein tem a dizer é menos importante que o fato de haver se tornado cada vez mais importante ouvir o que ele está dizendo.”]

Com efeito, Bernstein tem muita coisa a dizer. Basta dar uma olhada ao conteúdo dos capítulos de seu livro: ACT ONE, 1: Ocular Truth and the Irreparable [Veil], Pixellation The Body of the Poem, 95 Theses, The Unreliable Lyric, A Fabric of Expectation, Offbeat, Groucho and Me, Shadows, Pesapalabra Interview, The Brink of Continuity, The Poetics List, The Swerve of Verse, “Too Philosophical for a Poet”; ACT TWO: Free Thinking, Kinds #CageFreePoetry, Forewords & Backwords, Weathermen, Three Flasks of Gin with a Flax Chaser, Stein Stein Stein, Languages Acknowledgment, Dichtung Yammer; ACT THREE: Summa contra Gentiles, Doubletalk UP against Storytelling, Doubletalking the Homophonic Sublime, Index of Names, Coda (Echo): Index of Motifs.

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Assim, iniciei a apreciação do texto (400 páginas!) extraindo de cada capítulo excertos que chamaram minha atenção (e tenho certeza, do/a leitor/a também!), colocando em negrito e traduzindo apenas aqueles que, a meu ver, mais se prestam para um diálogo ou um debate.

Mas, chegados a esse ponto uma parada se faz oportuna. Não apenas para considerar o caráter muitas vezes intencionalmente paradoxal do que Bernstein tem a dizer, mas como ele coloca em jogo questões controversas de nossa atualidade.

Uma delas é a questão da justiça estética ou abordagem moral da arte que se explicita nos textos sublinhados que passo a traduzir:

O CORPO DO POEMA

“[(…) A abordagem moral da arte não é apenas uma questão de valores fora de moda, ou conservadores, ou reacionários; a moralidade pode também escorar apelos para uma justiça racial, de gênero, social, econômica e ambiental. A justiça estética não é tão fora da lei quanto antinômica, além da lei, como o poema coloca a mim além de mim mesmo, arrastando minha alma para esquemas encrespados. A justiça estética é fundamental para aquelas outras formas de justiça, mas não está a serviço delas. Seu campo de ação é simbólico, necessariamente em contraste com a vida quotidiana. (…)]”

95 TESES

 28 – [“Eu não quero estudos trans-nacionais; eu quero estudos não-nacionais. Estudos não-nacionais vão olhar para grupos que falam uma língua e para as conversações entre línguas e através de línguas, não baseados apenas em estados-nação, mas também em afinidades, imigração, refugiados, o deslocado, o diaspórico, o nômade, o nacional-não-conforme. (…)”]

 

Pois bem, o que Bernstein parece sugerir nesses seus escritos (particularmente no desejo de estudos não-nacionais da tese número 28) é o debate com ideias universalistas. Logo, o debate está aberto.

Como diz Alcir Pécora em seu artigo[1], as ideias universalistas “fundamentam as democracias e promovem solidariedades verticais, de tribos, em vez de solidariedades horizontais de classe.” (…) E acrescenta, num recorte do panorama brasileiro e …universal: “Há crise da literatura, crise do cinema, crise do teatro e de todas as outras formas de arte, cuja centralidade na vida social parece irremediavelmente perdida, uma vez que a própria noção de estética parece debilitada tanto pela moral conservadora como pelo moralismo doutrinário da militância, posto que uma e outra são avessas à complexidade, dúvida, aporia e singularidade — noções que regulam a operação estética. Ou de outra forma, como disse Oscar Wilde, em 1891: “There is no such thing as a moral or an immoral book. Books are well written, or badly written. That is all”.

Ou ainda, a visão da estudiosa anglo-germânica Susan Neiman (norte-americana morando na Alemanha), em seu artigo recente “Em busca de um novo universalismo” publicado na revista Sibila[2]

O oposto do universalismo é muitas vezes chamado de “identitarismo”, mas a palavra é enganadora, pois sugere que as nossas identidades podem ser reduzidas a, no máximo, duas dimensões. Na verdade, todos nós temos muitas. Como Kwame Anthony Appiah nos lembra: ‘Até meados do século 20, ninguém que fosse questionado sobre a identidade de uma pessoa teria mencionado raça, sexo, classe, nacionalidade, região ou religião’…  “A redução das múltiplas identidades que todos possuímos à raça e ao gênero não tem a ver com a aparência física. É um foco nas dimensões que sofreram o trauma mais generalizável. Isto representa uma grande mudança que começou em meados do século XX: o sujeito da história já não era o herói, mas sim a vítima. O impulso para mudar o nosso foco para as vítimas da história começou como um ato de justiça. A história foi contada pelos vencedores, enquanto as vozes das vítimas não foram ouvidas. Virar a mesa e insistir para que as histórias das vítimas fossem contempladas pela narrativa oficial era parte da correção de velhos erros. O movimento pelo reconhecimento das vítimas dos massacres e do escravismo começou com a melhor das intenções. Reconheceu que o poder e o direito muitas vezes não coincidem, que coisas muito más acontecem a todos os tipos de pessoas e que, mesmo quando não podemos mudar isso, somos obrigados a registrá-las. No entanto, algo deu errado quando reescrevemos o lugar da vítima. O impulso que começou com generosidade tornou-se totalmente perverso.”

Por falar em perversão, ouçamos o que tem a dizer o notável estudioso Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra[3].

Todas as teorias estão sujeitas a ser pervertidas porque todas são elaboradas, explicita ou implicitamente, com o objectivo de ter impacto no mundo da vida, seja porque o pretendem interpretar, seja porque o pretendem transformar. As teorias, por mais esotéricas, têm sempre uma dimensão ou vocação de aplicação extra-teórica, muitas vezes à revelia dos seus autores. Para além disso, a teoria constitui um artefacto poroso e de algum modo incompleto porque sempre aberto à interpretação. A aplicação só constitui perversão quando as teorias são convertidas em doutrina ou ideologia, isto é, num sistema normativo fechado ao serviço de práticas de poder concretas, quer de Estados quer de grupos sociais específicos.” (…)

Um fato curioso de perversão de teorias é dado por Sousa, nesse mesmo ensaio, no exemplo que traz Gayatri Spivak, autora do conceito de “essencialismo estratégico”.

Com esse conceito, Spivak procurava caracterizar provocativamente a desconstrução da historiografia levada a cabo pelo trabalho teórico dos ‘Subaltern Studies’, um grupo notável de cientistas sociais indianos, a que ela própria pertencia, apostados na revisão da história da Índia (Guha, 2002; Spivak, 2006). Spivak pretendia mostrar que o essencialismo positivista de muitos estudos deste grupo tinha um objetivo político muito concreto (subverter os códigos de leitura dominantes da sociedade e da história da Índia) e nesse sentido era estratégico. Aplicado ao conceito de identidade, o conceito de essencialismo estratégico não pretendia significar que certas práticas concretas decorriam naturalmente do conceito de identidade, mas antes que o uso deste conceito podia, em certas circunstâncias, ser necessário como táctica política.

Muito cedo, Spivak apercebeu-se de que o conceito de essencialismo estratégico estava a ser usado como panaceia ou álibi para proselitismos académicos ou outros e, por essa razão, desvinculou-se do conceito. Um conceito que, na sua formulação, visava servir necessidades políticas muito concretas que legitimavam o seu uso nessas circunstâncias concretas e só nelas, fora transformado num álibi para justificar todos os essencialismos identitários – ou o identitarismo. Segundo ela, estava a servir para justificar aqueles que ‘convertem a identidade na principal agenda de sobrevivência política e cultural’ e ‘ignoram o que há de mais interessante em estar vivo, isto é, existir orientado para o outro.”  (In: Flaganan et al, 2007: 4 e 16-17)

Estamos apenas no terceiro capítulo do livro e as considerações já renderam 10 páginas! Que sirvam como estímulo para convidar o leitor à continuação desse e de outros debates que o bem vindo espírito polêmico do trouble-maker Charles Bernstein suscitou e seguirá suscitando.

Aurora Bernardini


Bibliografia

BERNSTEIN, Charles. The Kinds of Poetry I want: essays and comedies. Chicago: University of Chicago Press, 2024.

NEIMAN, Susan. “Em busca de um novo universalism” In: Outras palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/em-busca-de-novo-universalismo/

PECORA, Alcir. Uma pandemia de crises. In: Rascunho: Jornal de Literatura do Brasil. Edição 294, outubro de 2024. Link: https://rascunho.com.br/colunistas/conversa-escuta/uma-pandemia-de-crises/

SANTOS, Boaventura de Sousa. “As epistemologias do Sul e o identitarismos”. In: Sibila, edição de 29/09/2024. Link: https://sibila.com.br/cultura/as-epistemologias-do-sul-e-o-identitarismo-boaventura-de-sousa-santos/15370

[1] Cf. PÉCORA, Alcir. Uma pandemia de crises. In: Rascunho: O jornal de Literatura do Brasil. Edição 494, outubro de 2024. Link: https://rascunho.com.br/colunistas/conversa-escuta/uma-pandemia-de-crises/

[2] NEIMAN, Susan. “Em busca de um novo universalism” In: Outras palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/em-busca-de-novo-universalismo/

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. “As epistemologias do Sul e o identitarismos”. In: Sibila, edição de 29/09/2024. Link: https://sibila.com.br/cultura/as-epistemologias-do-sul-e-o-identitarismo-boaventura-de-sousa-santos/15370

 


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.