Bem escolhido o título dessa reunião, com algumas alterações, dos seis livros de poemas de Marcelo Tápia, ultimamente publicada pela Editora Perspectiva. Em geral os poetas gostam que suas obras sejam lidas cronologicamente, e os leitores também — isso dá-lhes o gosto de acompanhar a marcha da poética do autor. Embora na Introdução os poemas sejam explicados do começo para o fim, Marcelo, no livro, faz o inverso, e a meu ver, com muito êxito: o “indício de passado que há em cada seu amanhã” , é descoberto pelo leitor, comprova-se aos poucos e o leitor gosta disso. Aliás, o inverso é um dos procedimentos-chave que se descobrem e, a partir dos poemas mais recentes, é como se Marcelo tivesse invertido a frase de Wittgenstein: “a filosofia deveria ser escrita mais como uma forma de poesia”, e ela passasse a ser: Poesie sollte ein wenig wie die Philosophie zusammengesetzt werden. Sim, porque a maioria de seus poemas são construídos como que em volta de um aforisma (ἁφορισμός , como o Marcelo, estudioso de grego, gostaria de dizer) – uma breve frase que condensa um conceito, um princípio específico ou um saber filosófico ou moral.
Estes aforismos, que nas coletâneas mais antigas (influência ou coincidência leminskiana?) se apresentam mais como “achados”, do tipo dessa
igualdade
são todos iguais
cada um só pensa
na própria diferença
são, — como o autor quer — um eixo conceitual, uma quase-narrativa que se refaz em cada caso, por movimentos de ondeio à procura de um rumo…
Mas não é apenas Leminski que Marcelo acompanha com “lógica-analógica coerência”: ao mesmo tempo em que centra o conceito, veste-o com a forma ora de Pessoa
reminiscência de mim
expiro espirais do tempo
que rola no rio d’infância
podre hoje prosaico vício
megalópole
fim de reino reinício des
reifico este estrume
com um ume
atirando a tempos para
além dos tempos imêmores
janto ancestral as migalhas
do ritual
meu presente é como se
comesse o meu ontem ontem
como que sobras do vento
masco fragmentos de eco
faíscas de chama-incêndio
revérbero do que no
nunca FOI
restos do carbono espectro
esperança de barco furado
pescoço de enchente
solidão de cercado
agarro-me ao gesto do nado
e ao nada de gesto
nunca infinidão de passado
de passado
ora de Nietzsche,
A métrica põe um véu
sobre a realidade sobre
ocasiona alguma alguma
artificialidade ar
no falar e no falar
impureza no pensar;
a arte torna arte torna
suportável a visão
da vida, da vida da
colocando sobre ela o
véu do pensamento impuro.
ora de Kierkegaard:
O eu é
a síntese consciente
de infinito e de
finito
em relação com
ela própria.
A evolução consiste
em afastar-se de si
próprio. O eu que não se
tornar ele própria
permanecerá
desesperado;
O eu está
em evolução a cada
instante da sua
existência, e não é
senão o
que será.
Ou, entre outros, imprime-lhe ritmos onomatopeicos:
catapingos
caem pa
lavras a esmo sob
re o chão
as puras no
minações divinas cor
romperam-se desdour
aram-se
línguas fa
mintas dizem
verdades rel
ativas
mut
antes nunca f
oram fixas
em b
oca e ouv
idos hu
manos
emb
ora criadas obe
decessem a seu cria
dor
ol
vidaram su
a vida prim
eva e adi
antam-se
can
didatam-se a luz
ir a cho
ver
– ó pre
tensão – em min
ha horta
Falando-se em aforisma, eixo ou centro, fica claro que a síntese é o procedimento metodológico preferido por Marcelo, (que se visualiza inclusive nos grafismos):
ou na sugestiva Fórmula do mar, em memória de Haroldo de Campos,
fórmula do mar
composição poético-musical
a Haroldo de Campos (in memoriam) e
Augusto de Campos
e o braço que gira em volta desse eixo ou centro vai desenhando figuras abstratas ( alcance, concrescência, resistências, reticências, sonhos) e figuras concretas (espirais, frestas, decalcos, conchas, faíscas,vento, areia, e – sintomaticamente – vasos):
O vaso quebrado
tempo
A estrela distante
Morreu há milênios
Mas eu a vejo
O vaso antigo
Quebrou-se há muito
Mas eu o vejo
O poeta arcaico há tanto calou-se
Mas eu o ouço
Guardo-os entre
Os cacos do agora
Que – espantado –
Se evapora
Ou este outro vaso, em que se explicita aquele “elemento sensível da língua” , que Marcelo não esquece:
Vaso abstrato
ouço palavras
de várias línguas
que não entendo
os ecos se cruzam
e se somam
em sons
que se encaixam
como peças de um vaso
abstrato
cujos pedaços
amalgamam-se
num imprevisto sentido
esquecido