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Italo Calvino (1923-1985)*

Quando, em 1985, Italo Calvino morreu repentinamente aos 62 anos ( hemorragia cerebral) a consternação foi geral. Conhecido internacionalmente  como exímio ensaísta e escritor —  na época  ele e Umberto Eco eram os mais importantes  intelectuais da Itália — estava, naquele momento, terminando de redigir as famosas Seis Propostas para o Próximo Milênio a serem apresentadas à  Universidade de Harvard, dentro do ciclo de conferências ( as  Norton  Lectures) que, desde 1926, haviam contado com figuras como Ígor Stravínski, T.S. Eliot, Jorge Luís Borges, Northrop Frye, Octavio Paz , etc., que  logo,  “ao nortear não apenas a atividade dos escritores, mas cada um dos gestos de nossa existência “ – conforme diz o  tradutor brasileiro Ivo Barroso — se tornaram a coqueluche nas universidades  do mundo inteiro.

Na verdade, Calvino  só chegou a terminar apenas cinco das conferências  às quais  foi dado o nome de Lições Americanas. Do que tratam elas? Assim ele as elencou: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade, (Consistência), e cada uma dessas conferências, ao  focalizar o essencial do respectivo título, trata de uma série de outros textos e, magistralmente, adquire as características desses textos.

 Para os textos  literários e não literários – e aqui vem o  segredo do conferencista— “ a análise crítica não será aquela que aponta para ‘fora’ , mas – explorando o  ‘dentro’ do texto – conseguirá abrir golpes de vista inesperados sobre o  fora “.

Essa, por sinal, é também a posição do nosso Antonio Candido, que de sociólogo se fez crítico literário, como Calvino, que  de  romancista  ( mais de vinte romances publicados) se tornou ensaísta.

“Em Calvino, o ambíguo é uma constante  de seu empenho de artista e desenvolve-se em três tempos,  em suas obras básicas”,  diz Paolo Angeleri.  A saber: 1. O realístico: inicia-se com o conto A entrada na guerra (1954) e continua com A trilha dos ninhos de aranha(1947) e Por último vem o corvo (1949) e as  três fábulas de Os nossos antepassados 2. O descritivo: “ A especulação imobiliária(1957) ,  A nuvem de smog(1958) e O dia de um escrutinador( 1963).  3. O fantástico: As cosmicômicas (1965), Ti com zero (1967 ) O castelo dos destinos cruzados(1973), As cidades invisíveis(1972) – o livro favorito do escritor — e Se uma noite de inverno um viajante(1979), ligado ao movimento Oulipo, de Raymond Queneau,  que Angeleri prefaciou na versão portuguesa .

Quanto às obras ensaísticas de Calvino, devem ser  consideradas, além das Seis lições, o importantíssimo Assunto Encerrado ,  Coleção de areia e  Por que ler os clássicos, Um dia  na vida de um expectador, etc. a maioria traduzidas no Brasil.

Então, voltando  às características propostas para o nosso milênio, em primeiro lugar está a leveza. É preciso ser leve como o pássaro, não como a pluma” diz Paul Valery, um dos autores   mais citados por Calvino. “O fato de que, nos meus 40 anos de ficção eu  tenha tentado tirar o peso das figuras humanas, dos corpos celestes, das cidades, das narrativas, etc. não significa, porém, que não tenha respeito pelo peso” –  alerta Calvino. “Mas se,  hoje em dia, qualquer ramo da ciência mostra que o mundo se segura em entidades sutis: os neurônios, o DNA, os quarks, o software, a informática… o que dizer da literatura?”

 Nela, a leveza tem ao menos três acepções. Uma,  que vem exemplificada por Emily Dickinson, outra por Boccaccio, Cavalcanti, Cervantes, Shakespeare e, a terceira, por um quase desconhecido escritor seiscentista: Cyrano de Bergerac.

Outros fios Calvino trança em seu discurso sobre a leveza: a Ars Magna de Lull, a Cabala dos rabinos espanhóis, a  Memória de Pico della Mirandola, Galileu, o alfabeto como  modelo de cada combinatória de unidades mínimas, Leibniz… mas, passemos à rapidez.

“Qualquer objeto numa narração é um campo magnético, quase um objeto mágico, particularmente nas narrativas orais em que a economia expressiva é uma batalha contra o tempo e os detalhes  que não servem  devem ser deixados de lado”, explica Calvino. Lá está Sheherazade com a continuidade e descontinuidade do tempo, lá está o cavalo como emblema da velocidade  física, mas também mental, que não apenas marca a história da literatura, mas prenuncia a problemática própria a nosso horizonte tecnológico.

 Thomas de Quincey ( 1785-1859), que definiu a rapidez como sendo a relação entre velocidade física e velocidade mental, exemplifica-a em uma das histórias mais repetidas em quase todos os filmes de suspense : ele, passageiro, a bordo de um carro-postal (   The English Mail-Coach )  em que os cavalos  se desgovernam, o cocheiro adormece  e um outro carro que vem vindo no sentido oposto irá bater, não fora a rapidez do jovem condutor, rapidez essa, física e mental.

“ Discorrer é como correr,” diz Galileu e esta afirmação é como seu estilo e método de pensar: a rapidez, a agilidade de raciocínio, a economia dos argumentos, mas  também a fantasia dos exemplos. Poder-se -ia ainda falar de  Laurence Sterne (Tristram Shandy), de Giacomo Leopardi ( Opúsculos morais), dos poetas Walt  Whitman e William Carlos Williams, de Jorge Luis Borges, ou voltar à mitologia grega com Hermes (sintonia) e Vulcão (focalidade). Mas vamos falar da exatidão e da visibilidade, que em Calvino estão muito próximas, e cuja ordem vamos inverter aqui.

Isso, por um curioso aspecto da sua personalidade, resultado do cuidado da mãe dele que, desde pequenino, havia  presenteado ao filhinho uma coleção de uma separata do Corriere della Sera, chamada Corriere dei Piccoli, onde toda semana vinham reproduzidos os mais famosos quadrinhos americanos ( Felix the cat, Happy Hooligan, Maggie and Jiggs, Katzenjammer Kids, etc.). O que fazia o iletrado Italo? Ia enchendo o espaço das bolhas, dos dizeres e  dos balões de fala com suas próprias histórias imaginárias que as figuras lhe sugeriam. O visível era o fundamental para ele, o estímulo para sua imaginação. Lá viriam, mais tarde, Dante, Tomás de Aquino, Ignácio de Loyola, Jean Starobinski, Freud, Jung, Balzac e… a exatidão.

“ Entre os livros científicos  em que enfio meu nariz à procura de estímulos para a imaginação”, escreve Calvino, “ ocorreu-me ler [ a respeito de um debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky] que os modelos de formação dos seres viventes são , de um lado, o cristal ( imagem da invariância  e da regularidade de certas estruturas) e, do outro, a chama ( imagem da constância de uma forma global exterior, apesar da incessante agitação interna)”.

Ele, que  sempre gostou de emblemas, desenvolve  como escritor  a imagem do cristal, da chama, da cidade e outras, e chega à seguinte constatação, quanto ao caminho da obtenção da exatidão:  por um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitam realizar operações e demonstrar teoremas  , e – por outro – a busca das palavras que deem conta da maior precisão possível, quanto ao aspecto sensível das coisas. De novo entra uma série de cientistas e poetas discutindo o assunto,  e com eles chegamos à multiplicidade.

Aqui Calvino recorre a duas obras-primas. À  de Carlo Emilio Gadda , que em português se chamou Aquela Confusão Louca da Via Merulana, em que o autor vê o mundo  como um sistema de sistemas, onde  cada sistema condiciona os outros e é por eles condicionado, onde cada  mínimo objeto é centro de relações, numa frenética deformação,   e à obra-prima do também engenheiro  Robert Musil , O homem sem qualidades. Esta obra exprimia a tensão entre a exatidão matemática e a  aproximação dos eventos humanos  mediante uma escritura oposta à de Gadda: controlada  e fluente . Depois de inúmeras voltas ambos chegam, porém, à mesma conclusão: a incapacidade de concluir.

Outros exemplos aparecem com Proust, Goethe , Flaubert, Zola, Thomas Mann, T.S. Eliot, Joyce,  Borges, e…o  Oulipo, onde o mestre Queneau, em sua polêmica com a escrita automática dos surrealistas,  adverte  bem oportunamente : “Outra ideia falsíssima que corre por aí é a da equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e liberação; entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, esta inspiração, que consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso  é , na realidade, uma escravidão. O escritor clássico que escreve sua tragédia observando um certo número de regras … é mais livre  que aquele poeta que escreve o que lhe passa  pela cabeça e que é escravo de outras regras que ele ignora”…


*Este texto, com algumas modificações, foi publicado pelo suplemento Aliás de O Estado de Paulo, em 10/03/2023


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.